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"…cheguei a um acordo perfeito com o mundo: em troca do seu barulho dou-lhe o meu silêncio…" (R. Nassar)
Cruéis, meramente cruéis, as críticas a Vitalino Canas devido às suas declarações sobre o caso das caricaturas dinamarquesas gozando o profeta Maomé: "estão bem uns para os outros, os caricaturistas irresponsáveis e os fundamentalistas violentos". Não me parecem acertadas essas abordagens. Explico-me, ainda que consciente que em texto maçudo, longo e descritivo, e talvez apenas auto-interessante, coisa memorialista, até de intensidade incompreensível para quem não a viveu.
Lembro Vitalino Canas em Maputo. Em 1998 aqui aconteceram as primeiras eleições municipais, às quais a Renamo, então no zénite da sua influência política, se recusou a comparecer, alegando manipulações governamentais do processo eleitoral. Eram então tempos de uma paz ainda recente, não tão sedimentada, de uma ciclicidade eleitoral ainda incipiente, até inóspita. Enfim, era notória a tensão política. Subitamente, uma semana antes das eleições, o então Secretário de Estado da Presidência Vitalino Canas surgiu em Maputo, no intuito de lançar um livro do qual tinha sido autor/coordenador (ainda que tal não seja explícito no livro), o "Autarquias Locais em Moçambique. Antecedentes e Regime Jurídico" (Lisboa/Maputo, sem editor, 1998), que inclui artigos de sete autores, entre os quais dois ministros moçambicanos. Entenda-se, Canas foi durante algum tempo - julgo que por dois anos, no início da década de 1990 - aqui professor cooperante na UEM, tendo participado nos estudos de ordenamento jurídico da descentralização administrativa, sob modelo municipalista. E desse período havia brotado este projecto.
Era evidente que, ainda por cima naquele clima de tensão e contestação eleitoral, a chegada de um membro do governo português, a uma semana das eleições, numa actividade incidindo sobre a questão municipal e com a colaboração de dois ministros locais, não podia deixar de ser entendida como um apoio eleitoral explícito ao partido governamental. Enfim, uma intromissão. Descabida. Por isso quando Canas anunciou a sua visita a Maputo o embaixador pedira-lhe para não a efectuar, dado o melindre da situação política e as óbvias interpretações de apoio explícito. Propôs que a adiasse, "algumas semanas" apenas. Mas a sua decisão estava tomada e foi reafirmada em termos até ríspidos, ele viria a Maputo para esta sua iniciativa individual independentemente de quaisquer interpretações que pudessem disso advir. E para quem tenha dúvidas disto adianto que a conversa telefónica aconteceu comigo presente. E nisto, no processo todo e na breve conversa-apelo, bem nos apercebemos que em Canas habitava uma total insensibilidade diplomática e uma completa ausência de preocupações que ultrapassassem os seus desígnios próprios.
É certo que com alguma elegância toda a visita poderia ter sido remetida (e bem remetida) para um diferente âmbito, como se expressão de um apoio português (e internacional) à democraticidade eleitoral e ao modelo municipalista, ainda para mais este então pouco entendido pela população quanto às suas virtualidades. Enfim, algo supra-partidário, nem que fosse retórica de solidariedade internacional. [Sobre esse apoio, a exportação municipalista, que vincou a cooperação portuguesa nos anos 90 e seus efeitos, inclusivamente ao nível de redes, isso seria motivo para texto de out-blog].
Mas tal avisada abordagem, "de Estado", logo se desvaneceu. Aqui chegado Canas, em total efervescência, de imediato proclamou à RTP, numa entrevista que ficou conhecida como o "3 em 1", glosando o então conhecido anúncio de um "shampoo": "como membro do governo português sou neutro; como militante do PS apoio a Frelimo; individualmente apoio a Frelimo" - o "eu sou da Frelimo" ficou-se em conversas pessoais, diziam-me os que com ele privavam.
Constrangimento, claro, dos patrícios mais atentos que cá viviam. Num, e explicito, "se isto corre mal, os custos que estas coisas terão no futuro", pois "e o gajo na altura em Lisboa, não é nada com ele". Talvez posturas erradas as nossas, talvez entendimentos errados os nossos, pois ele lá nas coisas da alta política e nós muito rasteirinhos, na nossa vidinha. Bem, lá se lançou o livro, entre o nosso constrangimento, mas que havia de se fazer?, o homem tinha gosto pessoal naquilo e era do governo. Político manda, funcionário funciona, e nós, povo paisanos, paisajamos. Ainda sorri, triste, no logo após-cerimónia, com os dizeres de alguém do alto de cá, "estrutura" importante mesmo, pois ministro, dirigente, e ali feito meu companheiro num "ficar para trás" no mão-dada daqui, "isto nesta altura não era necessário", a desmerecer a evidente pacóvia vaidade do pobre Canas, nesse dia tão ufano. Mas era um gosto pessoal do homem, agora governante, que se poderia fazer além de o aturar?
E daí lá se avançou para aquele que até fora proclamado o motivo "oficial" da tal viagem. Comemorando-se então o 10 de Junho Canas representou o governo nas festividades. Fora a proposta do embaixador, a tentar "amaciar" a disparatada viagem. Lá lhe lembrara, pois se tinha que vir naquela altura que não o fizesse apenas para a cerimoniosa apresentação do livro, que se invertesse o motivo da visita. E assim ficara oficialmente, Canas veio para as "comemorações do 10 de Junho" e, "já agora ...", apresentava-se o tal livro no qual havia participado. Assim, na véspera do dia das comunidades avançou parte da comunidade para jantar com S.Exa no Hotel Rovuma. Por "parte da comunidade" entenda-se o creme do pastel, aqueles que prontos para ouvir mensagem governamental em tempos, naquele final de milénio, de reaproximação, convulsa é certo, de países e economias, muita conversa e alguma uva. Eu, emprego oblige, lá estava.
Que viria dizer o secretário de Estado do Primeiro-Ministro a esta gente? Dizer-nos? Ainda para mais um homem de alguma vivência recente aqui? Que ideias para aqueles momentos de tensão política mas também de reânimo das relações entre países? Era o ano "gâmico" (1998) e o consul leu o texto vindo de Lisboa e seguiu-se-lhe o então sua excelência. A "nossa" excelência.
Avançou para aquela plateia, notoriamente constituída por quadros de empresas então aqui instaladas, que era tempo de bastante movimento nesse sentido, gente em comissão 2/4 anos que sempre se quer trampolim para o regresso mais tarde ou mais cedo; e portugueses de cá, algo como "comendadores" e "proto-comendadores", e suas descendências já, gente de décadas senão mesmo nascimento aqui, cruzando o ocaso de Portugal colonial e sua guerra, boiando no comunismo depois, emagrecendo ao "tempo do carapau e repolho", sobrevivendo à guerra civil e ainda encontrando modos de reaprenderem a economia mercantil que aí está, dura também. Sempre de longe a olhar Portugal, até com desconfianças, fundamentadas ou não isso é outra coisa. Ao qual regressam se nos seus finais, e apenas se filhos e netos para lá partidos, e sempre nesse regresso apressando a morte ainda que esta já então próxima.
E diante de tal plateia logo vieram os apelos/conselhos, decerto bem pensados pois até escritos: o primeiro, explícito e sonante, "não regressem", pois Portugal precisa de nós aqui, seguindo-nos com atenção e solidariedade. No intra-mesas sorrisos dos quadros expatriados num "isto não é para nós, é para os outros, os velhos". E semicerrares nos "outros", esses da tanta tarimba, do tão escaldados, logo em vários "quem é este caralho para nos dizer para não voltar?", e alguns destes bem vizinhos do meu bacalhau, ali a arrefecer enquanto perorava o raio da Excelência que nos coubera. Depois, outro conselho, o final, uma pérola: "organizem-se politicamente, associem-se nesse sentido, participem na vida política do país". Então já foi coisa de inter-mesas, esgares partilhados, "de onde saiu este tipo?". Os portugueses a participarem na vida política, associados? Em Moçambique? Em 1998? Um membro do governo a dizer-nos isto? E nós, todos decerto, a imaginarmos a bronca que seria. Eu à mesa, emprego oblige repito, a desculpá-lo na ironia "o gajo pensa que está em Newark", a incentivar à eleição de um senador ou governador lusodescendente, decerto a desejar imitar as kennedyces dos irlandeses, geração a geração.
Logo saímos dali. Elevadores abaixo e depois em múltiplos "mais um tolo! só nos mandam disto!", dos risos tão habituais mas sempre entristecidos, ainda que soltos em gargalhadas. E eu, entre apertos de mão e combinações de "onde é que vamos agora beber um whisky?" a negar isso, num "não, não, caramba, não são todos assim". Pois, por mais que às vezes pareça o contrário, os políticos não são todos iguais. Pois, e garanto, naquele nível nunca encontrei tão fraquinho. Tão vácuo e pomposo. Um imbecil, sem tirar nem por.
E é desta memória, já bem antiga, de Vitalino Canas, pobre homem, que retiro o desacordo às críticas que agora se lhe fazem a propósito das tais caricaturas dinamarquesas. O homem é assim. Cumpre-nos apenas solidariedade. De ateu. Ou, em sendo cristão, caridade. Para com a pobre besta.