Na defesa do direito a abortar normalmente surge o repúdio pelo discurso religioso. Melhor dizendo, o repúdio por algum discurso cristão radical.
Mas parece-me que uma perspectiva que desvaloriza "possibilidades (embrionárias) de vida humana" devido às expectativas negativas relativamente às disponibilidades económico-afectivas que lhes estão reservadas, é um discurso que se aspira (inconscientemente) demiúrgico.
Demiúrgico porque assenta na reclamação de uma previsão absoluta do futuro. Absoluta porque implica a refutação radical de um projecto de vida.
É pois um discurso de índole religiosa. Subordinada a determinados valores, que nunca relativiza, porque neles crê.
Neste caso a crença na equação dignidade-posse.
E, ainda, que conceptualiza "afectos" como recurso - e estamos aqui no cúmulo da produção capitalista, a da mercantilização dos afectos, do "homem".