De jl a 01.04.2013 às 23:23
Foi o estado que criou a língua?
A ortografia é uma obra do tempo, não é legislável.
Depois, nesta coisa da língua, lembro-me sempre de me terem dito que nela só podem mexer o povo e os génios literários, que foi quem a fez e mantém.
Não precisa de burocratas, nem de idiotas de feições várias.
De jpt a 01.04.2013 às 23:35
Desculpará mas, e até achando porreiro a picardia face à vontade legisladora, não acato o argumento. Talvez mais do que tudo porque não tenho nenhuma comichão com o estado (sim, tenho com a excessiva estatização do rame-rame, mas isso é outra coisa).
Diz-me que quem mexe na língua são os génios (entenda-se, decerto, que aqueles que o cânone considera geniais, e esse cânone é marcado pelos organismos do estado e pelas pessoas que neles se consagram e quantas vezes habitam) e o povo. Ora o povo somos todos nós e mechemos como o carassas na língua e assim não se vai longe. Ou melhor vaisse longe demais.
E não foi o estado que inventou as casas de pasto, as casas propriamente ditas, ou as estradas que nos levam de casa até à almoçarada. Mas para fazermos casas, restaurantes e estradas há um conjunto de regras que foram estipuladas pelo estado. Depois há os génios da arquictetura, da engenharia e até os do forno e fogão que mexem nas coisas. A isto chama-se, mais ou menos, história.
Não retiro daqui nenhuma necessidade, de qualquer chancela estatal ou outra. Queremos ensinar uma ortografia e uma língua com isso? Fazemos isso com um conjunto de regras que estão codificadas. Não é assunto de burocratas, como diz (no mau sentido do termo), mas é com toda a certeza assunto de especialistas. Aos quais é delegado o poder de influenciar o assunto.
De jpt a 01.04.2013 às 23:37
o arquictetura não foi propositado, estava a palavra incompleta e enganei-me a teclar, espero que seja compreensivel (O Sapo não tem aquilo do editar comentários, e faz falta)
De jl a 02.04.2013 às 04:47
"e esse cânone é marcado pelos organismos do estado"
Temo comunica-lhe que Staline já morreu. Todavia, tem-se de anuir que o SNI continua por interpostas vestes estatais (com Relvas actualmente a comandar). Duvido, no entanto, que consiga impor algum autor.
O assunto ortografia-estado parece resolvido por Fernando Pessoa: o estado não tem de intervir em matérias de espírito. Não sei se, tal com o autor destas linhas e mais algumas centenas de milhares de portugueses, o distinto "blogger" é licenciado em direito. Se o é sem equivalências, passagens administrativas e por uma faculdade pública tipo FDL, terá estudado teoria do estado. Ora, há-de convir que, mesmo lidos alguns milhares de páginas sobre o assunto (inclua a questão da natureza do estado em Marx), as três ou quatro linhas de Pessoa, estão ao nível do melhor que por lá se encontra.
É o único modo de alguém como a isabel alçada não ter poder para decretar ocenidades* tais como a de sujeitar os alunos portugueses ao acordês, uma questão de aventais.
* Foi de propósito. É que "bsc" são 3 consoantes seguidas e o Brasil, sendo um país de grandessíssimo futuro (assim o queira o Grande "Arquiteto") tem actualmente alguns (140 000 000, mais milhão menos milhão) problemas de alfabetização.
De jl a 02.04.2013 às 04:05
Sim, pode ser.
Mas, como facilmente intuirá, será necessário que os outros o aceitem como autoridade - um processo complicado como sabe - e creio que não preciso de o remeter para Feyerabend ou Popper. Perceberá, igualmente, o que isso evita: que meia dúzia de palhaços a coberto do poder estatal resolvam estilhaçar uma língua em nome de compadrios mais ou menos caricatos e mais ou menos criminosos com um país que é um indigente cultural (sim, o Brasil).
Na Inglaterra, são as Universidades e as grandes Editoras, os grandes escritores e o Povo Inglês. E é essa ortografia que é aplicada nas escolas (public e grammar school), sem que haja um decreto para tal - é espantoso e difícil de conceber, confesso).
Diga-se de passagem que, como a ortografia estabilizou pouco tendo mudado nos últimos 300 anos, não será a não a mais entusiasmante das actividades - o que não quer dizer que não haja em Oxford ou Cambridge especialistas mais convenientemente apetrechados do que em toda a "cplp", maxime malacas & becharas.
De jpt a 02.04.2013 às 07:59
Várias questões:
a) não sou jurista, disso me safei;
b) e já agora, não entendo o poder do estado sobre a língua (o tal legislar a ortografia) como a necessidade desta ser publicada em DR, ali se reproduzindo um qualquer decreto-lei governamental. Penso que isso será relativamente óbvio, mas talvez neste postal não tanto (há aqui uma série de postais na categoria "acordo ortográfico" ao longo dos anos, não sei se em algum o terei posto palavra por palavra), e em particular com o meu incómodo com a utilização por António Guerreiro de "governo" quando a questão é o estado, muito mais abrangente. Uma ordem, uma ortografia, é na nossa tradição política consagrada por acordo estatal, não obrigatoriamente elaborada por um departamento estatal. E essa consagração é regulamentada, tem documento orientador. O qual é estatal, ou seja, é da sociedade (que não vejo como pólos antitéticos, bem pelo contrário - são-no quando o estado se apropria da sociedade, a "coloniza", que é o que tantas vezes deixamos acontecer - como neste triste affaire AO90). É a nossa prática política, a nossa "tradição". Pode ser mudada? Poderá, mas então que se discuta isso, questão muito mais abrangente do que esta ortográfica. O caso inglês é interessante? É, mas também me parece não ter lido milhares de páginas de teoria do Estado para perceber que é bem diverso no seu conjunto (uma outra "tradição" se se lhe quiser chamar assim). Vamos transitar para aquela? Repito, discuta-se o grão-assunto, mas para além da ortografia. (e peço discussão, debate, também porque me será muito difícil compreendê-la, como V. antevê)
c) como me parece óbvio a definição, por lata e fluída que seja, de quem tem autoridade para delimitar autoridade intelectual (ética que seja) para definir assuntos colectivos não radica em qualquer agrupamento mais ou menos fluído (como defendem os mais radicais da democracia directa), tipo vizinhança ou um "nós" a la carte. Em última instância é o povo (como refere acima, palavra que não gosto pois dada a metafísicas interesseiras, mas que aqui deixo). O qual se organiza, de modo algo perene e regulamentado, e assim transformável, sob formas estatais mais ou menos institucionalizadas. Por isso mesmo duvido que, ainda que chamando Feyerabend, alguém me venha a atribuir uma gravitas ortográfica suficiente.
d) acho perfeitamente descabida essa sua picardia sobre as minhas hipotéticas equivalências, e nem sequer tem lugar na economia do seu discurso
d)cânone: não é o Estaline nem o António Ferro. É consagrado por gente formada em universidades públicas ou pelo estado licenciadas. Não é determinado pelas direcções-gerais, mas supra-influenciado no tempo longo pelas instâncias estatais. E nisto talvez distintas percepções entre o raciocínio de jurista e de não jurista (e não vai isto como "boca")
e) Pessoa: é um excelente poeta mas essa excelência não me obriga a aceitar o seu pensamento, já de si bem fragmentado, ainda para mais quando explícito sobre as "coisas do mundo". O que são as matérias de espírito? Não o é a religião? Não está consagrada na lei a liberdade de culto? Ou não deveria estar? Não o é, de modo lato é certo, a educação? Não o está também (se bem se mal, lá está, discuta-se)? Não o é, de modo ainda mais lato, a liberdade de associação ou de expressão?
Em suma, e por mais que eu goste desta troca de caneladas (que faz parte substancial do meu apreço pelo bloguismo), acho que estamos resmungando coisas que não são exactamente sobre o AO90 - o que não é defeito, que este seja motivo para outros debates. O problema do AO90 não é ser estatal, aliás estamos aqui a escrever numa ortografia estatalmente reconhecida (bem, presumo que esteja em Portugal e esteja já em perigo de ser "obrigado" a alterar a sua). O problema do AO90 é ser inútil e inepto - e nisso o artigo de Graça Moura é basto eficaz nos pontos que levanta - como costuma ser quando escreve sobre o assunto (não tanto quando fala, que se entusiasma e se deixa levar por alguns argumentos hiperbólicos)
cumprimentos
De jpt a 02.04.2013 às 08:03
Lá está, isto do Sapo não deixar editar comentários. Saíu incompleto:
É, mas também me parece [não ser necessário] ter lido milhares de páginas de teoria do Estado para perceber que é bem diverso no seu conjunto ...
De jl a 02.04.2013 às 16:00
Um resumo: se atribui ao estado português o poder de regular a ortografia, situações como as do acordo são inevitáveis.
E a coisa é simples: não precisamos e não queremos, como nota o Prof. António Emiliano.
Apesar do dito acima, e sobre o papel do estado: mesmo na nossa tradição - que é de um estatismo extremo, sobretudo no último século e seja à esquerda, seja à direita - um eventual papel regulamentador teria de ser meramente declarativo: "escreve-se assim, agora" e nunca constitutivo.
Sobre a nossa tradição, lamento dizer não é a que diz: nunca o estado interferiu na ortografia até à "reforma" ditatorial de 1911, cometida, mesmo assim, num país rural, com hábitos e necessidades a condizer, com 70% de analfabetos (uma percentagem pouco menor que a do Brasil de hoje!) e, depois, 1945 (um Convénio entre duas ditaduras: as reformas ortográficas e as situações anti-democráticas parecem dar-se bem... - mas que foi o corolário de 1911, e com alguma sensatez que agora de todo falta).
Falamos de outras coisas quando falamos de acordo? Pois falamos! Se ele é, como confessa o malaca, acima de tudo político! Falamos de uma democracia que não funciona, falamos de uma sociedade completamente subjugada a poderes que não se percebem, a obscurantismos voluntários e involuntários. Falamos de um estado que cria um problema maior e de dimensão criminosa onde não havia rigorosamente nenhum, porque um presidente aventaleiro do Brasil (Sarney) o resolveu impor e aqui havia o Cavaco e Santana Lopes, ambos notoriamente de poucas letras e este último parece que dado ao mesmo avental de Sarney.
Uma palavra sobre o as equivalências: era uma observação sem destinatário (ou não estaria a escrever aqui) e com alguns laivos nostálgicos. Atrevo-me a pedir que releia e dar-me-á razão quanto à impessoalidade.
Quanto aos milhares de páginas (em que não deixou de pegar - e muito bem, que são daquelas que não se perdem), não pretendia ser uma afirmação para tentar sobre ela firmar argumentos de autoridade, já que todos nós acabámos por as ler, dentro ou fora - até mais fora - dos currículos universitários, mas uma informação benigna, para poupar tempo.
De jpt a 02.04.2013 às 16:18
"Falamos de outras coisas quando falamos de acordo? Pois falamos! Se ele é, como confessa o malaca, acima de tudo político! Falamos de uma democracia que não funciona, falamos de uma sociedade completamente subjugada a poderes que não se percebem, a obscurantismos voluntários e involuntários. Falamos de um estado que cria um problema maior e de dimensão criminosa onde não havia rigorosamente nenhum, porque um presidente aventaleiro do Brasil (Sarney) o resolveu impor e aqui havia o Cavaco e Santana Lopes, ambos notoriamente de poucas letras e este último parece que dado ao mesmo avental de Sarney." -concordo. Não vejo no "Estado" o defeito mas sim no "estado" (das coisas). E reafirmo, não vejo qualquer problema em "falar de outras coisas a propósito" (até mesmo porque a minha irritação maior com isto do AO é política)
- "Segundo a nossa tradição", que vem, como muito bem diz, de 1911. Caramba, para mim, um século, e que século, nestas coisas, já é "tradição". E insisto, pontapear o AO90, ou uma sua actualização mais-ou-menos, urge. Mas está muito aquém de pontapear a tal "tradição" estatista. Vamos a essa mais vasta canelada? Ok. Discutamo-la, não tenho preconceito contra. Mas não com este horizonte, que a questão é muito mais vasta, interessante. Deslumbrante?
De jl a 03.04.2013 às 02:29
A minha irritação é mesmo pela descaracterização e aleijão perpetrado sobre a língua portuguesa, seguido do espanto e revolta de como isso é possível com meia dúzia de golpes baixos.
O baixo nível cultural não explica tudo. É preciso um pendor grande para a destruição e para o possidonismo, a saloíice e cafrelização. Umas bestas.
Um século não é uma tradição numa língua que tem nove séculos - e muitas palavras que permancem intocadas desde o latim - , e se afirmou sem necessidade de reformas ditatoriais. Um século é, quando muito, uma infelicidade.
A "reforma" de 1911 é já uma reacção à proposta de reforma brasileira de 1907.
A coisa era inspirada no mais arrogante e estreito positivismo francês - para exportação, que a língua francesa não é para rapaziadas e continua igual ao que era quando Balzac escreveu.