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"…cheguei a um acordo perfeito com o mundo: em troca do seu barulho dou-lhe o meu silêncio…" (R. Nassar)
(Fotografia de Miguel Valle de Figueiredo)
Em Portugal o Bloco de Esquerda propôs no parlamento uma lei contra as touradas, querendo proibir financiamentos indirectos do Estado a esses espectáculos e a sua transmissão televisiva nos canais públicos. E ainda a sinalização dessas transmissões nos canais privados (intentando-lhes uma "marginalidade"). Não sou adepto da "festa brava", nunca assisti a uma tourada, e nisto a minha visão não é nada a la Hemingway, foi nos tempos de adolescência muito mais moldada por D. H. Lawrence, com tudo o que de datado e preconceituoso aquela "Serpente Emplumada" se emplumou com o tempo.
Ainda assim este afã anti-tauromáquico desagrada-me. É certo que corresponde a um crescente sentimento de protecção dos animais, até político, e neste âmbito nada mais é do que uma mitigada derivação, até decadência, dos movimentos ecológicos, uma "petização" das grandes agendas ecológicas de finais de XX. Um processo actual que tem inscrições, legítimas e benfazejas, nos cidadãos - basta passear nesse Rossio actual que é o facebook para ver a quantidade de canídeos e (menos) gatídeos para os quais se pede protecção.
Mas a questão política não habita aí. O aproveitamento deste assunto pela esquerda totalitária e populista, na sua constante agenda agit-prop, tem outras raízes. Significativas num país onde os movimentos ecológicos nunca alcançaram efectiva influência no âmbito político (um pequeno e muito pessoalizado movimento em 1980s por via do partido monárquico; uma breve ascensão de figuras no PSD de finais dessa década, logo enviadas para exílios "dourados" decerto que para "não incomodarem"; e alguma capacidade de intervenção social de organizações - como a Quercus - mas sem grande peso estrutural). A fragilidade política da cidadania ecológica está bem simbolizada na repugnante pirataria simbólica realizada pelos comunistas, que há décadas mantêm a fraude parlamentar dos "verdes", um acto de corrupção por via de apropriação de recursos estatais e de imoralização do regime parlamentar que parece já a ninguém chocar.
O radicalismo comunista avança contra as touradas por intentos propagandísticos, a tal festividade "fracturante" que o fez crescer em XXI, sempre atenta às marés das sensibilidades da cidadania, estas difusamente influenciadas pelas questões internacionais, particularmente se americanas. Mas a base não está apenas aí.
A questão tauromáquica radica numa aversão com um mundo social rural (ainda que com as "modernas" características rurais do Portugal de hoje). É óbvio, até pela linguagem constantemente usada (as acusações de "selvajaria", "barbárie", "primitividade", "tradicionalismo", as reclamações de projectos de "modernidade", "civilização"), que nos deparamos com uma população (neo)urbana enfrentando com desagrado as características remanescentes de um mundo ruralizado. O desagrado com a tourada não é apenas com o sofrimento dos bichos (ainda que isso seja constitutivo). É com aqueles contextos sociais, com as suas formas publicitadas de adesão religiosa, de vida familiar, de estrutura social e suas hierarquizações explicitadas, de terratenência (ainda) e de reprodução de redes sociais. As quais são celebradas, implícita e explicitamente, na tal "festa brava".
A desvalorização da tourada começou no 25 de Abril (acima de tudo a nível simbólico, identitário do país) por questões de "inimizade" socioeconómica, de transformação do regime político, mas regressa agora num outro contexto por "inimizade" cultural. Os pequenos urbanos, como nos séculos anteriores, têm repugnância pelo estertor rural. É apenas uma pobre, e serôdia, sequela do "iluminismo". A este movimento político anti-tauromáquico não repugna o sofrimento dos bichos mas sim a vivência dos homens. As suas bases sociais urbanófilas exigem, de modo até inconsciente, a padronização total do país. O que coincide com o totalitarismo inscrito na génese e na actualidade dos partidos que o agitam. O sempre afirmado "direito à diferença" é, claro, como sempre, siamês dos intentos de exclusão.
Na base deste movimento político pretensamente ecológico da "esquerda" portuguesa está não só esta vontade de aplainar o país (o que não é novo na história). Está também, como surge quase sempre nas suas campanhas políticas, um profundo reaccionarismo, uma estruturante irreflexão sobre as suas constituintes ideológicas. O frágil movimento ecológico português, nas suas explosões políticas, nunca abordou sistemicamente as formas de industrialização animal, de ordenamento territorial, nem mesmo ultrapassou o produtivismo agrícola. A vida animal (e correlativa flora) não tem sido verdadeiramente uma agenda. São agora os touros - insisto, fundamentalmente como forma de chegar, transformar, os homens. Com pitada de propaganda auto-glorificadora.
Para o movimento político este incómodo com a "barbárie" tauromáquica não tem qualquer relação estruturante com os (sofridos) animais. Isso denotando é o exemplo extremo de que os mesmos pequenos burgueses (pequenos urbanos), e seus deputados, que tão solidários são com os pobres touros, não têm qualquer pejo em levar as suas crianças aos zoológicos - e a ideia de que uma tarde lancinante no final da vida de um bovino é pior do que vidas de confinamento para um felino ou um primata, ou outros animais, é absolutamente desprezível. Nenhum movimento de cidadania se levanta contra o "zoologismo". Nem face ao sofrimento animal assim infligido, nem face às concepções culturais sobre o mundo natural e sociopolítico que o "zoologismo" reproduz, inscrevendo-as nas novas gerações.
Demonstrando o impensamento constante, estrutural, da pequena-"esquerda" populista? A sua mediocridade intelectual? Sim. Mas muito mais do que isso, mostrando a sua adesão aos modelos políticos e ideológicos que constituiram o movimento "zoologista", de apreensão colonial da natureza, de apropriação e devastação ecológica. E de exposição dos seus "restos", exóticos, assim "zoologizados". No fundo, a actual "festa brava" do movimento anti-tauromáquico é isto, apenas isto. A demonstração, radical, do profundo reaccionarismo do comunismo radical português. Muito por ignorância, certo. Mas muito por perfídia. Propagandística mas, muito muito mais do que isso, ideológica.
Abaixo ilustro o que o Bloco de Esquerda (e seus "companheiros de estrada") não acham prioritário, nem mesmo necessário, discutir. Pois não lhes afronta o mundo social e cultural tal qual habitam e fruem. Ou seja, o mundo globalizado, e globalizado "daquela maneira", colonial, apropriadora, "expositiva" onde frutificaram. Aquela globalização que tanto choram, e reclamam por manter.