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"…cheguei a um acordo perfeito com o mundo: em troca do seu barulho dou-lhe o meu silêncio…" (R. Nassar)
A actriz protagonista. E o anúncio do filme em questão:
Ao longo do ma-schamba bem tenho resmungado contra esta piroseira do calendário laico, que a cada dia de santo católico (mais ou menos mágico, mais ou menos antepassado local) - essas superstições das brumas de antanho que vão sendo acarinhadas pela plutocracia apostólica romana - quer substituir por uma santa causa. "Ele" é o dia contra o cancro, contra a gasolina, contra o não-sei-quê. E, às vezes, a favor disto ou daquilo. São os santinhos pós-modernos, é o que é.
Mas que sirvam para alguma coisa. Para pensar. Hoje vem-me este "Volver" ("Voltar"), um filme fascista do espanhol Almodovar, um cómico que teve sucesso nas últimas décadas de XX, navegando a "movida" de Tierno Galvan e as olimpíadas de 1992. E muito dado à afirmação das mulheres, construtor, gabam-no, de grandes personagens femininas. A lembrar no dia que querem internacional das mulheres.
Este "Volver" foi o último filme dele que vi. Como nos seus anteriores fui lá à procura de um sorriso mais continuado, um pouco de boa disposição, ainda que a verve do cineasta se tenha vindo a esgarçar. Saí irado, enjoado tamanha a repugnância. Sim, tem Penelope Cruz, actriz que faz vacilar os mais arreigados valores. E com ela, as outras boas actrizes (a corte do cineasta) e Almodovar ele mesmo, pelo que todos aplaudem.
Não vou resumir a historieta, uma quase-saga familiar, centrada num conjunto de mulheres com garra e esguias na acção, cativantes, industriosas, combativas. Personagens para cativar, seguir, acarinhar. Há quatro homens no filme, todos trastes ou a modos que isso. Dois secundaríssimos, um assistente de produção cinematográfica, que ensaia a sua posição para uma deslambida sedução; um pobre dono de restaurante, meio-falido e notoriamente incompetente, sobre o qual se deixa a névoa de um suave assédio com base na sua posição de patrão. E dois relevantes: o marido de personagem de Penelope Cruz (sobre a qual tentam agir os anteriores, claro), um verme ébrio, mandrião, futeboleiro, que tenta violar a sua filha (não-biológica) púbere. E o pai de Penélope Cruz, com fortes tendências polígamas. Estes dois são assassinados, um involuntariamente, o outro, o pobre pai "infiel", queimado vivo pela pérfida ciumenta mulher.
O filme é a sorridente consagração destes assassinatos, o elogio das mulheres rijas, belas, activas e autónomas, que matam os homens. Lhes congelam os cadáveres. Queimam os corpos. O povo ri-se, paraboliza a tralha. Almodovariza-se, claro, que ainda é chic.
Lembro-me que então saí do cinema como "homem à beira de um ataque de nervos". Fosse este o registo elogioso numa cobóiada a tratar assim os índios, num filme israelita a tratar assim os árabes ou vice-versa, um stallone a esmagar tardo-vietcongues ou neo-aladinos, um anacrónico grupo de "maquisards" a esventrar alemães na Bretanha ou sei mais lá o quê, e a gente resmungaria sobre o tom. Assim não. Gosta-se, o contrário "fica mal". Resmunguei, disseram que era um exagerado, que via coisas, ideologias, onde elas não existem.
Passados anos, há algumas semanas, fui a Nampula. Fiquei numa agradável pensão, a "Ruby". Onde às quintas-feiras se organiza um "walk-in", no pequeno jardim há cinema. Regressei de Angoche numa quinta, por lá me realojei. Havia cinema, umas dezenas de espectadores. O filme era o "Volver". Sorri, e lá fiquei a esconder a febre com uns whiskies e a olhar a Penelope Cruz. No final as senhoras presentes passaram os pequenos filmes, alusivos ao dia que era - e que eu desconhecia. Era o dia do "One Billion Rising", contra a violência masculina.
Um filme de causa, ali confirmei, uns passados anos. Em Nampula, imagine-se. Que não é, exactamente, o mais cosmopolita dos locais.
Causa justa, dizem. "Gender", anglicizam. Queimem os infiéis, ululam.
É o dia internacional destas mulheres? Hoje, 8 de Março, é o dia de São João de Deus. Antes ele, antes essa superstição, que estas derivas fascistas das "boas causas".