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"…cheguei a um acordo perfeito com o mundo: em troca do seu barulho dou-lhe o meu silêncio…" (R. Nassar)
Aqui referi Leite de Vasconcelos, a propósito do Ideias para Debate ter inaugurado com a apresentação do seu "Testamento Político".
Ainda o cheguei a conhecer, muito superficialmente, um mero encontro em 1996, proporcionado pelo Camilo de Sousa e pela Isabel Noronha, seus muito amigos. Confesso que na altura tinha uma ideia muito vaga sobre com quem me ia encontrar. Quando, no ano seguinte, regressei a Moçambique ele tinha morrido muito recentemente. E só depois fui entrevendo o facto de ele ser aqui uma referência, junto de um determinado meio.
Para quem dele não tenha ideia aqui fica uma pequena imagem, sem que tenha eu possibilidades e conhecimentos para mais profundo olhar (se algum leitor quiser contribuir/emendar será muito agradecido). Mais como memória reconhecida de uma esclarecida conversa. E homenagem a quem, sendo homem de ideologia forte (e outra) a mesclou com a lucidez corajosa de um dia escrever
...
No fundo, meu amigo, à sombra temos medo
e mais medo ainda de confessar ter medo
e ainda mais de confessar de quê.
Anunciar um povo era exaltante,
mas pertencer-lhe é muito mais difícil.
("A Espera")
Filho de quadro superior de empresa algodoeira foi nascer a Arcos de Valdevez (1944), cresceu até aos 11 anos em diferentes localidades em meio rural, indo depois para Lourenço Marques estudar num colégio marista. Estudou em Portugal nos anos 60. Entrou para o Rádio Clube Moçambique em 1969, de onde foi expulso em 1972, tendo então regressado a Lisboa depois de uma passagem por Londres. Diz, em entrevista a Michel Laban (Moçambique. Encontro com Escritores, Fundação Eng. António de Almeida, 1998), que em Londres tentou junto da Frelimo seguir para a guerrilha na Tanzânia, tendo sido enviado para Lisboa. Trabalhador inicial do jornal Expresso. E na Rádio Renascença criou o programa "Limite" onde passou a senha musical (Grândola Vila Morena, de José Afonso) sinalizadora do início das actividades do 25 de Abril de 1974.
Facocero
Bem tentaram
dar-lhe parentes nas Ardenas
e caçá-lo como javali
Não foi assimilado
Sempre preferiu
não ser caçado
Búfalo
Um manso boi em estado solidário
Temam-lhe a revolta
de estar ferido
ou ser abandonado
Então torna-se um homem
Juiz
Caracol de toga e de registo
o mais prudente
intérprete de Cristo
Atira só a derradeira pedra
Cristão
....
Piedade para o cristão Piedade para ele
que tem um só deus entre tantos demónios
e piedade também para esse deus exausto
que entrou num homem porque queria morrer...
A Pele
(em tempo de reestruturações económicas,
reconversões tecnológicas e outras actualizações)
Papel de embrulho
feito
software
Até entrever o fim em
Receita para uma infracção
Toma nas mãos uma manga
desses que verdes o Knopfli sente
na infância do palato
Tens cinquenta anos
dois rins em greve até à morte
e um que pertenceu a alguém que desconheces
e por morto não soube a quem doou
a faculdade de mijar ainda
...
Tomas uma verde manga como um rio
uma simples manga de Novembro
de ti para ti transplantada
nos dezembros da vida
(Resumos, Insumos e Dores Emergentes)
E deixo uma verdadeira declaração
Lição de Biologia
No reino animal
não há cores necessárias
mas animais do reino
utilizam cores convenientes.
É velho o mimetismo
sabido de animais sem raciocínio
que atacam uns e outros se defendem
nunca (curiosamente) por a cor ser aquela
ou outra diferente
mas porque se defende ou apetece
a carne submersa em qualquer cor.
Resulta disto o simples corolário
de ser conveniente a certos apetites
usar o mimetismo e abocanhar
em nome duma pele
a pelo e o resto de quem passa perto.
Jogos de luz de pronto se diriam
estes que na luz entretecem
cumplicidades de cores
não fossem os hábitos sombrios
destes predadores.
Tantos mais que se conhece
serem daltónicas as suas fomes
pois notícia não há de que algum
rejeite por almoço
um animal da sua mesma cor.
Diferencia-os o diâmetro das fauces
o grau do apetite é rigorosamente infindo.
E isto os mata
que não há digestões
para fazer o quilo de tais fomes.
Inevitavelmente, os sáurios empaturram
e, de comerem sempre,
ficam duma cor definitiva em todos os mortais.
(Irmão do Universo)
Nota: informações bio-bibliográficas obtidas em "Irmão do Universo", "Resumos, Insumos...", "As Mãos dos Pretos" (org. Nelson Saúte), "Pela Boca Morre o Peixe" (texto introdutório de Machado da Graça) e na entrevista a Leite de Vasconcelos inclusa em "Moçambique. Encontro com Escritores", de Michel Laban (referências bibliográficas acima).