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"…cheguei a um acordo perfeito com o mundo: em troca do seu barulho dou-lhe o meu silêncio…" (R. Nassar)
O meu texto na coluna "Ao Balcão da Cantina", da edição de hoje do "Canal de Moçambique"
(D)urbanismo
Neste 125º aniversário da elevação Maputo a cidade, uma bela idade, não fui a nenhuma festa nem concerto comemorativo. Um demorado fim-de-semana gasto em repastos vários, outros aniversários, de amigas várias. Provocando excessos, ainda que parcos. E neste ambiente de efeméride, todos eles conduzindo a que as digestões, longas, trabalhosas, fossem passadas a folhear alguns livros dedicados, exclusiva ou parcelarmente, à cidade. Esta que me acolheu, que me encantou. Há já quinze desses cento e vinte e cinco anos.
Certo que o encanto de uma cidade, esse que nos faz habitá-la, para ela (i)migrar, brota primordialmente das pessoas que lá estão, que a fazem viver. Aquelas que conhecemos, com quem interagimos, até amigamos. A essas o pudor impede a que se afixe o nome, se nem em privado muito menos em público. E aquelas que nem conhecemos, com quem “apenas” (um desapenas, melhor dizendo) partilhamos o espaço. Sobre essas, e já que falo de livros, sempre lembro o belíssimo livro “Desenrascar a Vida”, uma colectânea de fotos coordenada por Nelson Saúte, um épico sobre a gente de Maputo, lamentavelmente esgotado, a exigir ser ressuscitado. Quem sabe se numa próxima Páscoa …
Por isto que vou avançando, este agrado difuso com o universo circundante, muito me agradou e me foi significante assistir ao lançamento de “Nghamula. O homem do tchova (ou o eclipse de um cidadão)”, ocorrido na passada quinta-feira, acho que muito a propósito da etapa do calendário. O último livro de Aldino Muianga, aquele que sempre digo o escritor de Maputo, pelo menos o meu escritor de Maputo. Não que com isso o queira reduzir a localismos, mas tem sido nos seus livros que tenho, sempre com agrado, encontrado a cidade que me rodeia, que desconhecia, que vou desconhecendo, ainda que agora já um pouco menos. Na sua escrita serena, sem exotismos, Muianga é sempre imprescindível, criando vozes a personagens que não são típicas, coisa pobre, mas que são representativas. Coisa rica.
Parte da minha comemoração foi, então, encetar este novo “Nghamula. O homem do tchova …”. Livro a distribuir também, pelos tais amigos impublicados. Quem sabe se num próximo Natal.
Mas o encanto da cidade, esse que se pega, não vem só da gente. São os passos que damos, a paisagem que respiramos. Sim a baía, claro. Mas também este Maputo, que foi Lourenço Marques (e antes outros nomes) e também Xilunguíne. O Maputo construído, obra de urbanistas e de arquitectos, imaginado. Das casas e prédios, das ruas que deles são moradia.
Por isso regressei agora, com a acima referida modorra, até enfartada, à estante onde vive a memória de Maputo. Livros que lhe são dedicados, uma mão-cheia, e nisso até reencontrando material, imagens e saberes que vão, como é natural, transitando de obra para obra. Livros dedicados à cidade, como o pequeno e aprazível “Maputo. Roteiro Histórico Iconográfico da Cidade”, que A. Sopa e B. Rungo fizeram há meia dúzia de anos, contando a história da cidade, e que o então Centro de Estudos Brasileiro publicou. Estará ainda acessível nas livrarias? Um outro livro sei eu que não está, o interessante “Maputo. Desenho e Arquitectura” do arquitecto italiano Luigi Corvala, publicado há alguns anos pela Faculdade de Arquitectura. Também aqui relatando a história urbana e arquitectónica da cidade, com profusão das sempre desejadas imagens. Lamentavelmente o livro acabou por ser retirado do mercado, por necessidades autorais, uma qualquer mácula que o tempo vai apagando. Mas, felizmente, resguardei o meu exemplar, e posso de quando em vez desfrutá-lo.
Lembrei-me ainda de livros lindos, ainda que não totalmente dedicados à história da cidade. Um, que é um pequeno catálogo de uma exposição em cartazes, que fez uma itinerância em Moçambique, e de cuja realização ainda lembro a génese. Trata-se de uma obra da historiadora portuguesa Isabel Castro Henriques, “Espaços e Cidades em Moçambique”, apresentando imagens e algum historial dos últimos séculos das principais cidades moçambicanas. Recordo-me do prazer sentido quando há alguns anos entrei pela Escola Portuguesa em Maputo e notei que uma ala está decorada com esta bonita exposição. Talvez seja de a remostrar, alguma instituição que a possua, pois julgo que ela foi amplamente distribuída.
Fiquei ainda longamente debruçado sobre duas obras preciosas, agora puras e duras de arquitectura, e sua história. Da investigadora portuguesa Ana Magalhães (com imagens de Inês Gonçalves) o trabalho “Moderno Tropical. Arquitectura em Angola e Moçambique, 1948-1975”, debruçado fundamentalmente sobre o trabalho de oito arquitectos portugueses que se tornaram referência durante o período final da sociedade colonial, abrangendo várias cidades angolanas e moçambicanas. É uma delícia, e não é preciso ser arquitecto para nos encantarmos com ele. E, finalmente, o fabuloso livro-catálogo de Pancho Miranda Guedes “Vitruvius Mozambicanus”, resultante da enorme exposição que lhe foi dedicada há alguns anos em Lisboa, correspondendo à explosão de interesse e reconhecimento que o arquitecto-artista vem colhendo, em Portugal e não só. Pancho Guedes, o grande arquitecto de Lourenço Marques / Maputo, esse que tem sido alvo de algum interesse aqui, e sobre cuja obra há passeios pedestres organizados (por Jane Flood), não sei se suficientemente conhecidos. Pancho Guedes, personagem genial, uma obra fragmentada em detalhes fantásticos, em propostas fascinantes.
Não estou a esgotar a bibliografia existente sobre Maputo, claro, nem mesmo a que habita cá em casa. Apenas partilho as formas livrescas como me dediquei às difíceis digestões das tais festividades coincidentes com a efeméride municipal.
No domingo, alquebrado, engordado, cruzei a cidade para ir almoçar a um restaurante estabelecido exactamente num edifício desenhado por Pancho Guedes. No caminho fui cruzando a marginal e a baixa, olhando, sob o calor soalheiro que tanto tem demorado este ano, os edifícios mais recentes, decerto que por influência destas leituras-viagens. Todas aquelas habitações familiares, grandes ou gigantescas, caixotes tétricos encaixados uns nos outros, todos aqueles enormes tubos de escritórios, falos de vidro em erecção eterna.
Dirão que torço o nariz por questões do meu gosto pessoal. Decerto. Mas estou crente, e bem crente, que isto que vai acontecendo agora na arquitectura da cidade é muito pouco saudável. No fundo será como a diferença entre comemorar o aniversário da cidade comendo uma boa galinha à zambeziana ou indo engolir um frango frito ao Kentucky Fried Chicken, infecto.
É o (d)urbanismo de hoje. Muito, mas mesmo muito, fraquinho.
Nota: a fotografia que aqui ilustra o texto foi "roubada" ao blog Digital no Índico.
jpt