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"…cheguei a um acordo perfeito com o mundo: em troca do seu barulho dou-lhe o meu silêncio…" (R. Nassar)
["Shikhani, 28.9.2007; Foto de Pedro Sá da Bandeira"]
Neste ano após-Shikhani
O ano 11 do século começou exactamente na véspera. Preparavam-se as libações apropriadas ao rejuvenescimento do calendário, espraiados ao sol, acalentados pela festa da continuidade que se aproximava, quando tudo foi interrompido, enublado. Os sms, esses tantans de agora, anunciavam, cruzando o país: “Shikhani morreu!”.
O areal onde recebi a nova tem Maputo como horizonte, longínquo como este sempre o é, mas assim de súbito tornado ainda mais inalcançável. E tudo me surgiu como simbólico. O ali estar, defonte à sua cidade agora feita túmulo. A data, fim-de-ano , sempre dada a rescaldos, as contas do deve e haver de cada um. Estas a acusarem-me de não o ter procurado, acompanhado, desculpando-me por não querer perturbar a intimidade alheia. Soube ali que tendo ele perdido a vida desperdiçara eu próprio um pouco da minha, ao não o ter demandado, perguntando sobre aquele seu mundo encantatório, assim deste aprendendo algo mais. E, mais importante, nele fruindo.
Mais tarde, naquela noite, quando nós os vivos comemorávamos este estar vivos, brindei sozinho ao velho que acabara – não sou religioso, a morte é o fim. Fica a memória, sim, mas nos outros, para estes a usarem. A minha memória de Shikhani, o meu artista moçambicano preferido, que dela fazer?, foi esse o meu brinde, meu compromisso comigo mesmo.
Recordo-o com enleio quando, ainda eu recém-chegado a Maputo, fui até Shikhani, então num flat à Samora Machel, um verdadeiro “jardim suspenso”, pejado de pinturas e desenhos. Ali me perdi, em espanto e encanto. Logo agendámos outro encontro, coisa de eu querer ver mais e com mais atenção, e também para preparar uma exposição, que até veio a acontecer. Nesse outro dia fui à casa do bairro do aeroporto, para onde Shikhani se estava ainda a mudar – “e onde há mais luz para ver” disse-me. No quintal, ao sol, foi-me abrindo o baú, dezenas das suas “coisas”, como as declarava, naquela sua voz pastosa, numa placidez até irónica, cruzada por laivos de sorriso que transformavam o seu corpo enorme em quase-criança.
Estava eu absorto no seio das pinturas quando Shikhani anunciou que tinha mais umas obras, e foi buscá-las, para logo surgir com as suas esculturas, arte que eu lhe desconhecia. Foi um embate, o maior que tive no país. Sempre recordo que depois dei comigo sentado num pequeno banco, sem ter reparado como ali chegara, manuseando tudo aquilo que se me desvendava. “De onde lhe vem isto, mestre?”, perguntei, e fui perguntando, ingénuo, como se tal seja coisa que se pergunte. Um cosmos pré-colombiano, passei a dizer, pobre de expressões, a todos aqueles a quem falava, ininterruptamente, de Shikhani. Para tentar expressar a sua radical originalidade, densa, abissal, labiríntica, imersa num frenesim de sentidos.
Foram essas memórias e a de outros breves contactos que com ele tive, mas também dos meus diálogos com a meia dúzia de peças dele que vim a possuir, que me acorreram naquele início de 11. Acabrunhando-me, como sempre a morte o faz? Sim, mas também felicitando-me o acaso da vida, este de o ter encontrado um pouco. E assim que fazer agora, para agradecer essa fortuna?, foi também o meu primeiro sono do ano.
Nem uma semana passara, já cruzara eu a baía de retorno a casa, e de novo soou o SMS-tantan, foi Idasse na alvorada a avisar: “Malangatana morreu!”. O ano começava, trágico, com esta razia nas personagens centrais do país. Pérfida coincidência, disse eu, o racionalista descrente em destinos. Conterrâneos, contemporâneos, colegas, parentes, tanta afinidade entre ambos veio desembocar na mesma foz de tempo.
A morte do velho mestre, o sempre aclamado Malangatana, logo fez explodir a comoção nacional. Pela sua grandeza, homem “maior do que a vida”, feito símbolo do país. Pela sua primazia, verdadeiro apropriador da modernidade no país, e dela reprodutor, incansável disseminador. Pelo seu atrevimento, de tudo tentar, tudo reclamar, tudo agir, no afã de recriar. E porque na sua obra pictórica, às vezes esquecida nas loas que lhe tecem(os), ter convocado para este nosso presente o passado e futuro do seu cosmos, assim tornando-os presente, um presente supra-preenchido, fortaleza de tantas forças, às vezes inebriado – fazendo-me lembrar, europeu que sou, o antepassado Bosch -, outras vezes terrivelmente doloroso. Explícito. E assim, no seu reclamado atrevimento e no seu mundo pintado, Malangantana surgiu aos olhos dos compatriotas o moldador da identidade comum, fez-se princípio.
Mas fez-se também como se tudo. E esse seu viver voraz foi-o também na morte, como se tudo se apagando em seu torno. Deixando-me assim com este luto, amargo, que desde então ocorre. No qual caminho, no mesmo areal daquele último dia antes de 11. Que fazer com o “meu” Shikhani? Esse das esculturas excêntricas, disformes, desordenando a ordem humana. Dos constantes labirintos, às vezes até figurativos outras apenas eles. Do doloroso despojamento, naquelas frenéticas inconclusões disfarçadas de meros passeios geométricos. Eu sigo a olhá-lo como um nosso desvendar. Dos abismos aos quais pertencemos. Dos implícitos. A identidade, afinal. Sem fronteiras. A dos homens.
Quando terei, e quando teremos, a coragem de voltar a Shikhani?
jpt e PSB (texto e fotografia publicados na edição africana do jornal Sol de 23.9.2011)