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...) Homenageamos o poeta. Ainda recente defunto. Família e amigos juntamo-nos em sua casa, lá no velho bairro subúrbio hoje já feito centro, alguns discursos apropriados ao dia, uma mesa bem-posta, que sempre ajuda, coisas de nova editora agora encarregue do espólio. Alguém, atrevendo-se bem, canta à capela as palavras do velho, estreiam até o ronga para isso. Escapo-me para as traseiras, falso jardim acimentado, uma roda de cadeiras, núcleo duro chamamos-lhe assim, para mais em dia sem instituições, essas sempre abutres nestes momentos - esqueceram, afinal não vieram. Mas não faltaram.
Ali, entre pesos e alteres, rebuscamos histórias do velho, as palavras vivas, até fugindo-lhe aos livros. Estou na roda, sorrio na memória do seu escarnio contra a urna mercedes que lhe deram e do seu riso ao meu, "
já agora", cangalheiro-motorista que o levava. Lembro-me de uma tinta-da-china que me quis dar, coisa de outro velho, gente de cela próxima, datada "
não pode ser! de certeza que foi depois" de 25 de Abril de 1974, para um dele "
se calhar" para mais risos - e eu envergonhado, a recusar, a "não poder aceitar". Estou na roda, mas sem ser só para lembrar, bebemos o que não bebia o velho, fumamos o que não fumava o velho, conversa de atletas e futebóis que tantas as tinha ele, desprovido de metafísicas elevadoras quando o queria, que lhe assim era a vaidade.
Súbito, no entre-cadeiras já aquecida de polémicas antigas, coisas de bairro e gente, nao de rodapés, baila-nos o dia-a-dia, querelas sérias, cada um à sua, agora uma outra capela, menos trinada ou ritmada confesso. "
Teixeira, o que é que achas?" e eu nada, sou estrangeiro defendo-me, não opino disso da coisa pública aqui - ainda para mais entre gente ali que nunca havia visto. Não me perdoam, fala-se de gente por todos vista e entretanto assassinada, convocam-me de juri, apontador do futuro também. E eu ainda não, insisto no "
sou estrangeiro".
O poeta (mor?) grita-me "
Estrangeiro?!", e nisso já estamos no reino do calor. "
Tu estás fodido", e nisto vem numa sílaba a sílaba, para que não me engane eu no quanto o estou. "
Tu já não sais daqui, vais morrer aqui (
e pobre, ri-se).
Tu és um xidjana." (albino). Há risos, eu tambem, até pelo agridoce susto de morrer pobre. Insiste, bastante aliás, no "
estás fodido", decerto mais importante do que o xidjana, ainda que a este o gargalhe.
Nisso surge quem carrega o nome do dono da casa, pede-me ajuda. Pois ali, em fim-de-festa, já só entre família, e conservadora entenda-se, e irrequietos amigos, há que carregar um convidado, ali a mostrar-se inconveniente na sala até mausoleu. Se posso dar boleia ao quase cronista?, retirá-lo do seio familiar, ainda em luto? Pois claro. Avanço até à sala, onde o parceiro dança só e desacompanhado, evocando, invocando e invectivando passado, presente e futuro. "
Quase cronista", chamo-o, "
estou a avançar para o banquete", esse que nos unia no logo ali, "
queres boleia?". Tranca a dança, regressando dos interiores, e logo me sabe anzol, anzol burguês, a afastá-lo daquele ali, a pedido decerto. Nem hesita, grita-me "
Dar-me boleia?!" "
Queres-me levar daqui?!". Mas quem julgo eu ser, ira-se, não tenho direito a tal coisa. Eu vou sorrindo à repetição da ira, à minha volta só caras fechadas, o desagrado face ao excesso, presumo. "
Dar-me boleia?", insiste, "
tu és um hóspede, ouviste, és um hóspede!",
Quem julgas tu que és, há-de continuar a gritar, enquanto este nada xidjana se vai despedindo, "
minha senhora" para aqui, "
meu caro" para acolá. Já no jardim sei-o ainda no "
és um hóspede". Mesmo que xidjana. Ás vezes.