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António Dornelas

por jpt, em 02.02.13

Leio agora mesmo que morreu António Dornelas. Conheci-o muito mal, mas dele tenho tão boa imagem (desde agora já memória), raríssima, que me obrigo a uma vénia escrita.

Meu colega de turma no ISCTE, umas disciplinas comuns de Sociologia e Antropologia, no nosso 2º ano. Um tipo interventivo, uma década mais velho, já estruturado e informado - e bem me lembro dele, homem grande, voz cava, a afirmar-se, em saudáveis contra-ataques, às "diatribes" crítico-contextualizadoras de Pacheco Pereira (de que eu tanto gostava) e sua equipa docente.

Passados uns anos, saído eu da tropa, encontrei-o nas tramadas bichas de entrega de documentos do "mini-concurso" para professor do secundário, ali na escola da cidade universitária de Lisboa. Ele estava ali rodeado de colegas, e foi ele que se lembrou deste puto (ainda que ali já de espólio feito), e para minha surpresa chamou-me lá para o meio deles (sim, galguei um bocado na bicha). E com nítido prazer se pôs a contar, com inesperada memória, histórias, historietas, episódios e bocas daqueles tempos (e quanto se ria ele, lembrando a minha resposta ao jpp, que me perguntava, altaneiro, "mas afinal qual é esse Bacon de que está a falar?" e eu, furibundo, com o desmerecimento assim implícito, a brotar-me um "não é o que se come, com toda a certeza").

Nunca mais ouvi falar dele. Depois emigrei e assim continuou, com normalidade, pois nem fazia parte das minhas redes. Depois vi-o uma vez em Maputo. Por razões profissionais a minha mulher teve que acompanhar a visita de uma delegação portuguesa, (mais) um qualquer secretário de estado que cá vinha, nas infinitas visitas de "cooperação". No primeiro dia chegou a casa a gabar o tal SEXA, "simpático, simples, competente, inteligente", um pacote mais ou menos assim. A Inês não tem a verrina do marido, aceita muito mais as fraquezas humanas e seus modos (decerto por ser mais do que o tal marido), mas não é exactamente pródiga em elogios. Fiquei contente. No último dia da visita houve um jantar, informal, com a comitiva portuguesa, e desafiou-me a acompanhá-la. Recusei, pois mesmo assim "não tenho paciência para esses tipos" (era o tempo de Guterres, recordem-se).

Depois de jantar ela telefonou-me, para que fosse beber um copo ao Cine África (quando o Cine África era um sítio a visitar, um óptimo bar de música ao vivo). Lá fui, e ainda bem, pois o Dornelas fazia parte da comitiva. "Hé pá!, estás cá!!", surpresa, "também andas nisto?", ripostei, bem-humorado. Conversámos um bocado, sobre Moçambique, o nós-por-cá, um bocado sobre música também (da que tocava e doutra de cá), um ambiente descontraído entre aqueles "comitivos", boa gente. Depois saímos, cedo, tudo cansado. Cá fora, no passeio, as despedidas, "até à próxima, quando cá vieres" ou "então em Lisboa, apareçam, a tua mulher tem os contactos", aquilo que se diz, ainda que nunca o façamos. No meio disto alguém se lhe dirige "sô secretário de estado ...". Estanquei, estupefacto, que nada mo dera a entender, "és tu o secretário de estado?" e rio-me, rimo-nos, "já estragaste tudo!!", diz ele.

Nunca mais o vi. Haverá, decerto, muita gente com muito mais, e mais significativos, dizeres para o lembrar, para o elogiar. Mas partilho aqui este pequeno "fósforo" de uma vida, uma minudência. A mostrar um homem, garanto, especial. Raro. Pois tão raro é encontrar, cruzar, gente assim. Aliás, tão raro é encontrar gente.

publicado às 14:25


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