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"…cheguei a um acordo perfeito com o mundo: em troca do seu barulho dou-lhe o meu silêncio…" (R. Nassar)
Está hoje à venda a primeira edição moçambicana do jornal "Sol", um acontecimento no seio da imprensa moçambicana e, até, portuguesa. Desejo a melhor sorte para a iniciativa, que vem na sequência de idêntico projecto realizado em Angola. Consiste na articulação de uma parte da edição semanal portuguesa com uma larga secção moçambicana, para além da realização de uma revista exclusivamente dedicada a questões moçambicanas intitulada "Lua".
De vez em quando meto um texto no "Sol" africano e por coincidência esta primeira edição tem um desses. Aqui fica a cópia, na edição impressa metida na coluna "Carta de Moçambique". Foi simpático que saísse nesta primeira edição, ainda para mais recebida numa agradável recepção, polvilhada de canapés do mais fino recorte técnico (algo que muito aprecio) e da presença de bons amigos.
Aqui fica cópia do texto "Redes Culturais", publicado hoje no "Sol" de Moçambique, onde em parcos 4000 caracteres procuro uma esperança no meu país.
REDES CULTURAIS
De Lisboa chegam rumores da reestruturação na administração pública portuguesa. E neles se especula sobre a fusão do Instituto Camões com o Instituto Português de Apoio ao Desenvolvimento. Assim se unindo o eixo estatal da Ajuda Pública ao Desenvolvimento, a dita “cooperação”, nos sectores da cultura e do ensino, as dimensões verdadeiramente estruturantes a longo prazo no relacionamento lusófono.
A acontecer essa fusão vejo-a com muita simpatia. Algumas dificuldades surgirão, exigindo um esforço extra de flexibilidade na sua administração, dados os diferentes âmbitos e metodologias das actividades tuteladas. Nisso realço a rede de leitorados, a dimensão universitária do Instituto Camões - e que tão frutuosa tem sido em Moçambique, muito pela excelência dos quadros aqui destacados –, a qual exige uma abordagem peculiar, distante do comum ao “reino da cooperação”.
Quanto às restantes áreas parece-me que esta reestruturação tem hipóteses de ser virtuosa, uma oportunidade única para o relançamento da acção cultural externa do Estado português, bastante enfraquecida. Poderá isto parecer um contra-senso, face a um ciclo de redução da sua autonomia administrativa, a somar aos efeitos da crise económica. Esses que deprimem os orçamentos no sector da cultura, sempre visto como dispensável, pois “improdutivo”, coisas desse pobre economicismo que continua paradigma de entendimento, apesar do gigantismo da crise tanto o refutar.
Especifico mais. Não me centro tanto numa acção cultural externa de representação estatal, mais ou menos sumptuária. Nem mesmo a algumas tentativas para induzir a internacionalização dos agentes culturais nacionais, introduzindo-os nos grandes mercados mundiais. O primeiro vector não é fundamental, ainda que legítimo. E creio que na actualidade o Estado português não tem competência para influenciar os grandes cenários culturais internacionais, ainda que o seu apoio seja sempre desejável.
Penso numa área mais desafiante, onde as instituições estatais poderão ter um papel influente, nesta sua nova configuração que une cooperação e acção cultural. Trata-se da acção nos países lusófonos, a qual se tem centrado na existência centros culturais nas capitais, que tiveram como objectivo inicial serem locais de mostra de cultura portuguesa e, em segundo lugar, de criação de um circuito artístico-intelectual lusófono.
Duas décadas passadas sobre os programas iniciais constata-se a modéstia do obtido. Nem se criou uma política de itinerância e divulgação de agentes culturais (por exemplo à imagem, que não à dimensão, da “francofonia cultural”) nem mesmo se criaram políticas culturais significantes e continuadas. Há uma prática à mercê dos constantes constrangimentos orçamentais e das possibilidades incidentais, nisso resultando um conservadorismo que ecoa a falta de dinâmicas internas. O que acontece é a preservação dos centros culturais, quais “casas da cultura” do passado, incapazes de seguirem as dinâmicas culturais existentes e muito menos de as induzirem, como seria seu objectivo. Existem para existir, tornaram-se o fim em si mesmo.
Recordo José Soares Martins, durante longo tempo conselheiro cultural português em Maputo, na inauguração do Camões de Maputo, em 1997: “Não se fechem no centro cultural”. Entenda-se, não se assumam os centros como objectivos mas apenas como meios. Hoje, olhando a sua acção, e vendo-a exemplo de outras, encontra-se uma estrutura pesada e cara, mas sem recursos humanos à altura dos desafios, por falta de formação e de horizontes. Um centro cujas actividades mais afirmativas derivam da capacidade dos leitorados, que lhes são externos. Ou seja, uma instituição que cumpre o propósito de existir.
Por isso saúdo esta fusão com a área da cooperação. À imagem desta actividade poder-se-á esperar um organismo menos autocentrado, e mais aberto à articulação com os movimentos culturais existentes, oriundos dos vários países, imaginando-se até como facilitador de parcerias e não tanto como agente condutor. Não se trata de utopias, veja-se como a última década testemunhou só em Moçambique a afirmação das energias constantes expressas no Kinani, na PhotoFesta (entretanto interrompida), das Bienais do MUVART, do Dockanema, para citar os mais sonantes. Tudo movimentos endógenos, internacionalizados, oriundos das energias da sociedade civil.
É esse o caminho para a acção cultural patrocinada pelo Estado português. Apoiar em termos de recursos executivos e até conceptuais, servindo-se de instrumentos existentes (como os velhos programas INOVARTE ou Contacto) ou outros. Em tempos de “vacas magras”? Sim, com toda a certeza. Pois até será mais barato do que os pesados centros culturais, agora introspectivos.
No fundo, e neste tempo de “redes sociais”, é altura de entender que a acção cultural externa é a de apoiar e induzir “redes culturais”. Tendencialmente descentradas. E é esse descentramento o grande desafio que se coloca à nova administração. Pois significa perder para as dinâmicas sociais as prerrogativas da selecção sobre o que é relevante. Ou seja, significa democracia. Cultural.
jpt