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Cabrita & Forjaz

por jpt, em 05.06.12

 

(o texto para a edição desta semana do "Canal de Moçambique") 

 

Cabrita & Forjaz

 

Nestes últimos anos a Escola Portuguesa de Moçambique tem tido uma heterogénea e interessante actividade editorial, a qual não tem tido a atenção devida, porventura devido às modalidades não comerciais da sua distribuição. Três linhas se salientam: livros infantis, bem conseguidos, no qual saliento um texto de Mia Couto, ilustrado por Malangatana, que tem passado ao lado de um necessária crítica; a colecção “Acácia”, de irregular periodicidade, uma série de pequenas caixas-livros organizada por António Cabrita que junta textos nacionais, incluindo alguns inéditos, com literatura estrangeira, entre inéditos e clássicos, o que é único no país. E, agora, entrevistas com vultos culturais moçambicanos, também elas realizadas por António Cabrita.

O primeiro desses livro-entrevista, “Kok Nam, o homem por detrás da câmara”, data de 2010 e veio combater o silêncio sobre a obra do fotógrafo. E foi, para muito daqueles que o desconhecem, uma muito agradável surpresa. Pois Kok Nam, homem da imagem e não da escrita, e também de poucos (ou nenhuns) discursos, ali surge com uma profundidade analítica, do seu percurso, do seu ofício e do seu país, que quem o conhece reconhece. Mas que era urgente registar em documento, tornando-a acessível a todos.

Agora saíu o segundo volume desta iniciativa, “José Forjaz. A paixão do tangível, uma poética do espaço”. Neste caso a dimensão é diversa, pois sobre o arquitecto há já publicações e ele próprio é homem (também) da escrita. O que em nada retira interesse à obra, uma acessível forma para aceder ao pensamento e ao percurso do (re)conhecido arquitecto.

Não exagero, nem apouco os seus colegas, ao lembrar que no país José Forjaz é o arquitecto, de tal modo que a profissão quase surge como dele sinónimo, tamanha a ref(v)erência que se lhe atribui. Tal dever-se-á à importância da sua obra, internacionalmente reconhecida, ao seu papel fundacional na escola de arquitectura do país e ainda ao facto dele corporizar alguma continuidade, no sentido de transição e não de mera filiação, com a arquitectura pré-nacional. À importância da sua personalidade somar-se-á ainda o fascínio que a personagem José Forjaz produz naqueles que o contactam. Homem sedutor, não no sentido melífluo mas sim como encantatório, pela sua densidade intelectual.

Refiro este último ponto não para me atolar num tom intimista mas para salientar uma das dimensões interessantes do livro. Pois o velho Cabrita, ele próprio homem de muitas andanças (e entrevistas), surge ali como encantado. O que se traduziu numa sumarenta conversa, temática sem a ânsia da completude ou (pior) da cronologia. Gerando um texto que poderá servir para que os mais-jovens jornalistas nele possam compreender as artes da entrevista. Que implicam, claro, alguma cultura geral e alguma preparação específica. E, acima de tudo, interesse no outro. Coisas que parecerão óbvias mas que, infelizmente, não o são.

Isto é um “apelo à leitura”, não uma resenha do livro. Uma tão longa carreira não é resumível numa entrevista, e o texto não o intenta. Nele abordam-se algumas questões centrais, a sua concepção de arquitectura, das relações desta com a arte, o planeamento urbanístico no Moçambique colonial e nacional nas suas relações com a sociedade, e, claro, ainda que de modo muito resumido, as linhas condutoras da obra do entrevistado.

Mas mesmo sem resenha refiro uma linha de conversa que gostaria que tivesse sido desenvolvida. Forjaz, sabiamente, rodeia o epíteto “Arquitectura Tropical” desmontando-lhe uma hipotética unicidade. Apenas aflorada, esta questão, a da “arquitectura entre-trópicos” nas suas plurais condicionantes ecológicas e na sua miríade sociocultural, despertou-me a curiosidade. Exigindo, porventura, um tomo 2 à obra …

E ainda dois pontos centrais. A proposta de uma arquitectura despojada, “desadornada” que se associa à postura filosófica que anuncia, a da vida como desaprendizagem, como de avanço libertário até uma “inocência na atitude criativa”, como se um caminho até uma intuição poética. Sendo certo que consciente das algemas dos “padrões” de compreensão e acção que o constituem, Forjaz persegue a libertação do poluente que lhe amputa o ser. É óbvia a antítese face à ideia materialista e cumulativa dominante, a da adição de saberes e bens (e adornos arquitectónicos). Como se um manifesto, individual, por um ascetismo ético, intelectual.

É por esse eixo que encontro o ponto nevrálgico desta conversa na referência aos seus projectos de templos cristãos (p.55), projectando e reproduzindo uma particular ideia da vida religiosa, da ascese. Imediatamente confrontada (e também por Cabrita) com a vida lúdica, as discotecas (locais de “caça”, dizem). De súbito temos, e numa apenas entrevista, muito mais do que isso. Enfrentamos uma visão antropológica do homem, a velha dicotomia corpo e alma, ascese e pecado, bem e mal. Tudo o que uma particular tradição tem transportado, tentado edificar (querendo extirpar os êxtases “xamânicos” ou as comunhões colectivas, por exemplo). Esse projecto de uma modernidade, querendo modelar uma forma justa, “ética”, de transcendente. De homem. De mundo.

Num país como Moçambique, onde a grande revolução que vem decorrendo é a religiosa, este livro surge assim como crucial. Sobre Forjaz. Mas também sobre a modernidade. Uma bela conversa entre dois belos interlocutores. Modernistas. Remoendo, quiçá até cansados, estas afinal tão múltiplas modernidades. Um documento. A ler.

jpt

publicado às 22:41


2 comentários

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De jpt a 05.06.2012 às 23:59

Porventura, mas aqui refiro-me ao livro, no qual não são abordados, talvez porque essa associação tem sido bastante referida, Pancho Guedes bastante abordado e Malangatana muito falado (mas pouco analisado) no contexto moçambicano, após a morte. Até breve, grato pelo seu comentário
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De Fernando Alves a 05.06.2012 às 23:23

Já agora seria também de referir a possível influência do "mestre" Pancho Guedes, que potenciou a genialidade de Forjaz e a grandiosidade de Malangatana, formando um triângulo artístico que associou a modernidade e a africanidade.

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