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Nós e Paris.

por jpt, em 18.11.15

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Vivo face à entrada principal de um centro comercial (um "xóping" como os lisboetas agora dizem), uma passadeira de peões aligeira a passagem da rua, preciosa pois em bairro muito envelhecido, tantos são os transeuntes já trôpegos. Há poucas semanas ao sair de casa deparei-me com um dos habituais atropelamentos na dita passadeira, então um carro da polícia e alguns populares rodeavam uma sexagenária espojada no chão, uma menina bem pequena magoada mas já sentada no passeio, aguardavam-se as ambulâncias. Afligi-me, claro, mas para logo perceber que felizmente nada de grave ocorrera, um pequeno toque de condutora distraída, ela ali mesmo talvez a mais avassalada dos presentes. Afligi-me, repito, para depois acalmar, mas ficar resmungando da insegurança constante mesmo aqui à frente de casa.

Naquele mesmo dia outros atropelamentos ocorreram, vários veículos motorizados se acidentaram, talvez alguns mortos e feridos aconteceram em Portugal. E com toda a certeza por esse mundo. Não me afligiram. Penso na segurança das infraestruturas rodoviárias, saúdo as melhorias securitárias na indústria automóvel, continuo adverso às motorizadas, julgo sempre necessárias as campanhas de educação (por exemplo deveria ser proibido aos peões atravessar ruas a falar ao telefone). Mas aflição, aflição, solidariedade comovida, e acção imediata se necessária? Acontece-me só quando na proximidade, física ou afectiva. E sei que não estou só nesta metodologia do sentir-pensar, pois condição fundamental, ontológica se se quiser, para o fluir quotidiano.

Desde os atentados de Paris que vou lendo uma série, botada em jactos, de declarações de cidadãos portugueses resmungando que não se devem valorizar nem aqueles atentados nem os mortos ali caídos dado que há outros mortos, outros atentados, mais longínquos, tão ou mais sanguinolentos, e afectando gente com tanta dignidade, tão "choráveis", como os que ali caíram.  Que Paris seja cidade tão simbólica para o nosso ambiente cultural (nem que seja aquilo do Casablanca, já para não falar do "A Cidade e as Serras" e tamanho etc.), que seja (ou tenha sido, já não sei) a segunda cidade com mais portugueses, que vários destes tenham também sofrido os atentados nada lhes interessa.

São esses os "multiculturalistas" sempre atentos na denúncia, apoucamento, do "Ocidente", sempre lestos a quererem-se distanciar de um qualquer "nós" que mesmo difuso existe - pelo menos para os também difusos "outros". A mim cai-me o difuso, ao perceber de novo que as longínquas guerras "nos" caem em "casa", nas cidades do extremo oeste da Eurásia. Que os assassinos vêm de Bruxelas, nela habitam e a ela ameaçam, lá onde vivem minha filha e a sua mãe. Aflige-me, aflijo-me insone.

E acho estupores os falsos relativistas - para exemplo, esses que criticam o filtro criado pelo Facebook para "tricolizar" os perfis porque medida eurocêntrica, dizem, mas que não mudam os perfis que usam para as suas brincalhonas cidadanias para a Weibo chinesa ou para a nova Tsu. Querem-se apenas "elegantes" num falso auto-criticismo civilizacional.

Isto não são apenas os meneios da torpeza imbecil. É o mais abjecto dos racismos contemporâneos, o falso relativismo multiculturalista. Pois é uma gente sempre pronta a defender os particularismos alheios, a valorizar as características particulares alhures, os localismos, culturais ou afectivos, as identidades enraizadas, os centripetismos sociais quando distantes. Mas no "nosso" caso, aos "europeus", aos europeus a oeste dos eslavos mas isso eles não conseguem sequer perceber que lhes é a matriz da invectiva, exige-se o cosmopolitismo, a centrifugação reflexiva. Ou seja, aos "outros" os seus muito dignos localismos/particularismos. E a "nós" o dever do extremo cosmopolitismo. Porque nós, um nós assim mesmo, agora sem aspas, afinal somos, devemos ser, diferentes. É este um racismo abjecto, um racismo para além da cor da pele,  um racismo de hierarquia cultural, de supremacia racional.

publicado às 11:02


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