Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]




Cahora-Bassa

por jpt, em 02.03.04

 
(foto retirada de "A Nossa Energia Abraça Moçambique", HCB, 2000; lamentavelmente sem individualização da autoria de cada fotografia).
 

 

Como antes referi em alguns blogs discute-se a Ajuda Pública ao Desenvolvimento portuguesa. Nesses casos surge integrada a questão de Cahora Bassa, como ilustração de algum deficit de capacidade de realização, mas em termos algo deslocados.

 

Por um lado, porque Cahora Bassa não pode ser considerada APD (no jargão, cooperação). Pesem embora os continuados esforços dos sucessivos governos portugueses em integrar nessa rubrica os gastos com a manutenção da empresa que gere a barragem, ao invés das considerações internacionais (em especial da OCDE) sobre a matéria - diga-se até do algum mal-estar que essa prática veio a causar.

 

Por outro lado também a realidade actual da Hidroeléctrica de Cahora-Bassa não corresponde exactamente ao que foi referido (natural, não sendo o cerne das preocupações dos blogoescribas em causa).

 

Finalmente afigura-se que se aproximam, até que enfim, momentos de transformação bem positiva (para Moçambique e para Portugal) da situação da empresa.

 

Para retocar alguns pormenores, mesmo que marginais ao cerne da questão "cooperação", aqui me recorro de um recente artigo da autoria do meu amigo António Botelho de Melo, cronista contínuo, algo corrosivo e, até, visita regular destas Ma-Schamba.

 

CARPE DIEM

Por António Botelho de Melo

(publicado originalmente na revista "QP", nº 32, Dezembro 2003/Janeiro 2004, Maputo)

 

A história tem destas coisas: a descida do dólar e a subida do rande poderão vir a ser o elemento crucial que vai viabilizar em 2004 uma “velha” aspiração moçambicana: que a Hidroléctrica de Cahora Bassa, empresa de capitais maioritariamente portugueses e que explora o complexo hidroeléctrico na parte moçambicana do rio Zambeze, passe a ser um património sob gestão dos moçambicanos.

 

Das várias curiosidades esotéricas da experiência colonial portuguesa em África, sempre houve duas que me fascinaram no caso de Moçambique. Uma, foi o genial mas patentemente inexplicável investimento que António de Oliveira Salazar, o emblemático ditador português e principal responsável por mais uma descolonização extemporânea, permitiu que um seu grande amigo, o Engº Trigo de Morais, fizesse nos anos 50 naquilo que nos tempos chamavam o Colonato do Limpopo e que hoje dá pela designação menos imperialista de Chókwé. Conhecia vagamente o complexo pois aquilo nos anos sessenta estava cheio de açorianos e os meus pais, oriundos das ilhas atlânticas onde Gungunhana usufruiu um bucólico exílio, iam lá uma vez por ano ver um casal (apropriadamente, simpático mas analfabruto que bastasse)que plantava tudo e mais alguma coisa. As visitas eram valentíssimas secas, eu ficava o dia inteiro na barragem a ver os jacarés, e voltávamos para casa com sacos enormes de feijões, favas e pão doce que depois levava penosos meses de uma dieta a martelo para acabarem. Há coisa de dois anos, para oferecer ao Luis Trigo de Morais, um seu descendente, comprei num alfarrabista em Lisboa um livro publicado nos anos sessenta, o qual relata toda a saga do Engº Trigo de Morais, que foi de facto uma grande personalidade. Creio que está sepultado perto da barragem.

 

O outro foi Cahora Bassa, a grande barragem, central hidroeléctrica e um gigantesco lago atrás, construído em Tete em plena guerra de libertação, com toda a pompa do regime (até havia uma marca de cigarros com o seu nome) e cujo único cliente de renome era, e é, até hoje, a África do Sul – ou melhor, a Eskom. Azar para o governo português (o de hoje herdou os activos e alguns passivos do regime anterior), ficou dono de 82 por cento da empresa, mudou o “Cabora” para “Cahora” no papel de carta (“acabou o trabalho”, na língua da região)e procedeu a cumular dois mil e tal milhões de dólares em dívidas, pois, com as vicissitudes depois de 1975, a economia parou e aquilo só gerava muita despesa e nenhuma receita.

 

Bom para vender, como diria o escritor Eça de Queiroz. Mas, por razões óbvias, durante décadas ninguém quis comprar e o governo português ficou a segurar o saco.

 

Devido à dívida acumulada, e bem feitas as contas, contabilisticamente a HCB (sigla que hoje descreve a empresa, que figura no topo das empresas a operar em Moçambique) se calhar valerá pouco mais que nada – mas logo se verá quando os accionistas portugueses receberem a avaliação que encomendaram à UBS.

 

Entretanto mudaram-se os tempos, mas não os equívocos. As sucessivas administrações foram gerindo o processo enquanto possível. Mas na base a estrutura do negócio permanece a típica de um elefante branco da era colonial que simplesmente não se logrou resolver.

 

Até agora, quero dizer. Vejamos os principais interessados. Moçambique creio que teve uma posição consistente de querer desempenhar um papel mais preponderante na gestão dado ser aquele um dos grandes recursos nacionais e onde portanto os moçambicanos deveriam ter mais dizer. Estando em paz e na senda de um desenvolvimento que se crê profícuo nas próximas décadas e com necessidades significativas de água e energia (recursos estratégicos no século XXI), crêm-se criadas as condições para uma rentabilização e gestão alternativa credíveis deste recurso que é o complexo em Tete.

 

A África do Sul, que está a entrar na fase do após o pós apartheid, e também com a sua quota de “passado colonial”, e que quer energia boa e barata, tem posto a sua pressão (tem dado todos os indícios disso, incluindo o pagamento dos famosos 3 cêntimos de rande por quilowat, o que dá para rir) e incluiu o misterioso aparecimento recente, na imprensa sul-africana, de alguns curiosos artigos, o mais politicamente correctos possível, a chamar todos os nomes possíveis aos portugueses e a exortar os tugas a resolverem o assunto. Touché.

 

Em Portugal a HCB, que estava perdida algures no meio da burocracia governamental como um investimento do Estado, pouco mais serviu que para acumular dívidas, arranjar alguns empregos porreiros (exceptuo alguns magníficos técnicos que ajudaram a fazer aquele um grande empreendimento a qualquer titulo) e envenenar as relações com Moçambique e, em parte, com os sul-africanos.

 

De boas intenções está cheio o inferno. E de facto perdura no ar há muito tempo um sentimento que, aparte do restante investimento português cá, esta é uma festa para que não foram extactamente convidados. Mas, no mundo real, as soluções resultam quase sempre de consensos sobre como melhor resolver os problemas. E agora é a altura:

 

a) Moçambique finalmente, e claramente, reúne todas as condições para assumir um papel mais preponderante que reflicta o interesse nacional; o sector da água e energia já é, e pode vir a ser mais, o motor do arranque da criação de riqueza e empregos no futuro, num contexto regional; b) a África do Sul está numa posição única do ponto de vista financeiro: tem a necessidade, tem a moeda quase mais forte do mundo em termos cambiais, e capacidade de endividamento mais que suficiente para entrar em qualquer negócio a um bom preço e, correctamente, olhar para Moçambique como o vizinho que pode e deve vir a ser um parceiro estratégico; c) Portugal está com a corda na garganta como nunca esteve, fiscal e financeiramente, e, se só por isso, deveria estar mais predisposto a negociar uma alienação de algum do seu capital social na HCB a um preço amigável. Adicionalmente, creio que a resolução do dossier HCB seria um contributo positivo para algum desanuviamento e um relacionamento menos atribulado com Moçambique; d) As taxas de juro internacionais estão a níveis historicamente nunca vistos e há imenso dinheiro por aí à procura de bons investimentos. A HCB, que nunca foi um bom investimento para Portugal, poderá vir a ser um bom investimento e nessa base, deveria atrair capital e investidores. e) uma actualização das taxas cobradas pela electricidade para preços de mercado geraria as receitas que sustentariam de forma mais que adequada a compra de 32.01% das acções pelos moçambicanos (resultando nos mágicos 50.01% de capital, ou controlo do empreendimento) e ainda a liquidação de boa parte dos 2300 milhões de dólares da dívida que o governo português - bem ou mal - acumulou desde 1974.

 

Havendo bom senso e uma visão histórica e empresarial das partes envolvidas, creio que há neste momento o contexto e as condições para estruturar um negócio que a todos convenha.

 

Esta é a altura. Portanto, como diziam os velhos romanos. carpe diem.

publicado às 15:42


2 comentários

Sem imagem de perfil

De Carlos Magul a 02.10.2007 às 16:01

tenho uma duvida que me levo desde o inicio deste ano.
Segundo o Direito Internacional, quando um estado torna-se independente da Patria-Mae, os bens de caracter publico localizados no territorio do novo estado, passam automaticamente ao controlo deste.
A HCB, foi construida pelo goerno portugues, portanto um bem publico, nao teria sido o caso de passa-la automaticamente ao estado moçambicano na altura da independencia?

Agrdeço a vs atençao.
Sem imagem de perfil

De JPT a 02.10.2007 às 16:02

não sou jurista, não lhe posso adiantar nada de realmente fundamentado sobre as suas considerações acerca do Direito Internacional Publico. Por sua vez a HCB é uma empresa de capital público, o que me parece ter alguma diferença em relação ao bem público (estatal)
De qualquer forma, e talvez isso o esclareça sobre este assunto, há um acordo de 1974-5 entre o governo português e o moçambicano que considera o estatuto especial da HCB, implicando a sua transferência para a parte moçambicana assim que determinada dívida (não lhe posso especificar qual, mas presumo que a respeitante aos compromissos de construção) fosse reembolsada ao Estado português.
É esse acordo que sustenta o actual processo de transferência/venda da HCB ao EStado moçambicano, que presumo vir a ser efectuado durante 2005. Este longo período de transição deve-se em grande medida à ineficiente exploração da barragem derivada da guerra. Isso implicou o crescimento exponencial da dívida da empresa para com o Estado português - actualmente muito superior ao próprio valor da barragem. Presumo que o arrastar da discussão implique fundamentalmente dois vectores: a renegociação do preço da electricidade comprada pela ESKOM sul-africano, algo alcançado há pouco; a delmitação da percentagem de perdão da dívida que será realizar para possibilitar a sua aquisição por parte do Estado Moçambicano

Espero ter podido ser útil à sua curiosidade, ainda que sublinhando o meu parco conhecimento sobre a matéria. Aproveito ainda para opinar, que a questão da HCB tem vindo a ser muito politizada nos media - em particular os moçambicanos,, mas com muito pouca relação com a realidade efectiva. Natural, fará parte da natural impaciência em assumir o controle accionista. E do discurso político. Portanto se há derivas neo-coloniais não será aqui que se encontram, em minha modesta opinião

Finalmente a futura barragem ao sul do Congo-K, prevista para entrar em acção em 2007 retirará grande parte da importância à HCB, dado o superavit esperado de produção electrica para a Africa Austral actual. Esse factor será decisivo para o bruaaa que por aí se vai ouvindo.

cumprimentos, até À próxima

comentar postal



Bloguistas







Tags

Todos os Assuntos