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"…cheguei a um acordo perfeito com o mundo: em troca do seu barulho dou-lhe o meu silêncio…" (R. Nassar)
Como antes referi em alguns blogs discute-se a Ajuda Pública ao Desenvolvimento portuguesa. Nesses casos surge integrada a questão de Cahora Bassa, como ilustração de algum deficit de capacidade de realização, mas em termos algo deslocados.
Por um lado, porque Cahora Bassa não pode ser considerada APD (no jargão, cooperação). Pesem embora os continuados esforços dos sucessivos governos portugueses em integrar nessa rubrica os gastos com a manutenção da empresa que gere a barragem, ao invés das considerações internacionais (em especial da OCDE) sobre a matéria - diga-se até do algum mal-estar que essa prática veio a causar.
Por outro lado também a realidade actual da Hidroeléctrica de Cahora-Bassa não corresponde exactamente ao que foi referido (natural, não sendo o cerne das preocupações dos blogoescribas em causa).
Finalmente afigura-se que se aproximam, até que enfim, momentos de transformação bem positiva (para Moçambique e para Portugal) da situação da empresa.
Para retocar alguns pormenores, mesmo que marginais ao cerne da questão "cooperação", aqui me recorro de um recente artigo da autoria do meu amigo António Botelho de Melo, cronista contínuo, algo corrosivo e, até, visita regular destas Ma-Schamba.
CARPE DIEM
Por António Botelho de Melo
(publicado originalmente na revista "QP", nº 32, Dezembro 2003/Janeiro 2004, Maputo)
A história tem destas coisas: a descida do dólar e a subida do rande poderão vir a ser o elemento crucial que vai viabilizar em 2004 uma “velha” aspiração moçambicana: que a Hidroléctrica de Cahora Bassa, empresa de capitais maioritariamente portugueses e que explora o complexo hidroeléctrico na parte moçambicana do rio Zambeze, passe a ser um património sob gestão dos moçambicanos.
Das várias curiosidades esotéricas da experiência colonial portuguesa em África, sempre houve duas que me fascinaram no caso de Moçambique. Uma, foi o genial mas patentemente inexplicável investimento que António de Oliveira Salazar, o emblemático ditador português e principal responsável por mais uma descolonização extemporânea, permitiu que um seu grande amigo, o Engº Trigo de Morais, fizesse nos anos 50 naquilo que nos tempos chamavam o Colonato do Limpopo e que hoje dá pela designação menos imperialista de Chókwé. Conhecia vagamente o complexo pois aquilo nos anos sessenta estava cheio de açorianos e os meus pais, oriundos das ilhas atlânticas onde Gungunhana usufruiu um bucólico exílio, iam lá uma vez por ano ver um casal (apropriadamente, simpático mas analfabruto que bastasse)que plantava tudo e mais alguma coisa. As visitas eram valentíssimas secas, eu ficava o dia inteiro na barragem a ver os jacarés, e voltávamos para casa com sacos enormes de feijões, favas e pão doce que depois levava penosos meses de uma dieta a martelo para acabarem. Há coisa de dois anos, para oferecer ao Luis Trigo de Morais, um seu descendente, comprei num alfarrabista em Lisboa um livro publicado nos anos sessenta, o qual relata toda a saga do Engº Trigo de Morais, que foi de facto uma grande personalidade. Creio que está sepultado perto da barragem.
O outro foi Cahora Bassa, a grande barragem, central hidroeléctrica e um gigantesco lago atrás, construído em Tete em plena guerra de libertação, com toda a pompa do regime (até havia uma marca de cigarros com o seu nome) e cujo único cliente de renome era, e é, até hoje, a África do Sul – ou melhor, a Eskom. Azar para o governo português (o de hoje herdou os activos e alguns passivos do regime anterior), ficou dono de 82 por cento da empresa, mudou o “Cabora” para “Cahora” no papel de carta (“acabou o trabalho”, na língua da região)e procedeu a cumular dois mil e tal milhões de dólares em dívidas, pois, com as vicissitudes depois de 1975, a economia parou e aquilo só gerava muita despesa e nenhuma receita.
Bom para vender, como diria o escritor Eça de Queiroz. Mas, por razões óbvias, durante décadas ninguém quis comprar e o governo português ficou a segurar o saco.
Devido à dívida acumulada, e bem feitas as contas, contabilisticamente a HCB (sigla que hoje descreve a empresa, que figura no topo das empresas a operar em Moçambique) se calhar valerá pouco mais que nada – mas logo se verá quando os accionistas portugueses receberem a avaliação que encomendaram à UBS.
Entretanto mudaram-se os tempos, mas não os equívocos. As sucessivas administrações foram gerindo o processo enquanto possível. Mas na base a estrutura do negócio permanece a típica de um elefante branco da era colonial que simplesmente não se logrou resolver.
Até agora, quero dizer. Vejamos os principais interessados. Moçambique creio que teve uma posição consistente de querer desempenhar um papel mais preponderante na gestão dado ser aquele um dos grandes recursos nacionais e onde portanto os moçambicanos deveriam ter mais dizer. Estando em paz e na senda de um desenvolvimento que se crê profícuo nas próximas décadas e com necessidades significativas de água e energia (recursos estratégicos no século XXI), crêm-se criadas as condições para uma rentabilização e gestão alternativa credíveis deste recurso que é o complexo em Tete.
A África do Sul, que está a entrar na fase do após o pós apartheid, e também com a sua quota de “passado colonial”, e que quer energia boa e barata, tem posto a sua pressão (tem dado todos os indícios disso, incluindo o pagamento dos famosos 3 cêntimos de rande por quilowat, o que dá para rir) e incluiu o misterioso aparecimento recente, na imprensa sul-africana, de alguns curiosos artigos, o mais politicamente correctos possível, a chamar todos os nomes possíveis aos portugueses e a exortar os tugas a resolverem o assunto. Touché.
Em Portugal a HCB, que estava perdida algures no meio da burocracia governamental como um investimento do Estado, pouco mais serviu que para acumular dívidas, arranjar alguns empregos porreiros (exceptuo alguns magníficos técnicos que ajudaram a fazer aquele um grande empreendimento a qualquer titulo) e envenenar as relações com Moçambique e, em parte, com os sul-africanos.
De boas intenções está cheio o inferno. E de facto perdura no ar há muito tempo um sentimento que, aparte do restante investimento português cá, esta é uma festa para que não foram extactamente convidados. Mas, no mundo real, as soluções resultam quase sempre de consensos sobre como melhor resolver os problemas. E agora é a altura:
a) Moçambique finalmente, e claramente, reúne todas as condições para assumir um papel mais preponderante que reflicta o interesse nacional; o sector da água e energia já é, e pode vir a ser mais, o motor do arranque da criação de riqueza e empregos no futuro, num contexto regional; b) a África do Sul está numa posição única do ponto de vista financeiro: tem a necessidade, tem a moeda quase mais forte do mundo em termos cambiais, e capacidade de endividamento mais que suficiente para entrar em qualquer negócio a um bom preço e, correctamente, olhar para Moçambique como o vizinho que pode e deve vir a ser um parceiro estratégico; c) Portugal está com a corda na garganta como nunca esteve, fiscal e financeiramente, e, se só por isso, deveria estar mais predisposto a negociar uma alienação de algum do seu capital social na HCB a um preço amigável. Adicionalmente, creio que a resolução do dossier HCB seria um contributo positivo para algum desanuviamento e um relacionamento menos atribulado com Moçambique; d) As taxas de juro internacionais estão a níveis historicamente nunca vistos e há imenso dinheiro por aí à procura de bons investimentos. A HCB, que nunca foi um bom investimento para Portugal, poderá vir a ser um bom investimento e nessa base, deveria atrair capital e investidores. e) uma actualização das taxas cobradas pela electricidade para preços de mercado geraria as receitas que sustentariam de forma mais que adequada a compra de 32.01% das acções pelos moçambicanos (resultando nos mágicos 50.01% de capital, ou controlo do empreendimento) e ainda a liquidação de boa parte dos 2300 milhões de dólares da dívida que o governo português - bem ou mal - acumulou desde 1974.
Havendo bom senso e uma visão histórica e empresarial das partes envolvidas, creio que há neste momento o contexto e as condições para estruturar um negócio que a todos convenha.
Esta é a altura. Portanto, como diziam os velhos romanos. carpe diem.