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"…cheguei a um acordo perfeito com o mundo: em troca do seu barulho dou-lhe o meu silêncio…" (R. Nassar)
No final de XX Alfredo Margarido escreveu:
"Hoje, uma fracção substancial dos teóricos da "portugalidade", fazem da língua o agente mais eficaz da unidade dos homens e dos territórios que foram marcados pela presença portuguesa. Não tendo havido uma grande reflexão anti-colonialista antes das independências, registou-se a necessidade urgente de organizar uma ideologia explicativa: os portugueses foram obrigados a renunciar à dominação política e económica, mas procuraram assegurar o controle da língua.
O drama ... provocado pelo acordo ortográfico ..., deriva dessa inquietação: se a língua não for capaz de assegurar a perenidade da dominação colonial, os portugueses ficarão mais pequenos. A exarcebação da "lusofonia" assente nesse estrume teórico ..."
Vem isto a propósito da visita de ontem de Angela Merkel a Portugal. À noite ouvi, de raspão, o noticiário da SIC onde Miguel Sousa Tavares comentava essa visita. Tem mais de vinte de anos como figura fundamental da informação televisiva. Escritor afamado, de grande sucesso, gostado. Jornalista, director de publicações. Cronista, viajante, na imagem de cosmopolita. Homem ouvido, seguido. Filho de Francisco Sousa Tavares grande jornalista, advogado e político, entre tanta coisa também o homem que discursou no Largo do Carmo, voz do parto da democracia. Filho da enorme Sophia de Mello Breyner. Sobrinho do grande Ruben A. Casado com Teresa Caeiro, antiga governante, inclusivamente secretária de estado das Artes e Espectáculos (como se "Cultura"). Ponho aqui os laços familiares não por indiscrição, que são públicos e muito honrosos, muito mesmo. Mas porque sublinham o seu capital cultural, e social, a sua legítima pertença à elite cultural portuguesa, na qual não é arrivista. E na qual a sua biografia profissional o sedimenta. Com isto tudo é pacífico considerá-lo uma voz do olhar português sobre o mundo.
Irado, insurge-se Sousa Tavares que a tradução das palavras da governante alemã tenha sido em "brasileiro" - algo da responsabilidade da embaixada alemã diz-lhe a colega Judite de Sousa (um intérprete brasileiro? um alemão que estudou português no Brasil?) - pois "na nossa terra fala-se a nossa língua", diz o comentador, mais-que-ríspido.
Assim, sem mais, no país da lusofonia, esse paleio impensante, retórica vã perseguida desde o alterglobalismo a la BE de Boaventura Sousa Santos até à direita cristã dos paladinos ortógrafos, passando pelo magma inintelectual socialista-republicano até ao actual poder na velha retórica de Braga de Macedo e Morais Sarmento, eis, explícito, cristalizado, o que se pensa sobre a língua, a "nossa língua", com o "nosso sotaque", a que é legítima, o que é legítimo, para efectivar (nossas) portas dentro. Na crise, que se lixe a "lusofonice".
Diante da frase xenófoba, racista, colonial, do "dono da língua" "dono da terra" pensei que o dia seguinte fervilharia. De gente irada, democrática, inclusiva, solidária. Ou mesmo, pura e simplesmente, lusófona.
Mas nada, nem uma petição, nem um protesto, nem "memes" no facebook. Até gente tão participativa, anteontem revolucionária, furibunda no indignismo, tão atarefada em gritar contra a senhora do Banco da Fome que disse meia dúzia de vacuidades expressando algumas coisas nada populares mas não tão desacertadas (Portugal vive estruturalmente produzindo muito menos do que consome, algo que o pensamento preguiçoso antropomórfico traduz como "vivemos acima das nossas possibilidades", como se isto (aquilo) fosse uma família) cala-se agora. Desatenta? Nada. Concordante, no tom xenófobo, no teor colonialista. Pois a uma (relativa) perenidade do enquadramento estatal da acção social corresponde uma manutenção cultural, profunda, a estruturar o olhar sobre o real, e o país.
Pois para as velhas "massas", cujo internacionalismo se acomoda na tasca onde se atafulham do molho do caracol, e para as elites, com um cosmopolitismo encerrado no bidé, que nem usam, no país o que se fala "é a nossa língua", o "nosso sotaque". Nem notam, nem atentam. A mentezinha colonial(ista), a superioridade pacóvia.
E depois, enquanto revolucionam, indignados, contra a "austeridade" que os fere, vão mandando para filhos e enteados, quando não para eles próprios, "ó socorros", "arranja-me um emprego" para onde outros, os "lusófonos" tão amigos que eles são, irmãos mesmo, falam a (afinal) "nossa" língua.
Tudo isto, toda esta gente, de sotaque certo e de língua certa, cheios de certezas. A justificarem bem, infelizmente, todo o descalabro. De agora. E anunciado.
Amanhã? Lá estarão todos a ouvir o "miguel". E a indignarem-se.
Não há futuro. Com esta gente.
jpt