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"…cheguei a um acordo perfeito com o mundo: em troca do seu barulho dou-lhe o meu silêncio…" (R. Nassar)
[fui adolescente nos anos 70. Lá onde era isso significava ler, também, a Rock&Folk. E foi nela, estou certo, que li e reli aquela frase de um jornalista americano, dita bem nos inícios da década e depois célebre. Qualquer coisa como “eu vi o futuro do rock n’roll e chama-se Bruce Springstein”. Agora que passou tanto tempo que o Springstein é já o passado do rock n’roll, ou se calhar é mesmo o rock que é o passado, houve uma noite em que me lembrei dela, que raio de memória, atafulhada de pequenos, esconsos (insignificantes) detalhes. Foi a...] 21 de Agosto, Café com Letras - e este é também uma boa escolha, hoje o bar do Naguib é o mais bonito de Maputo, ainda por cima com a Catembe fronteira a ajudar (Ka Tembe, um nome para o bar que falta do outro lado).
Jazz, o grupo de Celso Paco. Convidado Sérgio, um marimbeiro jovem. Durante algum tempo, três trechos lembro, apenas o baixo a marcar, como lhe era pedido, a bateria de um Celso cadenciado, excelente a saber não ser exuberante, a provocarem uma enorme e suave tensão, e a marimba do Sérgio a soltar-se, mas solta num diálogo muito ritmado, compassado, insistente, bem afirmativo do trio tenso, num som compacto.
Excelente. Mais do que excelente. O melhor que já ouvi em Moçambique. Ainda que soasse a esquiço, ou talvez por isso mesmo. Estava ali um caminho muito original. E, aleluia, sem quaiquer preocupações, dessas que por aqui ainda subsistem, das essências musicais, da tradição, da moçambicanidade, apesar da marimba estar lá. [Tensão tanta que todas as conversas interrompidas, e o nosso grupo estava muito animado, a despedir umas patrícias aqui há muito professoras. Um velho à mesa a dizer “eh pá, isto é muito ECM!”, ok, ok, dá para ilustrar o texto ainda que seja falso.]
Fantástico e, claro, "eu vi o futuro da música moçambicana, e chama-se...". Vou-lhes dizer isso, mas agradecem entre sorrisos enquanto desiludem, que não estão a pensar avançar muito naquilo, foi só para brincar naquele dia. Ah, conhecesse eu algum produtor musical!
Andei pelas livrarias, a comprar as poucas prendas e a falar com os empregados. Nas duas maiores livrarias de Maputo, as Escolar Editora, comprei o antepenúltimo “As duas sombras do rio”, o qual está esgotado, cinco meses depois de sair. Que raio, porque fizeram tão poucos? Do último de Mia Couto “O Fio das Missangas”, edição local há apenas um mês restam 30 em armazém, e repito a pergunta. Do delicioso “Xingondo”, belas crónicas de Daniel da Costa, nem vê-lo. E estas nem são edições patrocinadas, mas faltou qualquer coisa.
[Já agora que falo do Xingondo, um aviso de não crítico a quem chegou até aqui. É o cronista que mais me encanta nesta terra, não um imortal, mas algumas das peças bem conseguidas e, mais do que tudo, com uma ironia suave por aqui tão única, que o hábito dos seus colegas é um risco bem grosso, para ser nítido, que até cansa].
De Panguana, “O Chão das Coisas”, a biografia de Coluna “O Monstro Sagrado”, “A Viagem Profana” de Nelson Saúte, tudo da segunda metade de Dezembro nem sombra. Deste pacote de fim de ano só os “Poemas de Prisão” de Craveirinha à venda, nos escaparates usa-se dizer, e talvez porque noblesse oblige. E, atenção, todos patrocinados. Causa - efeito?
Cá para mim anda-se a dormir na forma, mas enfim, não sou homem de negócios. Mas fico-me, falta distribuição, não tão difícil assim em Maputo. Repito, é o raio dos patrocínios, o livro está feito, há o objecto e pronto, ninguém se preocupa mais.
E já agora, que falo de livros. Bebo com o poeta Afonso dos Santos, ele ia mais adiantado do que eu, mas ainda assim vai dizendo que anda à procura de editora para dois novos livros. Um “Coleccionador de Quimeras” que aqui esgotou 750 exemplares de poesia e anda à procura de quem o edite? Em casa vou ver-lhe o livro e lá está, patrocínio institucional, cheira-me a metade da edição metida em caixotes como retribuição do taco avançado e, aposto, desde então condignamente clandestinos para não desarrumar os corredores. Não sou muito de poemas, defeito ou característica, não sei. Mas um tipo que se avança com
Quando as minhas angústias
começam a morder-me
ponho-lhes a trela
saio à rua a passeá-las
e deixo-as ladrar
ao tédio transeunte.
Depois ponho-lhes asas
e deixo-as voar
como pássaros
em busca de primaveras
imprevisíveis
bem que deveria ser editado, mas para ser mesmo lido. Fosse ele de salões e talvez. Mas se calhar ladra-nos demais, a nós transeuntes.
Ontem mesmo, arrastando em Lisboa este tempo que por cá me resta, enfrentei aquele início de alfarrábio, ali postado entre o café Luanda e o café Polana, a avenida assim a agigantar-se em mapa cor-de-rosa. E descobri esta jóia, os poemas de Jorge Ferreira em “Saudade Macua”, um pequeno livro de 1969 e que então ganhou o Prémio Camilo Pessanha, atribuído pela Agência Geral do Ultramar e acredito que muito merecidamente.
Sou mero leitor, nada especialista em literatura, serão as minhas opiniões sobre os méritos deste livro apenas senso comum. Mas não posso deixar de realçar a obra, talvez até retirá-la do esquecimento, desmerecido, tão percursora ela é das sensibilidades e noções de hoje, a abrangente lusofonia. Pois nela se corporiza (antevê?) este sentimento lusófono que vem unindo portugueses e seus irmãos de outros continentes, não só a história que nos une, como ainda a comunhão que a habita nos correres dos tempos. Veja-se como Ferreira antecipa estas décadas do hoje em dia, Estados talvez apartados pelos ventos da política, povos unidos pela língua e pelo sentir, por tantos interesses comuns. Repito, a revisitar, este hoje esquecido poeta:
"O Branco da Terras"
Oliverra é o branco da terras’
Oliverra é nossa pai
gente conhece
gente entende
a nosso amigos’Oliverra
machamba de s’Oliverra
é sempre bom
chi..s’Oliverra
branco tem feitiço!
S’Óliverra usa chapéu
sol é muito quentee
s’Oliverra tem careca.”
Ah, tanta harmonia nesses dias, tanta harmonia para hoje.(Jorge Ferreira, Saudade Macua, Agência Geral do Ultramar, 11)
José Alberto Carvalho é locutor da televisão estatal portuguesa. Nela apresenta o telejornal. Que tenha eu reparado há pelo menos um ano e meio que termina a sua função, algo impante até, com a reclamação de que emitiram para todo "o mundo português". A primeira vez que tal ouvi nem quis acreditar. Foi-o talvez por coincidência ou talvez não, no momento da conferência de chefes de Estado do CPLP no Brasil. Acredito que entusiasmado por tão magno acontecimento se lembrou ele (ou o editor) de tal expressão: "o mundo português". Terá sido o “inconsciente colectivo” nele(s) brotado, ali a querer apagar a história?
Claro que os mais letrados se podem lembrar de Freyre e do seu "mundo que o português criou". Mas Freyre pode ser lido e relido, e sempre como homem do seu tempo, e arguto, que o caminho dele era bem mais complexo do que lho quiseram dar. E deste Carvalho duvido que leia Freyre, pelo menos com olhos de ler. E duvido ainda mais que seja homem do seu (nosso) tempo. Daí que este "mundo português" do qual se despede, impante repito, todas aquelas noites é-lhe decerto mais parecido com aquele império que se expôs em 1940.
É Carvalho um reaccionário, um saudosista, um revanchista? A querer mudar a história com a sua pequena retoricazita? Não o creio, acho mesmo que é apenas um ignorante e nem tem consciência do que diz. De que é emitido, e por via de acordos entre Estados, para os países africanos que não se consideram "mundo português". E que não o são. (Para bem de todos nós, diga-se.) E países onde tal afirmação constantemente repetida na nossa televisão estatal só pode criar desnecessários anti-corpos, resmungos, mal-estar: pois água dura em pedra mole ...
Má vontade minha com um pequeno pormenor? Um episódio ridículo do corropio de ignorância, bem sonora a televisiva? Não acho. Trata-se da televisão pública, da informação estatal. Pode não ser a voz do dono (e francamente acho que não o é, já a vi bem mais seguidista), mas no estrangeiro representa o poder, a sociedade. Percepção que se reforça, naturalmente, em países onde a informação é ainda mais dependente do poder político do que a nossa o é, o que molda a visão que têm das outras.
Francamente, esqueço-me desse Carvalho. Custa-me é que noite após noite ninguém na RTP, áfrica ou não, lhe diga "ó homem, cale-se lá com isso", que ninguém fora da RTP, áfrica ou não, lhe diga "ó homem, cale-se lá com isso...". Ou será que realmente se pensa por aí que há esse "mundo português"?
Caramba, bastava dizer um "mundo em português", um pequeno "em" até talvez hipócrita, mas que diferença semântica. Politicamente correcto? Não, não! Historicamente correcto [e mesmo sobre a língua haveria tanto para dizer, mas aqui não vale a pena]. Mas enfim, ninguém acha necessário dizer algo. Pelo menos blogo aqui a minha curiosidade, o meu espanto, onde é que vão descobrir esta gente, estes carvalhos e afins, de onde brotam eles, tão viçosos e saudáveis? E que raio, vão eles sempre florindo, e bem alimentados exactamente por parecerem credíveis, confiáveis. E assim seguindo com fé e afinco o mandamento bíblico, crescendo e multiplicando-se.
Neste Maputo, que de há muito não é LM ou um qualquer outro "mundo português", e onde como imigrantes vamos sendo julgados e/ou gozados por cenas como estas, olho-o(s) lampeiro(s) no ecrã e vou-me lembrando da velha pergunta de autor, "e não se pode exterminá-los"?
Mas, e pensando melhor, talvez não seja essa uma boa ideia, que bem piores se seguiriam, pois por aí parece não haver limite para tudo isso.