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"…cheguei a um acordo perfeito com o mundo: em troca do seu barulho dou-lhe o meu silêncio…" (R. Nassar)
(Jorge, Nordine, Kok, Nuno, no fim do "dia das caricaturas", já na esplanada do Ka-Mpfumo).
(A edição do "Savana" de hoje tem um suplemento dedicado ao seu director, Kok Nam. Vários textos escritos para esta ocasião, antigos textos que a ele aludem, algumas fotos da sua autoria, um grande excerto da entrevista que António Cabrita lhe fez e que transformou em livro. A Paola Rolletta foi a coordenadora da iniciativa e teve a simpatia (é amiga) de me pedir uma memória. Foi esta, o que me lembro do "dia das caricaturas" ...
O Dia das Caricaturas
Sexta-feira, já bem depois de almoço, toca o telefone, é o Nuno, a avisar-me que o Kok está cercado, há centenas de muçulmanos a quererem invadir os escritórios do Savana, ali à Lenine, consta que ele sozinho por lá. Surpreendo-me, “o que é que se passa?”, que nada sei, “não viste o jornal?”, resmunga ele, que sempre está a dizer-me distraído. “Nunca compro o Savana!, pá!?” (apesar do Kok … coisas cá minhas, de que não vale a pena agora falar). “Publicaram as caricaturas”, “as dinamarquesas?! do Maomé?! …”, exclamo e tudo se explica. Nisto, e ainda ao telefone, já estou ao volante, até mesmo sem reparar.
Logo chego, uma multidão à porta, irada. Saio do carro, no outro lado da rua está o Jorge Ramos, sempre indefectível do Kok, aceno mas ele não me nota, mostra um ar desamparado, decerto como o meu, agora que não sei o que fazer, nisto do agir antes de pensar, meu costume … Vejo partir o Abdulcarimo, o sempre dito “Buda”, ao que me dirão ali ido a acalmar os ânimos. Avanço um pouco e percebo-me hirsuto. Pois com esta cara magrebina, e hoje tão tisnada, sob estas barbas todas, sou acolhido com sorrisos, anuências. A quem me saúda digo “então o que se passa?”, e vou-me declarando amigo do Kok, e que tudo isto me soa a exagero, em suaves convocatórias à calma. Acercam-se de mim, gente mais velha, como eu, afáveis, conversamos. Ouço a mágoa serena, até ofendida, com o que ali parece desrespeito ao Profeta.
Mas não é assim com os mais novos. Lá à frente, junto ao portão, há gritos, apupos, invectivas, um não tão pequeno grupo mais irado, tudo defronte três ou quatro polícias, estes com pose pouco marcial, como se também atrapalhados com todo este inesperado. Reparo no Luís Sá, da Lusa, com cara de quem está entre a reportagem e a solidariedade preocupada. Cá mais para trás, entre nós, lá fico advogando o Kok, e isto da profissão de informar, mesmo que a alguns desagradando. Não ganho adeptos, mas dizem-me que o respeitam (o Kok é o Kok!, todos sabemos, já com um pé na lenda), homem de bem, e que a culpa disto tudo é de fulano ou de sicrano.
A calma vai chegando, que tudo já demora há umas horas. Junto-me ao Jorge e com o Luís escapulimo-nos pelo portão, onde está, honra lhe seja feita, e tão mal dizem do jornal dele, o Leandro Paul, peito feito naquele seu jeito sempre tão gentil, em nome dos jornalistas dialogando com os mais sanguíneos, em apelos à concórdia. Lá dentro com o Kok está um funcionário do Savana, não o conheço, e o grande Norudine Daúde, a mostrar que não o é só em tamanho, mas amigo daqueles mesmo, a chegar-se à frente no momento de ombrear – e disto me lembrarei um dia, bem mais tarde, ao vê-lo como um dos que carregarão o caixão do Kok até à pira.
Ao entrarmos na casa o Jorginho atira logo um sarcasmo, daqueles que são abraço, naquele jeito constante que o une ao Kok, carinhos de mano novo com mano velho. Sentamo-nos, mais ou menos pois ninguém se aquieta. Ele está dorido, pálido. Denso. Com a espessura de ter comandado algo que era necessário fazer. Acontecesse o que acontecesse. Passa tempo, ninguém sabe bem quanto nem o que vamos dizendo. Depois o Norudine vai ao portão e vem dizer que a multidão destroçou, talvez cansada, talvez liderada por caminhos mais pacíficos. O Kok arruma os pertences. Eu telefono ao Nuno, “isto acabou” e ele convida-nos para uma garrafa de uísque, para que desanuviemos. “Vá, vamos aos CFM”, aviso, feliz. E todos concordam, também felizes. Saímos, o Luís vai trabalhar, que hoje não mais o verei. Ligo à Paola, a nossa sempre querida Paula, “onde é que anda o Lima?”. “Está aqui comigo …” diz, inquieta, ela que horas antes tinha aqui estado. “Então diz-lhe para se deixar ficar quieto”, que não ande na rua, que há quem resmungue que é ele o responsável, ouvi-o bem que mo disseram, e nunca se sabe, não vale a pena provocar problemas.
Nisto chegamos à esplanada da estação, no Ka-Mpfumo o Nuno já tem a Famous e o gelo à nossa espera. Bebemos, falamos, e brota muito latim vulgar. O Kok anima. Tanta é a sede que a garrafa desaparece num ápice, qual suspiro de alívio. Pago eu uma outra, que logo vem para ser escoada. E chega o Lima, que não se deixou ficar quieto, com o Gonçalves.
O resto é o futuro
jpt