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No final de XX Alfredo Margarido escreveu:

 

"Hoje, uma fracção substancial dos teóricos da "portugalidade", fazem da língua o agente mais eficaz da unidade dos homens e dos territórios que foram marcados pela presença portuguesa. Não tendo havido uma grande reflexão anti-colonialista antes das independências, registou-se a necessidade urgente de organizar uma ideologia explicativa: os portugueses foram obrigados a renunciar à dominação política e económica, mas procuraram assegurar o controle da língua.


O drama ... provocado pelo acordo ortográfico ..., deriva dessa inquietação: se a língua não for capaz de assegurar a perenidade da dominação colonial, os portugueses ficarão mais pequenos. A exarcebação da "lusofonia" assente nesse estrume teórico ..."

 

Diante da crise que avassala o meu país, um dia aqui botei: "Desabrigada no pós-1974 a sociedade portuguesa não desenvolveu a economia nacional, agora num contexto concorrencial, e abrigou-se sob o Estado, redistribuidor das benesses europeias (a “cooperação”, como se diz em África). Nesse processo a velha socioeconomia colonial tornou-se uma socioeconomia estatizada, via Estado central e via municípios (e escapámos à “regionalização”). As denúncias moralistas contra o “clientelismo”, o “caciquismo”, o “patrimonialismo” (“os jobs for the boys”) esquecem o acordo social que assentou nisto. Tal como há décadas atrás os teóricos marxistas falavam em “burguesias compradoras” improdutivas no Terceiro Mundo, assistimos ao crescimento de uma “sociedade compradora”, de bens e serviços. E o “FEDERismo” tornou-se o projecto português, não tanto o “federalismo” europeu.No fundo, de forma perversa e até contraditória, Portugal vive agora a efectiva descolonização, ou melhor, vive o processo de acolonização. O proteccionismo colonial morreu e o seu avatar proteccionismo estatal, que protegeu a sociedade após 1975 do embate externo, está moribundo. Há pois uma monumental incongruência (que não é apenas da discussão entre dívida pública e privada) na sociedade, entre o projecto produtivo e a auto-concepção de cidadania."

 

Vem isto a propósito da visita de ontem de Angela Merkel a Portugal. À noite ouvi, de raspão, o noticiário da SIC onde Miguel Sousa Tavares comentava essa visita. Tem mais de vinte de anos como figura fundamental da informação televisiva. Escritor afamado, de grande sucesso, gostado. Jornalista, director de publicações. Cronista, viajante, na imagem de cosmopolita. Homem ouvido, seguido. Filho de Francisco Sousa Tavares grande jornalista, advogado e político, entre tanta coisa também o homem que discursou no Largo do Carmo, voz do parto da democracia. Filho da enorme Sophia de Mello Breyner. Sobrinho do grande Ruben A. Casado com Teresa Caeiro, antiga governante, inclusivamente secretária de estado das Artes e Espectáculos (como se "Cultura"). Ponho aqui os laços familiares não por indiscrição, que são públicos e muito honrosos, muito mesmo. Mas porque sublinham o seu capital cultural, e social, a sua legítima pertença à elite cultural portuguesa, na qual não é arrivista. E na qual a sua biografia profissional o sedimenta. Com  isto tudo é pacífico  considerá-lo uma voz do olhar português sobre o mundo.

 

Irado, insurge-se Sousa Tavares que a tradução das palavras da governante alemã tenha sido em "brasileiro" - algo da responsabilidade da embaixada alemã diz-lhe a colega Judite de Sousa (um intérprete brasileiro? um alemão que estudou português no Brasil?) - pois "na nossa terra fala-se a nossa língua", diz o comentador, mais-que-ríspido.

 

Assim, sem mais, no país da lusofonia, esse paleio impensante, retórica vã perseguida desde o alterglobalismo a la BE de Boaventura Sousa Santos até à direita cristã dos paladinos ortógrafos, passando pelo magma inintelectual socialista-republicano até ao actual poder na velha retórica de Braga de Macedo e Morais Sarmento, eis, explícito, cristalizado, o que se pensa sobre a língua, a "nossa língua", com o "nosso sotaque", a que é legítima, o que é legítimo, para efectivar (nossas) portas dentro. Na crise, que se lixe a "lusofonice".

 

Diante da frase xenófoba, racista, colonial, do "dono da língua" "dono da terra" pensei que o dia seguinte fervilharia. De gente irada, democrática, inclusiva, solidária. Ou mesmo, pura e simplesmente, lusófona.

 

Mas nada, nem uma petição, nem um protesto, nem "memes" no facebook. Até gente tão participativa, anteontem revolucionária, furibunda no indignismo, tão atarefada em gritar contra a senhora do Banco da Fome que disse meia dúzia de vacuidades expressando algumas coisas nada populares mas não  tão desacertadas (Portugal vive estruturalmente produzindo muito menos do que consome, algo que o pensamento preguiçoso antropomórfico traduz como "vivemos acima das nossas possibilidades", como se isto (aquilo) fosse uma família) cala-se agora. Desatenta? Nada. Concordante, no tom xenófobo, no teor colonialista. Pois a uma (relativa) perenidade do enquadramento estatal da acção social corresponde uma manutenção cultural, profunda, a estruturar o olhar sobre o real, e o país.

 

Pois para as velhas "massas", cujo internacionalismo se acomoda na tasca onde se atafulham do molho do caracol, e para as elites, com um cosmopolitismo encerrado no bidé, que nem usam, no país o que se fala "é a nossa língua", o "nosso sotaque". Nem notam, nem atentam. A mentezinha colonial(ista), a superioridade pacóvia.

 

E depois, enquanto revolucionam, indignados, contra a "austeridade" que os fere, vão mandando para filhos e enteados, quando não para eles próprios, "ó socorros", "arranja-me um emprego" para onde outros, os "lusófonos" tão amigos que eles são, irmãos mesmo, falam a (afinal) "nossa" língua.

 

Tudo isto, toda esta gente, de sotaque certo e de língua certa, cheios de certezas.  A justificarem bem, infelizmente, todo o descalabro. De agora. E anunciado.

 

Amanhã? Lá estarão todos a ouvir o "miguel". E a indignarem-se.

 

Não há futuro. Com esta gente.

 

jpt

publicado às 18:49


14 comentários

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De Fernando Alves a 13.11.2012 às 23:31

O problema sempre foi o mesmo,assentarmos que as elites seriam um imenso farol para uma imensa mole de pacóvios que necessitavam que lhes fosse iluminado o caminho. Acordados do pesadelo não existe caminho e o farol não passa de uma lanterna de bolso com pilhas exauridas. O problema seria se a excelente tradutora nos desse uma versão do discurso em inglês (não sei que versão escolher, se a do Reino Unido, se a da Austrália, do Estados Unidos, do Canadá, da Nova Zelândia, etc.), mas isso para a tacanhez deste senhor, que já terá feito dar imensas voltas à doce Sofia, é um pormenor de somenos importância, já que o seu umbigo é maior que o mundo. Já agora em que Pátria me devo expressar?
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De MVF a 13.11.2012 às 18:55

Deixei ontem no FB um vídeo dedicado à chanceler(ima?) e à sua ajudante.
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De Lutz a 14.11.2012 às 20:34

É curioso: quando ouvi este comentário do MST não o achei xenofóbico ou colonialista, apenas mesquiho e complexado. Pequeno é a auto-estima, pensei eu, se o sotaque da tradução ou, vá lá, a síntaxe ligeiramento diferente, tem tanta importância. Por outro lado, no meu modesto conhecimento de primeira mão das práticas diplomáticas protocolares, esta hipersensibilidade é nada incomum, também não no caso de um pais maior e teoricamente com melhores condições para se sentir auto-confiante, como Alemanha. Tenho a certeza que o Embaixador da Alemanha em Portugal não repetirá a "gaffe".
Mas parece-me um pouco puxado falar de xenofobia ou de colonialismo. Eu percebo porque esta questão te ocorre, porque, de facto, ela está lá. Existe o passado, existe uma ideia e uma vontade de lusofonia. Mas isto não deixa de ser apenas um pano de fundo que faz parecer essas declarações muito piores do que são.
Por acaso creio que foi um efeito semelhante que gerou a tamanha indignação com a referida Sra. Jonet (aí, admito, reagi eu com uma indignação tão visceral como tu no caso aqui), cujo erro se resumiu de proferir do alto da sua condição de figura pública com as responsabilidades que daí advêm, umas banalidades que seriam inofensivas se ditas como recomendação em privado, de amigo para amigo, ou no contexto familiar. Aparentemente não tinha consciência, neste momento, do pano do fundo da história pré - 25 Abril, em que a caridade ocupava o lugar da justiça e servia - entre outro - como instrumento de prevenção da revolta contra esta injustiça. Acho lamentável que não tinha esta consciência, e também lhe faltava a sensibilidade para imaginar como as suas declarações soassem nos ouvidos de alguém que perdeu - sem culpa nenhuma - o emprego e as condições de sustentar a sua vida e a da sua família. Dá que pensar, mas concluir daí que a senhora gostava que voltassem os velhos tempos seria um processo de intenções.
Também o seria se concluissemos da indignação do MST sobre a tradutora que fala brasileiro numa visita de estado a Portugal pelo seu espirito xenófobo e colonial.
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De jpt a 13.11.2012 às 19:06

e o ma-schamba aqui tão vazio
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De AL a 13.11.2012 às 19:21

Estou-me nas tintas que nao gostes do elogio interbloguista - ganda postal! Ganda postal!
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De jpt a 15.11.2012 às 14:19

Infelizmente fazes-me lembrar o que quantas vezes ouvi aqui, a mim dirigido. Exactamente como a ti aí ... (e há outros que nem isso, não gostam porque sou tuga ...)

e és muito bem-vindo aqui, festivamente até. E até como co-bloguista, se te apetecer (ainda que o blog é tão de direita que se calhar não te sentirias confortável ...)
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De Lutz a 15.11.2012 às 14:06

JPT, obrigado pela longa resposta, que é muito boa e mostra um conhecimento e pensamento sobre a questão profundo - ao contrário do meu.

Quanto ao QeP: De facto sinto a tentação de voltar a dizer algumas coisas na minha condição de imigrante alemão em Portugal. Há dias ouvi o Garcia Pereira dizer na televisão, com todas as letras: que a Merkel está em vias de conseguir realizar o projeto Alemão da subjugação da Europa no que antes falharam Hitler e o Imperador Guilherme II. Dirás: enfim, o que é de esperar de Garcia Pereira (eu não estava a espera de ouvir da boca de um comunista uma ideia tão atávicamente nacionalista), mas não é só ele quem diz estas coisas e infelizmente não falta recetividade para este tipo de discurso.
Há quase um ano, após a Merker tinha feita umas declarações muito infelizes sobre a menor ética de trabalho nos paises do sul da Europa, o meu irmão mandou-me um email preocupado da Alemanha, perguntando se ainda podia andar na rua em segurança. Pude responder que não havia problema nenhum. Continuo a não ter de temer quer agressões físicas, quer verbais, mas aumenta a frequência em que conhecidos me asseguram com a intenção de serem simpáticas, que sabem distinguir entre a minha pessoa (decente) e os alemães em geral (maus). E não há uma vez, em que uma pessoa que acaba de me conhecer e pergunta qual a minha nacionalidade, não caísse num silêncio penoso depois de ouvir a minha resposta. Isto está mal e não está a ficar melhor...

Mas não sei arranjo energia e tempo suficiente para escrever no QeP com o mínimo de regularidade e qualidade exigível. Por isso, antes voltarei para aqui.
Outro abraço!
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De Rui M. Pereira a 13.11.2012 às 21:26

Pois é, o colonialismo tem muitos avatares. E volta, volta sempre. E não tem cor política. Tem apenas carácter.
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De jpt a 13.11.2012 às 22:32

Zé, se a chanceler Merkel vier a Moçambique terá que trazer um intérprete moçambicano? (já nem pergunto qual o sotaque moçambicano, porque isso será até excessivo) Ou pode trazer um português? Ou para Moçambique não terá que ter este tipo de delicadezas diplomáticas? Ah, e se for a S. Tomé e Príncipe? Pode levar um português, ou angolano, ou moçambicano, ou terá que ser um ilhéu? Etc e tal, para tantos contextos.

Quanto ao sentimento colonialista é um olhar colonial sobre o mundo que está presente, que transpira. Aí, desculparás, nem vou contra-argumentar. Não se trata de rabujar. É uma perspectiva serôdia que dali vem, que não passa da continuidade do pensamento colonialista. Aqui será a nossa diferença biográfica a funcionar (desculpa o empirismo de pacotilha), mas é um traço constante. O interessante é que não costuma ser verbalizado, letra a letra, pela elite intelectual como o foi aqui.

(quanto à legendagem, não me parece que os 35 anos de novelas diárias brasileiras sejam legendadas, deixemo-nos de merdas)
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De a 13.11.2012 às 22:25

a delicadeza manda que se visitamos uma casa façamos como lá se faz. era desnecessário. não será certamente por falta de intérpretes de português-alemão que não foi possível encontrar um com pronúncia portuguesa. a pronuncia importa, pois importa - ao que parece os brasileiros têm de legendar o nosso modo de portuguesar. mas enfim, percebo o teu ponto-de-vista, agora levá-lo a ilações sobre sentimentos colonialistas é tão excessivo quanto excessiva é a indignação do MST.

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