Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]
"…cheguei a um acordo perfeito com o mundo: em troca do seu barulho dou-lhe o meu silêncio…" (R. Nassar)
Este é o texto que enviei para a edição de hoje do "Canal de Moçambique". Já vi que não saíu, talvez por o ter enviado em cima da hora de fecho. Talvez porque foi importante o Michael Moore ter tido uma página ... (enfim, não posso deixar de resmungar um pouco). De qualquer forma aqui fica o meu "Ao Balcão da Cantina" desta semana. Com uma vénia ao Augusto Carvalho:
Um adeus à estação arqueológica da Matola
Ali na Matola existiu até agora uma estação arqueológica. Sobre este “sítio” recorro a Teresa Cruz e Silva, no seu texto “O sul de Moçambique e o povoamento da África sul-oriental na idade do ferro inferior. Algumas considerações”, editado pelo Centro de Estudos Africanos em 1978: “A estação arqueológica (25º 57’ S, 32º 27’ E) situa-se a cerca de 20 metros acima do nível do mar, e a cerca de 1500 metros do rio Matola. (…) Concluímos que as suas características são da Idade do Ferro Inferior, e apresentam tipologicamente, fortes ligações com o material de Kwale no Quénia, Nkope a sul do lago Niassa, e Silver Leaves em Tzaneen, no nordeste do Mpumalanga” (actualizei os nomes respeitantes a entidades políticas actuais). Com isto está-se a falar de dados respeitantes ao início da Idade de Ferro na África Austral, associada à expansão nesta área das populações a que nos acostumámos chamar “Bantu” e à introdução novos de padrões culturais, a agricultura, a domesticação de animais, a tecnologia do ferro e a sedentarização. Para além da disseminação de padrões linguísticos, a tal mancha “bantu” que se tornou dominante. No respeitante aos dados da estação da Matola, e de algumas outras poucas estações no sul de Moçambique, estamos a falar de dados dos primeiros séculos no calendário cristão (grosso modo até 400 ou 500 d.c.). Naquela estação as primeiras escavações mostraram que “Entre os 75 cms e os 85 cms de profundidade, encontrava-se um solo contendo vestígios de uma lixeira com 10 000 fragmentos de olaria; alguma escória e ferro; conchas …; uma pequena quantidade de ossos … e sementes carbonizadas …”. Um contexto rico que, inclusivamente, originou que se criasse uma denominação arqueológica, a “tradição Matola”, para sublinhar a especificidade cultural e temporal desta área e destes vestígios.
Mais não me alongo sobre as características da estação, até para não cansar o leitor leigo em pormenores técnicos. Mas não me parece necessário sublinhar a importância destes vestígios em termos de conhecimento sobre a história do continente, e do fluxo histórico particular à zona austral oriental africana. Refiro dois pontos: que apesar do trabalho de décadas na área da arqueologia muito haverá a fazer em Moçambique – a arqueologia é uma ciência lenta e cara (como aliás o deverá ser a ciência quando o realmente é), exige deslocações e não se pode dobrar aos prazos das encomendas de apressados doadores. Nem tampouco serve para legitimar as suas propostas políticas, sociais ou económicas. Muito há, portanto, para fazer.
Um outro ponto, importante, é que o país tem desde há bem pouco uma licenciatura em Arqueologia, na Universidade Eduardo Mondlane. Será necessário reforçar a ideia de que uma abertura de uma licenciatura destas, criar especialistas no passado profundo e silencioso, é um vigoroso sinal de desenvolvimento? Real, não retórico? Virado para a produção de um conhecimento que não é instrumentalmente identitário mas que pretende ser, pode ser, constitutivo de um olhar da sociedade sobre si própria e o mundo, mais denso, mais produtivo. E que, paralelamente, pode criar um núcleo alargado de quadros nacionais com sabedoria e atenção dedicada à preservação do património. Material, intelectual. Atitude, prática, profissão, que não serão monopólios dos arqueólogos mas para as quais os seus saberes especializados os conduzem.
Esta preservação do património poderá ter, e tem muitas vezes, efeitos identitários no sentido da (re)construção de um passado próprio. Mas muito mais do que isso tem efeitos identitários no sentido da construção de um futuro próprio. E às vezes é essa “equação” que se torna difícil de transmitir aos que nos rodeiam, distraídos destas questões. Que falar em preservação do património, no seu estudo, é fundamental, quando para tanta gente “tudo isso” pertence a um passado a esquecer, a ultrapassar, a “desenvolver”.
Tudo isto me surge a propósito da minha estupefacção actual, pois acabo de saber que a estação arqueológica da Matola foi destruída. Para que nela se construísse uma casa, de um particular. Esta construção, que confesso não ter tido coragem para ir visitar, foi licenciada. Colegas, tão doridos quanto eu, que visitaram a zona avisam que a placa indicativa da estação continua. Só a própria estação se esfumou. Um deles perguntou, corajoso, aos trabalhadores: “então mas não havia aqui vestígios?”. E a resposta veio, cândida, sem maldade: “sim, havia muita “loiça”. Levámos para o lixo”.
Não me fico na questão pragmática: essa de haver uma nova licenciatura, com necessidade de trabalho de campo para os estudantes, e como tal da facilidade em levá-los até à vizinha Matola para praticarem numa estação já descoberta. E do quão incoerente tudo isto aparece: abre-se uma licenciatura, investe-se no passado ou seja, no futuro. E, aqui ao lado, destrói-se uma riqueza incalculável para que surja mais uma mansão (ou cabana que fosse).
Resmungo também diante da ideia que me parece estar na base do licenciamento de uma obra destas, a de que o património que deve ser resguardado é o espectacular, as edificações, o vistoso, quiçá as jóias, as obras de arte. Desconhecendo que são estas aparentes minudências, os ossos, as sementes, as escórias, os fragmentos de olaria ou de qualquer outro material, que são imprescindíveis e riquíssimos materiais para se mergulhar no passado, na história de todos nós. Quantas vezes tão mais faladores do que o belo vaso ou o vigoroso castro (zimbabué, se se preferir chamar assim).
Que fazer? Que pensar?
*****
Para mais detalhes sobre a situação arqueológica em Moçambique ver "O princípio e o presente. A arqueologia na redescoberta do passado em Moçambique", de João Morais (1989). Ainda de Maria da Conceição Rodrigues, "O primeiro sítio com vestígios de utilização de ferro e cerâmica "tradicional" da Early Iron Age localizado em Moçambique - província da Zambézia (2006), texto não incidindo exactamente sobre esta zona mas abrangendo a mesma temática.
E ainda a Gazeta do Departamento de Arqueologia e Antropologia, nº 4, Setembro de 2011, com extensa entrevista com o arqueólogo Hilário Madiquida e referência à "tradição Matola (ou Kwale-Matola) em texto da arqueóloga Solange Macamo.
Sobre a Idade do Ferro em África, esta página da Universidade Columbia
jpt