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Obras de Leite de Vasconcelos

por jpt, em 19.01.05

Aqui referi Leite de Vasconcelos, a propósito do Ideias para Debate ter inaugurado com a apresentação do seu "Testamento Político".

Ainda o cheguei a conhecer, muito superficialmente, um mero encontro em 1996, proporcionado pelo Camilo de Sousa e pela Isabel Noronha, seus muito amigos. Confesso que na altura tinha uma ideia muito vaga sobre com quem me ia encontrar. Quando, no ano seguinte, regressei a Moçambique ele tinha morrido muito recentemente. E só depois fui entrevendo o facto de ele ser aqui uma referência, junto de um determinado meio.

Para quem dele não tenha ideia aqui fica uma pequena imagem, sem que tenha eu possibilidades e conhecimentos para mais profundo olhar (se algum leitor quiser contribuir/emendar será muito agradecido). Mais como memória reconhecida de uma esclarecida conversa. E homenagem a quem, sendo homem de ideologia forte (e outra) a mesclou com a lucidez corajosa de um dia escrever

...
No fundo, meu amigo, à sombra temos medo
e mais medo ainda de confessar ter medo
e ainda mais de confessar de quê.
Anunciar um povo era exaltante,
mas pertencer-lhe é muito mais difícil.


("A Espera")

 

 

 

 

Filho de quadro superior de empresa algodoeira foi nascer a Arcos de Valdevez (1944), cresceu até aos 11 anos em diferentes localidades em meio rural, indo depois para Lourenço Marques estudar num colégio marista. Estudou em Portugal nos anos 60. Entrou para o Rádio Clube Moçambique em 1969, de onde foi expulso em 1972, tendo então regressado a Lisboa depois de uma passagem por Londres. Diz, em entrevista a Michel Laban (Moçambique. Encontro com Escritores, Fundação Eng. António de Almeida, 1998), que em Londres tentou junto da Frelimo seguir para a guerrilha na Tanzânia, tendo sido enviado para Lisboa. Trabalhador inicial do jornal Expresso. E na Rádio Renascença criou o programa "Limite" onde passou a senha musical (Grândola Vila Morena, de José Afonso) sinalizadora do início das actividades do 25 de Abril de 1974.

 

Regressado a Moçambique em 1975 aí continuou carreira na rádio, também jornalista, foi delegado da AIM em Joanesburgo durante dois anos em meados dos anos 80, cronista político, dramaturgo e actor, professor, presidente do Conselho Deontológico da Organização de Jornalistas.

Publicou poesia em jornais, na revista Caliban (Lourenço Marques, 1971/2; reedição facsimilada Instituto Camões/Maputo, 1996). Está presente nas antologias "A Palavra é Lume Aceso" (organizada por Manuel Ferreira ???), "Caliban" (organizada por Manuel Ferreira), "Antologia da Nova Poesia Moçambicana" (org. Fátima Mendonça, Nelson Saúte, Maputo, AEMO, 1988), "Nunca Mais é Sábado. Antologia de Poesia Moçambicana" (org. Nelson Saúte, Lisboa, D. Quixote, 2004),



"As Mãos dos Pretos. Antologia do Conto Moçambicano" (org. Nelson Saúte, Lisboa, D. Quixote, 2000), "Gostar de Ler" (org. Bruno da Ponte, Maputo, Tempográfica, 1981).

Publicou em vida um livro de poesia, Irmão do Universo (Maputo, AEMO, 1994). Postumamente foram publicados Resumos, Insumos e Dores Emergentes (Maputo, AEMO, 1997; poesia), Pela Boca Morre o Peixe (Maputo, Associação dos Amigos de Leite de Vasconcelos, 1999; crónicas publicadas no Mediafax em 1995-96), As Mortes de Lucas Mateus (Coimbra, Cena Lusófona, 2000; dramaturgia) e A Nona Pata da Aranha (Maputo, Promédia, 2004; contos).
 
 




O seu conto "O Lento Gotejar da Luz" originou o filme O Gotejar da Luz de Fernando Vendrell, com argumento também de sua autoria.

Leite de Vasconcelos é apontado como um nome importante da lírica moçambicana, especialmente vincada em Irmão de Universo. Mas aqui deixo alguns poemas talvez outros, de uma poesia visão do mundo.









 

 

 

 

 

 

 

Facocero

Bem tentaram
dar-lhe parentes nas Ardenas
e caçá-lo como javali
Não foi assimilado
Sempre preferiu
não ser caçado





Búfalo

Um manso boi em estado solidário
Temam-lhe a revolta
de estar ferido
ou ser abandonado
Então torna-se um homem



Juiz

Caracol de toga e de registo
o mais prudente
intérprete de Cristo
Atira só a derradeira pedra



Cristão

....
Piedade para o cristão Piedade para ele
que tem um só deus entre tantos demónios
e piedade também para esse deus exausto
que entrou num homem porque queria morrer...


A Pele
(em tempo de reestruturações económicas,
reconversões tecnológicas e outras actualizações)


Papel de embrulho
feito
software



Até entrever o fim em


Receita para uma infracção
Toma nas mãos uma manga
desses que verdes o Knopfli sente
na infância do palato
Tens cinquenta anos
dois rins em greve até à morte
e um que pertenceu a alguém que desconheces
e por morto não soube a quem doou
a faculdade de mijar ainda
...

Tomas uma verde manga como um rio
uma simples manga de Novembro
de ti para ti transplantada
nos dezembros da vida


(Resumos, Insumos e Dores Emergentes)


E deixo uma verdadeira declaração


Lição de Biologia

No reino animal
não há cores necessárias
mas animais do reino
utilizam cores convenientes.
É velho o mimetismo
sabido de animais sem raciocínio
que atacam uns e outros se defendem
nunca (curiosamente) por a cor ser aquela
ou outra diferente
mas porque se defende ou apetece
a carne submersa em qualquer cor.
Resulta disto o simples corolário
de ser conveniente a certos apetites
usar o mimetismo e abocanhar
em nome duma pele
a pelo e o resto de quem passa perto.
Jogos de luz de pronto se diriam
estes que na luz entretecem
cumplicidades de cores
não fossem os hábitos sombrios
destes predadores.
Tantos mais que se conhece
serem daltónicas as suas fomes
pois notícia não há de que algum
rejeite por almoço
um animal da sua mesma cor.
Diferencia-os o diâmetro das fauces
o grau do apetite é rigorosamente infindo.
E isto os mata
que não há digestões
para fazer o quilo de tais fomes.
Inevitavelmente, os sáurios empaturram
e, de comerem sempre,
ficam duma cor definitiva em todos os mortais.

(Irmão do Universo)


Nota: informações bio-bibliográficas obtidas em "Irmão do Universo", "Resumos, Insumos...", "As Mãos dos Pretos" (org. Nelson Saúte), "Pela Boca Morre o Peixe" (texto introdutório de Machado da Graça) e na entrevista a Leite de Vasconcelos inclusa em "Moçambique. Encontro com Escritores", de Michel Laban (referências bibliográficas acima).




publicado às 07:28


3 comentários

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De jpt a 28.05.2008 às 15:15

Lembro-me muito bem dele!, antes de sair para Londres (com o Corte Real e o Manel Tomás, de quem era amiga) e depois da Independência, fomos vizinhos _ grande abraço por este 'post', JPT!!!, IO

Publicado por: IO às janeiro 20, 2005 12:50 AM
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De jpt a 28.05.2008 às 15:16

Post muito muito bom.

Publicado por: madalena às janeiro 20, 2005 04:06 PM
http://www.chora-que-logo-bebes.blogspot.com/
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De anónimo a 04.10.2018 às 23:47

O Miro como lhe chamávamos viveu alguns anos na Gorongosa, Bué-Maria onde morava com os pais dele que por sinal era colega do meu pai, pertenciam à Companhia Nacional Algodoeira e junto com o meu irmão estudavam na Beira. Vinham ambos para o mato só pelas férias escolares e eu mais nova que ele três anos tínhamos alguns passatempos em comum. gostávamos de ir para ao pé do Rio Pungué de escopo e martelo apanhar ´pequenos troncos de árvores petrificadas, assim como conchas  que colecionavamos e outras atividades. voltávamos para casa já bem tarde e depois do banho e do jantar, vínhamos para um caramanchão no jardim conversar à luz da Lua, não havia luz elétrica .
Depois do almoço era costume dele deitar-se a ler, lia tudo quanto podia, grandes volumes que os pais dele sempre compravam, como por exemplo: Nem só de pão vive o homem, Guerra e Paz etc. e eu e o meu irmão também. costumávamos fazer versos e poesias, que depois eram lidas e classificadas pelos nossos pais. Ele era bastante alto e grande para a pouca idade que tinha, entre nós três havia uma grande empatia como irmãos e nunca brigávamos. Gostava de comer bastante e exagerava digamos que um bom bocado enfim...Foram uns anos muito bons com a família dele bem como o irmão dele a cunhada e dois sobrinhos, que moravam em Sofala, assim como com a "Avózinha", era assim que eu tratava a avó materna dele que também  morava com eles. Tenho fotos deles todos juntamente com a minha família algumas eu só tenho onze anos. Tenho belas recordações daquela família e da nossa vivência naquele belo lugar, cheio de buganvílias e muitas flores. Mais tarde soube pormenores da vida deles que me encheram de tristeza, hoje apenas posso recordar.

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