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O Emigrão

por jpt, em 24.12.11

 

Um dos excelentes volumes que Manuela Ribeiro Sanches organizou e fez publicar na Livros Cotovia é a colectânea "Portugal não é um país pequeno. Contar o "império" na pós-colonialidade" (2006), 14 preciosos textos dedicados às narrativas coloniais portuguesas [assim mesmo, sem exagero, e dos quais gosto de salientar, com a injustiça do interesse próprio, os artigos de João Leal e de Harry West]. O volume é posfaciado, em jeito de "comentário", por Miguel Vale de Almeida [MVA] com um texto de grande actualidade.

Nele MVA utiliza o célebre episódio do "arrastão" acontecido a 10 de Junho de 2005 para dissecar o Portugal de então (de agora). A explosão do boato de um arrastão na praia de Carcavelos provocado por jovens negros, ditos "imigrantes de segunda ou terceira geração" (em sim mesmo uma expressão sintomática) oriundos de bairros periféricos da grande Lisboa, e que causou uma enorme comoção nacional, reacções abruptas na comunicação social, histeria securitária, manifestações da extrema-direita contra a imigração (e, em contra-corrente, veio mesmo a nomear o mais conhecido blog de esquerda do então crescente bloguismo português).  Na realidade o arrastão não aconteceu, enquanto facto, foi um mal-entendido no local exponenciado pela ligação não-mediada (não demorada, direi) entre os cidadãos (seus telemóveis e computadores) e a imprensa. Nesse eixo de comunicação o rumor assumiu carácter constitutivo do real, e o arrastão aconteceu - não na praia de Carcavelos, como muito bem diz MVA, mas nas mentes e temores de inúmeros portugueses.

O autor retira deste acontecimento duas conclusões sobre as auto-representações de Portugal, por ele desnudadas:

a) o papel da imigração como delas constitutivo. Com efeito na endo-narrativa nacional ao Portugal colonial que "não era um país pequeno" [o volume leva como título a célebre palavra de ordem colonial "Portugal não é um país pequeno", cujo iconografia abaixo reproduzo], imperial, atrasado, anti-democrático, isolado e de emigração, e assim pequeno, sucedeu um Portugal póscolonial, "pequeno" na sua geografia, mas democrático, europeísta, desenvolvido e de imigração, e assim "grande" no seu cosmopolitismo. A transição emigração-imigração é assim uma dimensão crucial da representação da "grandeza" portuguesa, da perenidade desta acrescento eu. Pois ao pequeno Portugal de emigrantes sucedeu-se o grande Portugal de imigrantes [ainda que o autor lembre, já em 2006, o quão factualmente (numericamente) errada era esta ideia, dado o crescimento da emigração portuguesa ser notório];

b) por outro lado MVA frisa que o episódio do "arrastão" e o tom racialista, xenófobo e racista que o rumor assumiu, bem como o das reacções havidas, desnudou as contradições das características subjacentes ao velho discurso lusotropicalista (e lusófono) da inexistência de racismo na sociedade portuguesa, concepções assentes no escamotear das dimensões racialistas e racistas que as produziram em pleno regime colonial. Concepções de exclusão, temor e de crença numa superioridade que, como o episódio mostrou, subsistem na actualidade mesmo que menos explícitas nos discursos do quotidiano.

Nestes últimos dias não pude deixar de recordar este texto a propósito da polémica em torno da entrevista de Pedro Passos Coelho [ler aqui; sobre isso já escrevi 1, 2, 3,  4] em que o primeiro ministro terá mandado emigrar os professores desempregados. Esta interpretação da entrevista correu célere, provocando grande comoção nacional: o presidente corrigiu-o, o proto-candidato presidencial Marcelo Rebelo de Sousa criticou-o, a oposição em peso também, o sindicalismo bramou, enquanto alguns do seu círculo tentaram uma inábil fuga em frente, em particular Paulo Rangel, ou recuperam velhas declarações desse teor de responsáveis socialistas. Mas nada disso funciona, é apagar fogos com gasolina.

De súbito brotou uma  onda de repulsa pelas palavras de PPC , na imprensa (entre inúmeros exemplos o institucional Expresso dá-lhe capa, a SIC realiza uma entrevista fazendo também intervir, em golpe de asa, questões associadas à "condição feminina") e bloguismo, nas fervilhantes redes sociais, nas conversas (até em Maputo). Coros de protestos surgiram por todo o lado, uma patética carta mandando o governo emigrar tem eco espantoso, a imprensa rejubila, os cartoons sucedem-se, académicos que tantas vezes ouvi protestar contra o excesso e falta de qualidade e de pertinência do ensino superior descentralizado (na multiplicidade distrital e na "universitarização" dos institutos politécnicos) e do privado (explicitamente considerados como produtores de professores lumpenizados) erguem-se, irados, acompanhando escritores, jornalistas e outros fazedores de opinião, e até o mundo de Salazar, aquele produtor do "salto", da emigração clandestina e miserável, é agitado como avatar dos objectivos deste governo, pelas teclas da velhíssima extrema-esquerda delinquente e reproduzida, em catadupa, pelos seus antigos adversários. Também na direita nacionalista se ouvem impropérios, e até já (pelo menos nos passos perdidos do facebook) apelos à expulsão dos imigrantes. Certo que a crise actual acicata os cidadãos contra o poder, e em particular o uso da palavra pública (hoje felizmente tão disseminada) dos sectores da oposição, mas a dimensão e os contornos deste episódio aparentam ultrapassar essas dimensões, (re)iluminando características centrais das representações dos portugueses sobre o seu país.

Na verdade PPC não disse o que se lhe aponta, tudo isto é um verdadeiro Emigrão. Não regresso em detalhe às suas declarações. Mas qualquer leitura desapaixonada poderá constatar que PPC anuncia o fim do ciclo emigratório para Angola [140 000 pessoas, ao que consta, e a esmagadora maioria na última década, após a morte de Jonas Savimbi], algo óbvio para quem viva em Maputo e constate aqui os patrícios regressados ou oriundos daquele país. E que apela a uma reconversão profissional dos cidadãos portugueses. Uma linha de pensamento inversa da que lhe atribuem. Mas o conteúdo efectivo das afirmações não é verdadeiramente importante pois, como muitos me têm afirmado, "não disse mas parece ter dito", denotando o quanto todo este processo ancora numa vontade interpretativa, de adesão ao rumor. De crença, de querer crer. O rumor social assumiu tal virulência que se torna realidade. Fenecerá agora com as festas natalícias e será, já menos potente, recuperado na guerrilha política subsequente.

Mas o que este Emigrão me traz são exactamente os dois pontos que MVA sublinhou no perspicaz texto a que acima aludi, estruturantes da representação dominante sobre Portugal e, como se nota agora, vigentes em contextos que - em parte - aparentam ser ideologicamente diversos. Mas assim bem mais unos do que apartados:

a) o lugar da e/imigração na narrativa actual da portugalidade. Nesta a ideia de uma "grandeza" (cosmopolita, desenvolmentista) de Portugal assenta no facto de ser receptor de mão-de-obra e não seu exportador. Mesmo que essa ideia não corresponda à realidade factual Face à crise financeira e económica actual o normal ascender da realidade da emigração, já duradoura, para a esfera pública, política, devasta a auto-representação (algo mistificada, sublinhe-se) portuguesa - e também por isso a conjugação na indignação da direita mais nacionalista com os sectores de esquerda, e mesmo a sua penetração em políticos ligados à área do poder. O drama deste Emigrão deriva da ideia de que Portugal se apequena, se descosmopolitiza neste processo. O aparente desvaler aos professores excedentários surge como a realidade desvalida do país e do seu futuro. A funda questão não é pois a da referência à emigração pelo poder político mas sim a da sua não elisão, dado o seu carácter poluente. Pois agora que de novo país emigrante como recuperar a "grandeza" nacional, vector considerado necessário na configuração simbólica?

b) a perenidade da visão lusocêntrica do real, a tal manipulação de um lusotropicalismo (actualizado em lusofonia). Com efeito as ditas "propostas" de emigração de professores desempregados para África não são discutidas na sua viabilidade política ou prática, nisso sobressaindo a ideia generalizada de que elas são possíveis e, até, desejadas alhures. Se por um lado isto recupera acriticamente a imagem colonial de uma sociedade portuguesa produtora de civilização alhures através da acção pedagógica (algo tão bem abordado no recente "Livros Brancos, Almas Negras. A "missão civilizadora" do colonialismo português, c. 1870-1930", de Miguel Bandeira Jerónimo, ICS, 2010), torna-se também óbvio que a esta recepção corresponde a ideia do "espaço plano", "afectivo" da lusofonia, o tal espaço lusotropical desprovido das rugas da conflitualidade colonial (e até actual). Mas este complexo da actual representação póscolonial portuguesa é ainda sublinhado pela introdução explícita das hierarquizações consideradas aceitáveis ("naturais"). E isso é cristalino quando discursos sobre a emigração de quadros elevados (inseridos em grandes empresas ou em esquemas multilaterais) não são questionados, incidindo a crítica apenas sobre a hipotética proposta de emigração de sectores não privilegiados. Que, como é óbvio, colocariam em causa a supremacia sociológica e económica da mão-de-obra portuguesa no amplexo lusófono.

Ou seja, tal como no caso do "arrastão" este "emigrão" demonstra bem as dimensões de hierarquização racial e socioeconómica internacionais (póscoloniais) que suportam a representação da portugalidade. E o seu, afinal, pouco cosmopolitismo.

Adenda: aqui fica a o célebre cartaz colonial do "Portugal não é um país pequeno" que dá título (e temática abrangente) à obra de organizada por Manuela Ribeiro Sanches.

jpt

publicado às 03:26


2 comentários

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De jpt a 24.12.2011 às 12:37

Sim, JL, se quiser ter a paciência os textos do ma-schamba que são ligados neste postal poderá ler o que sobre isso referi. Não, JL, não há insinuação nenhuma, há declarações sobre uma realidade. Cometo a indelicadeza, que acredito não ser extrema, de citar o texto que aqui em cima escrevi: "Mas o conteúdo efectivo das afirmações não é verdadeiramente importante pois, como muitos me têm afirmado, “não disse mas parece ter dito”, denotando o quanto todo este processo ancora numa vontade interpretativa, de adesão ao rumor. De crença, de querer crer." Quanto ao resto, e até porque o Natal vai apagar isto (pelo menos por algum tempo), o que realmente me interessa é mesmo o que de profundo isto mostra. Porque do superficial mostra acima de tudo uma gigantesca desonestidade intelectual dos escribas, a política é aí o terreno do vale-tudo. Mas isso é a espuma dos dias
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De jorge leite a 24.12.2011 às 12:12

Pc nao diz, insinua. Depois chegam os ajudantes ministros e ajudantes de ministro para o dizer de facto. Até ja falam em criar uma agência de apoio...

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