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Uma bela entrevista de António Cabrita à revista brasileira "Pausa". Sobre ele próprio. Sobre poesia, poetas, cinema. A situação das áreas culturais em Moçambique e Portugal, etc. Tudo isto a propósito das suas frenéticas publicações (o Cabrita acaba de publicar três livros) em particular o romance "A Maldição de Ondina", publicado no Brasil.

Sublinhando esta recomendação para que se leia a entrevista aqui transcrevo a visão do António Cabrita sobre dois temas que têm sido recorrentes aqui no ma-schamba: a lusofonia e o acordo ortográfico.

Está muito bem o Cabrita.

 

O que você acha do acordo ortográfico e da chamada lusofonia.

O acordo não me ofende nem me arrefece. Como dizia o Deleuze há que gaguejar na língua para que a língua no seu próprio interior se torne bilingue, isto é, cito-o, o multilinguismo não é apenas a posse de vários sistemas mas antes de tudo a linha de fuga ou de variação que afecta cada sistema impedindo-o de ser homogéneo. Isto que sublinho é o que me importa no manejo de uma língua, é o que sempre foi feito por alguns e é o que continuará a ser feito, e isto não há acordo que o impeça. Agora, há o aspecto político da questão e aí é claro que o acordo existe para favorecer a indústria do livro brasileira, o resto são balelas.

Quanto à lusofonia manifesto reservas. Não sei como é no Brasil mas em Portugal fala-se em lusofonia como um efeito hipnótico que levaria logo a uma bacalhauzada entre os falantes de português. Para Moçambique é um termo controverso, associado ao neo-colonialismo. E de facto é preciso perguntar que sentido faz falar em «lusofonia» num país em que só oito por cento dos seus habitantes é que tem o português como língua mãe. Mesmo que o português seja a língua oficial, os códigos e as performances da língua aqui são distintas, verificando-se um crescendo de contaminações das línguas nativas e do inglês na textura do português, assim como a presença de deslizes semânticos que introduzem variações quer de significado, quer sintácticas, que tornam a sua tradução uma história de diferimento e não um rastro contínuo. Aparentemente falamos a mesma língua, mas os códigos e protocolos da língua e os valores dos seus significados são tão díspares que nos sentimos num perpétuo território estrangeiro, o qual está minado pelos equívocos e mal-entendidos com que a aparência de uma língua comum, transparente, tornou bélico o terreno. A lusofonia é uma cortina de fumo para que as embaixadas possam não falar entre si de coisas concretas, urgentes e necessárias. Com o álibi dessa suposta base identitária faz-se de conta que está tudo bem para não se investir em nenhum tipo de comprometimento sério.

É como Prémio Camões. Em 2001 fui ao Brasil, tinha acabado de lançar Inferno, que escrevi em parceria com a Maria Velho da Costa, a quem fora atribuído o prémio há 2 anos atrás. Fui a várias editoras brasileiras tentar vender esse e outros livros dela. Ninguém sabia quem ela era. O eco do Prémio Camões não tinha saído das embaixadas. É patético. Não entender a inocuidade disto é grave, desajustado e redutor. Por isso a lusofonia lembra-me a deselegância de estar a martirizar uma noiva, na véspera do casamento, falando-lhe obsessivamente do antigo namorado que ela faz tudo para esquecer.

O imaginário lusófono é como o sentimento da queda no Paraíso bíblico: há um misto de culpa, de rejeição e de tremenda atracção pela Eva. O aparente decoro da Eva não nos deve deixar impotentes, e convém voltar a fecundá-la, com a diferença de que agora pode ser ela a tomar as rédeas do jogo, tendo o papel activo na função. É preciso aceitar a troca das posições no leito para que a coisa volte a animar. Enquanto não se entender esta coisa primária, a lusofonia não passa da simulação das erecções de um anão ao espelho. O Eduardo Lourenço já disse tudo sobre esta matéria no seu devido tempo, mas como os políticos portugueses não têm mais nada a oferecer senão retórica agarram-se à miragem.

jpt

publicado às 11:37


10 comentários

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De Endovélico a 20.01.2012 às 01:57

Gustavo,

É verdade que há muito de mito e de hipocrisia na visão que os brasileiros - mais do que os portugueses - fazem das suas relações interraciais. Mas o mito também é um sintoma (que os outros povos colonizadores ou esclavagistas não manifestam) da consciência que se tem de nos termos comportado mal com os negros. Há mais vergonha do que orgulho nessa procura de provas de um convívio pacífico. E, pelo menos em Portugal, essa consciência de que o nosso comportamento ficou aquém do que deveria ter sido, tem ajudado a desenvolver uma relação pacífica com os imigrantes oriundos de África. Se economicamente esses imigrantes ainda se acumulam no baixo da escala, também é verdade que a ascensão social de muitos deles já é um facto. E a população de estudantes universitários africanos que já é significativa nalgumas universidades, ajuda a demonstrar que a acusação de inferioridade intelectual dos negros é mais um mito. Por razões familiares que me abstenho de explicar, tenho tido a oportunidade de ver o relacionamento perfeitamente pacífico de adolescentes de todos os matizes raciais, em que a referência à cor da pele é sempre feita no mesmo tom em que, antigamente, nós nos referíamos aos "ruços" e aos "cabeças de cenoura". Tendo vivido algum tempo no Rio de Janeiro, não tenho dúvidas de que a nossa tolerância racial, em Portugal, é mais sólida do que a que se proclama tantas vezes no Brasil. A miscigenação foi naturalmente mais longe no Brasil, mas lá misturam-se os genes mas não se misturam os memes...

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