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Um Punhado de Pó

por jpt, em 27.11.08

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[Evelyn Waugh, Um Punhado de Pó (A Handful of Dust), Lisboa, Cotovia, 2008 (1934) (Tradução de Daniel Jonas)]

Tony e Brenda Last são casal quase exemplo, enredados numa morna relação. Vivem em Hetton Abbey, a mansão familiar dos Last. Ela, sentindo-se acantonada, enfastia-se. Ele, proprietário terratenente semi-arruinado, algo pedante e vácuo, esgota os seus interesses na preservação da casa e na continuidade já anacrónica do velho modo de vida local, que considera associado ao seu estatuto. O tom satírico de toda a trama desvenda-se nas características neo-góticas do edifício, então fora de moda, assim desvalorizando aos olhos alheios todo aquele empenho, até ridicularizando a personagem. Um ridículo que é também desvalorização social, pois denota-lhe a ausência do "gosto correcto" da época, desajustando-o ao seu meio social.

O pano de fundo é o quadro da decadência entre-guerras (anos 1930s) dos proprietários ingleses (as grandes casas como sobrevivência de tempos passados, é uma afirmação dos trabalhistas ecoada por uma das personagens), a qual obriga a economias de minudência (os bilhetes de comboio de terceira classe, os pequenos negócios da vendedora Beaver, as opções sobre aquisições ou obras domésticas, as preocupações de alimentação em regime de quase miséria, etc) que tudo contrastam com a auto-percepção do grupo enquanto elite e com as suas práticas sociais (as festas, os clubes - modos de fazer e reproduzir uma topologia de estatutos sociais), o que também vai traduzindo o jogo de aparências públicas necessárias para a manutenção de um estatuto social.

A sátira desvendadora estende-se ao ambiente moral vigente. Disso exemplo é o eco na "sociedade" do caso amoroso entre Brenda e o empobrecido e desinteressante Beaver, uma relação sem particular encanto. É uma recepção até divertida, encarando-a não como escândalo mas como evento necessário à quebra do fastio rotineiro, o "adultério da estação". Mas, por integrável que seja na rotina, não ofendendo sobremaneira os valores vigentes, a relação implica a manutenção, subtil do statu quo: Beaver não recolhe nenhuma ascensão social dessa relação com Lady Brenda (a ruptura consumar-se-á em parte devido ao inderimento da sua candidatura a um clube) e esta enfrenta um horizonte de muda queda económica e social devido ao seu caso amoroso. Corolário deste tom é a afirmação do pragmatismo sentimental, o recasamento de Brenda com o amigo da família Jock Grant-Menzies – para quem conheça estes caminhos literários é algo expectável ao longo da narrativa, ainda que nunca indiciado, o que empobrece a trama. O pouco eco da morte dramática de John Andrew, o petiz herdeiro dos Last, será também traço distintivo de uma aparente superficialidade sentimental geral – ou, o que me parece mais claro, uma pobreza devida à economia narrativa, até porque contrastando com a questão fundamental do livro, a da vontade de perenidade.

A centralidade da questão económico-social denota-se no destino de Tony Last: perde primeiro a mulher, devido à sua "distracção", monopolizado pelos assuntos da propriedade; perderá o filho num coreagrafado acidente de caça, resquício do modus vivendi senhorial (e no qual a intervenção de um autocarro é símbolo de uma modernidade [tecnológica] que vem disromper a geneo-lógica vigente); perder-se-á a si próprio, finalmente, devido à sua recusa no divórcio. Com efeito, ao ser confrontado com as exigências financeiras da mulher - ainda que ela seja a adúltera [e toda essa situação, portanto o próprio destino do livro, incrusta-se nas características legais de então] -, que o obrigariam a vender a propriedade, portanto implicariam uma radical destituição sociológica (de conteúdo espiritual), Last recusa-se a conceder o divórcio. Algo que o impele a um período de nojo, um afastamento sazonal que lhe permita “manter a face” no seio do seu meio. A viagem final em que incorre é assim causada pelo seu desejo de imobilidade, social e geográfica.

Mas nela, e seus efeitos, explicita-se também uma concepção individualista dos percursos sociológicos, pois são as tramas conjugais que demonstram a incapacidade individual de manter, estrategicamente, o estatuto social herdado. Ou seja, os efeitos da viagem, que causa o desapossamento radical (da liberdade e da vontade, o proprietário feito escravo) fica explícita a mensagem subliminar: o desastre individual é causado pelas estratégias que procuram suportar o primado da propriedade, num meio social terratenente serôdio.

Enxertado no livro, culminando-o, surge o conto "O homem que gostava de Dickens", uma curta saga amazónica, cuja conjugação parece pouco plausível. Irrealidade que nem o tom satírico da novela minora, pois ele ancora num realismo explícito. Há até uma disparidade de ritmos narrativos, a vibrante descrição da selva contrasta com o calmo, e até viperino, realismo descritivo do ambiente tardo-eduardino. Contraste talvez legitimado pelos diferentes contextos, mas causando estranheza, até incoerência.

E que também contrasta com as características do protagonista. Certo que nele culmina a continuada apatia de Last, a concepção de que as mudanças geográficas não mudam as personalidades (“Para quê viajar?”, será a questão), ainda que lhes possam alterar (e até inverter) os estatutos. Mas é também certo que o próprio perfil aventureiro da viagem é infundamentado, não condizente com o conteúdo psicológico do protagonista, e muito pouco justificável pela dimensão da personagem Messinger, o explorador que dinamiza a viagem (influenciando o influenciável Last), mas cujos traços meramente esboçados, quase caricaturais, não convencem como potencial dínamo..No entanto as linhas de ruptura entre a novela e o enxerto centram-se no objecto fundamental: é certo que o episódio final demonstra que o civilizado em queda escravizado pelo bárbaro, o anacrónico Last vitimizado pelos novos tempos e assim condenado a servir, ecoando o saber racional moderno a quem, ainda que apreciando-o (o som das palavras) verdadeiramente não o percebe – que dickensiano apaixonado, como Todd aparenta ser, escravizaria um indefeso? É uma polissémica crítica da exportação da modernização, casando os dois núcleos textuais.

Mas mais fundo está a tal ruptura: pois Todd, na sua rudeza curiosa e amoral é símbolo da barbárie. Não da selvajaria, essa característica da inanidade dos ameríndios que o rodeiam – e que na sua maioria deles descendem, grande procriador que se reclama. Filho mestiço e analfabeto de missonário anglófono, deste herdou não só uma mala de velhos livros como a paixão por Dickens. Não é um selvagem, é um bárbaro, estádio intermédio da evolução que lhe advém da ascendência biológica e do contacto civilizado (e cristão). Mas é também um estádio intermédio da involução, aos seus múltiplos filhos não transmitiu essa vontade imaginativa. Em ambos os cenários, o britânico e o amazónico, Waugh fala da "Queda". Todd, na sua boçalidade inane, é um avatar de Last, procurando manter a sua Hetton Abbey, o seu Dickens ali anacrónico, ali absurdo. A escravização de Last, a sua putativa morte, é uma osmose. Ou seja, a barbárie está no destino de Todd e no de Last, a dissolução da mensagem passeia-se em Todd a caminho da selvajaria, a sua Queda está também em Hetton Abbey.

Há ainda o final alternativo, remedeio que Waugh compôs para possibilitar a publicação do livro nos EUA, onde o conto já tinha sido editado autonomamente. Ainda que a narrativa possa assim parecer mais coerente com o registo anterior do que o enxerto amazónico aparenta, o certo é que não só o tom muda radicalmente (o texto aparenta ter sido escrito de rajada, por razões pragmáticas) , mas também o ideário. Aqui o casal sobrevive enquanto tal, mas com papéis actuantes invertidos: Tony regressa a Londres, mergulhando nas teias da infidelidade, Brenda recolhe a Hetton Abbey, à domesticidade reprodutiva assim assegurando a perenidade. É notória a inflexão do conteúdo moral. Não é de Queda que se fala, mas da Ressureição, para a qual apenas se exigirá a alteração das práticas individuais – de novo o individualismo. Que a apatia de Last se desvaneça, que Brenda se recolha e a continuidade sobrevirá. Um conformismo individualista que ultrapassa, por completo, qualquer intenção satírica.

Finalmente. A tradução aparenta ser pastosa (algo que surge "escondida na ideia", por exemplo), sublinhando que Waugh se lê no original. Para mais a edição tem notas algo desnecessárias (uma nota explicitando o que é "Senegal" será necessária? Um mapa legendado não substituiria as cansativas notas – no fim ainda para mais – relativas a zonas e bairros londrinos?)

Estrelas: 3

Adenda: Waugh na Wikipédia; A Handful of Dust na Wikipédia.

publicado às 12:59

O Mundo dos Ricos

por jpt, em 27.11.08

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[Graham Greene, O Mundo dos Ricos (Doctor Fischer of Geneva or The Bomb Party, 1980), Lisboa, Europa-América, (tradução de J. Teixeira de Aguilar - também é bloguista)]

Alfred Jones é um vulgar cinquentão viúvo, mero tradutor numa fábrica de chocolates suíços, cuja modéstia de horizontes e inexistência de ambições cristaliza a sua relativa decadência social, filho que é de um antigo diplomata britânico, nobilitado em fim de carreira. Num inusitado coup-de-foudre vem a casar-se com Anna-Louise, a muito jovem filha do Doutor Fischer, milionário por via da invenção de um dentífrico, personagem basto desagradável, repugnante à filha devido aos maus-tratos psicológicos à sua mãe, morta por desgosto, infere-se.

A trama romanesca praticamente não existe, é um encontro ocasional que faz ultrapassar os trinta e cinco anos de diferença entre ambos, mais denotando o vácuo (o limbo?, adiante referido no habitual registo teológico em Greene) das respectivas existências. Aparentemente seria uma ligação freudiana. Mas a homologia etária entre Jones e Fischer (marido e pai) associa-se a uma inversão de outro âmbito. Se Jones corporiza um lento declínio social fá-lo através de uma desistência existencial, uma inanidade biográfica próxima da realização pessoal, a qual associa a uma (relativa) pureza de sentimentos, apenas mitigada pelo orgulho da pobreza que Fischer virá a desnudar. Isso confronta-o ao seu sogro, cujo enriquecimento o fez ascender socialmente, processo que lhe faz advir uma tal insatisfação, um desagrado feito de objectivos pragmáticos realizados, um tudo isso que o torna um cúmulo de desagradável. É uma ironia, até algo explicitada por Jones, o facto de Fischer ser o impuro que é por produzir um produto higiénico e Jones ser quem é (dotado de pureza de sentimentos) enquanto trabalha para os poluentes (pois nada saudáveis) chocolates - o inverso dos seus estados de alma, a radical oposição de perfis.

Este livro é normalmente apresentado como dedicado à crítica da cobiça e da ganância. Pois retrata o destino escolhido de Fischer, fazendo-se rodear de falsos amigos, gente mui rica à qual aviva a cobiça que lhes é própria (enquanto ricos) ao cumulá-los de preciosos presentes, corolários de grotescos jantares ritualizados, durante os quais se dedica a maltratar e humilhar os circundantes, condição essa sine qua non para a recepção das ofertas. [Honestamente, a trama é muito pouco plausível e pouco interessante] É isso, reclama, o seu estudo sobre a natureza humana, a sua reflexão teológica sobre a alma humana, dir-se-ia, se no constante registo de Greene. Mas o que transpira ao longo do texto é que Fischer surge aos humanos olhos da filha (e de Jones) como o inquietante e perturbador arquétipo do mal, a diabólica desumanidade.

Mas não será assim. No diálogo entre os cônjuges concluirão que o milionário não tem alma. Pois se "Quando se tem alma, não é possível estar-se satisfeito consigo próprio." diz Alfred Jones (89) explicando a sua vaga religiosidade cristã em resposta à questão de Anna-Louise:"Toda a gente tem alma, não? Quer dizer, desde que se acredite na alma.". Para ele "Essa é a doutrina oficial, mas a minha é diferente. Acho que a alma se desenvolve de um embrião, tal como nós. O nosso embrião não é ainda um ser humano, tem ainda qualquer coisa de peixe, e o embrião da alma não é ainda uma alma. Duvido que as crianças pequenas tenham mais alma do que os cães. ... Talvez fosse por isso que a igreja católica inventou o limbo." (88-89)

Mas tudo culmina na festa final, e em sentido inverso, como se o livro fosse um romance de formação interrompido (pela morte precoce de Anna-Louise), dotando os personagens de saber e dúvidas. Aí se suicidará o seu pai (e se a tentação suicida de genro e sogro é nada católica, em cenário greeniano ela é até recorrente) . Não sem antes Jones o invectivar, descobrindo-o "como V. se deve desprezar". Assim, afinal, o mal (Fischer) tem alma, descontente do seu aparente sucesso, por ele feito histriónico. É essa a mensagem do livro. Como sempre o mal radica em nós, o humano bem real.

Ainda assim, para mim o pior livro de Greene.

Estrelas: 1

publicado às 02:01


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