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O Albino e o Hospede

por jpt, em 20.11.06
(...) Homenageamos o poeta. Ainda recente defunto. Família e amigos juntamo-nos em sua casa, lá no velho bairro subúrbio hoje já feito centro, alguns discursos apropriados ao dia, uma mesa bem-posta, que sempre ajuda, coisas de nova editora agora encarregue do espólio. Alguém, atrevendo-se bem, canta à capela as palavras do velho, estreiam até o ronga para isso. Escapo-me para as traseiras, falso jardim acimentado, uma roda de cadeiras, núcleo duro chamamos-lhe assim, para mais em dia sem instituições, essas sempre abutres nestes momentos - esqueceram, afinal não vieram. Mas não faltaram.

Ali, entre pesos e alteres, rebuscamos histórias do velho, as palavras vivas, até fugindo-lhe aos livros. Estou na roda, sorrio na memória do seu escarnio contra a urna mercedes que lhe deram e do seu riso ao meu, "já agora", cangalheiro-motorista que o levava. Lembro-me de uma tinta-da-china que me quis dar, coisa de outro velho, gente de cela próxima, datada "não pode ser! de certeza que foi depois" de 25 de Abril de 1974, para um dele "se calhar" para mais risos - e eu envergonhado, a recusar, a "não poder aceitar". Estou na roda, mas sem ser só para lembrar, bebemos o que não bebia o velho, fumamos o que não fumava o velho, conversa de atletas e futebóis que tantas as tinha ele, desprovido de metafísicas elevadoras quando o queria, que lhe assim era a vaidade.

Súbito, no entre-cadeiras já aquecida de polémicas antigas, coisas de bairro e gente, nao de rodapés, baila-nos o dia-a-dia, querelas sérias, cada um à sua, agora uma outra capela, menos trinada ou ritmada confesso. "Teixeira, o que é que achas?" e eu nada, sou estrangeiro defendo-me, não opino disso da coisa pública aqui - ainda para mais entre gente ali que nunca havia visto. Não me perdoam, fala-se de gente por todos vista e entretanto assassinada, convocam-me de juri, apontador do futuro também. E eu ainda não, insisto no "sou estrangeiro".

O poeta (mor?) grita-me "Estrangeiro?!", e nisso já estamos no reino do calor. "Tu estás fodido", e nisto vem numa sílaba a sílaba, para que não me engane eu no quanto o estou. "Tu já não sais daqui, vais morrer aqui (e pobre, ri-se). Tu és um xidjana." (albino). Há risos, eu tambem, até pelo agridoce susto de morrer pobre. Insiste, bastante aliás, no "estás fodido", decerto mais importante do que o xidjana, ainda que a este o gargalhe.

Nisso surge quem carrega o nome do dono da casa, pede-me ajuda. Pois ali, em fim-de-festa, já só entre família, e conservadora entenda-se, e irrequietos amigos, há que carregar um convidado, ali a mostrar-se inconveniente na sala até mausoleu. Se posso dar boleia ao quase cronista?, retirá-lo do seio familiar, ainda em luto? Pois claro. Avanço até à sala, onde o parceiro dança só e desacompanhado, evocando, invocando e invectivando passado, presente e futuro. "Quase cronista", chamo-o, "estou a avançar para o banquete", esse que nos unia no logo ali, "queres boleia?". Tranca a dança, regressando dos interiores, e logo me sabe anzol, anzol burguês, a afastá-lo daquele ali, a pedido decerto. Nem hesita, grita-me "Dar-me boleia?!" "Queres-me levar daqui?!". Mas quem julgo eu ser, ira-se, não tenho direito a tal coisa. Eu vou sorrindo à repetição da ira, à minha volta só caras fechadas, o desagrado face ao excesso, presumo. "Dar-me boleia?", insiste, "tu és um hóspede, ouviste, és um hóspede!", Quem julgas tu que és, há-de continuar a gritar, enquanto este nada xidjana se vai despedindo, "minha senhora" para aqui, "meu caro" para acolá. Já no jardim sei-o ainda no "és um hóspede". Mesmo que xidjana. Ás vezes.

publicado às 14:46


3 comentários

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De Fernando a 21.11.2006 às 14:41

Não conhecendo os antecedentes, ou talvez imaginando-os, já que aqui chego catapultado pelo ultimo post de apenasmaisum, apenas quero deixar expresso, se me permite, um humilde louvor por tão interessante e definido aspecto deste seu texto.

Voltarei se possivel fôr
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De Lutz a 21.11.2006 às 14:48

Bela história.
Difícil de compreender para mim, não pela linguagem, mas porque me faltam os conhecimentos para enquadrar os comportamentos, as posturas, que um post, necessáriamente elíptico a este respeito, omite.
Mas acho que percebi o essencial.

O fado do emigrante solitário, como eu, como tu(?), que não se acomoda no pequeno mundo da diáspora da sua comunidade, é este: depois duns anos - cinco, dez? - já não estás em casa, donde tu vieste, e nunca serás um deles, dos que são de para onde foste.
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De jpt a 21.11.2006 às 19:43

espero que sim, fernando.
lutz é isso mesmo. e ainda que isso seja o meu abc profissional pessoalmente é um bocadinhho mais estranho, leva ate a deslizes. bons episodios destes lembram a fluidez do todos-os-dias
ah, esta entrada pega com a anterior, como tentei óbvio

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