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Cardoso Mirão, Kináni? Crónica de Guerra no Norte de Moçambique, 1917-1918, Lisboa, Livros Horizonte, 2001

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Esta é a narrativa da campanha da I Guerra Mundial em Moçambique, pela voz de Cardoso Mirão, aí 2º sargento das forças portuguesas. Esta é uma parte da história muito pouco conhecida, tanto no diz respeito à participação portuguesa na I Guerra, muito centrada no palco europeu, como na formulação da ocupação colonial, então ainda muito incipiente em vastas zonas de Moçambique e inexistente noutras.

O livro é apaixonante, a descrição de uma campanha desorientada, que em pouco mais se traduziu do que numa longa e terrível caminhada pelo norte do país, e neste caso com quase inexistência de combates.

Trata-se de uma caminhada louca, ecoa-se o sofrimento inadjectivável de uma tropa errante, descomandada, desinformada, gradualmente desnorteada e logo desmoralizada. Sofrendo a inexistência de logística e a inadequação dos equipamentos (algo que este auto-retrato explicita). E tudo isto potenciado pela constante agressão da Natureza, os predadores, uma terrível fome, uma permanente sede e, acima de tudo, as doenças.

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É comovente, ainda hoje, ler os lamentos do sargento sobre a situação das suas botas, faltando-lhe ainda meses de infindáveis caminhadas.

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 Como pano de fundo de toda essa situação, mas realmente apenas como pano de fundo, o opressivo temor do confronto com o corpo expedicionário alemão, uma pequena força de grande gabarito, comandada por um oficial verdadeiramente lendário, o o general Lettow-Vorbeck, a cuja se encontrava em constante movimento via Tanganyka, e que nunca veio a ser vencida.

Para quem conhece a zona (e eu tive o acaso nada fortuito de ler o livro durante uma estadia no Niassa, amplamente referenciado) pode tentar imaginar a dureza desta campanha.

É um grande livro sobre guerra, praticamente sem combates. Nele respira um antigo exército, de uma crueldade hierárquica extrema, que se julgaria apenas de Antigo Regime, no qual oficiais e soldados eram ainda de dois mundos, de duas ordens. E ainda os africanos, arregimentados como carregadores, escondidos num terceiro mundo.

Será interessante notar que tanto em Cabo Delgado como no Niassa há ainda a memória camponesa desta guerra dos "ma-germanes", difusamente datada numa época correspondente à real II Guerra Mundial. Efeitos da história local sobre a devastação provocada pela mobilização de milhares de carregadores, e sua extrema mortalidade, pelas forças em presença, alemãs, inglesas e portuguesas.

É pois um retrato espantoso. Da guerra e da sociedade que nela participava. Mas também uma visão especial de África. Não esta como a Ameaça, o Horror ( a la Conrad). Mas mais como o palco desse Horror, um horror interno.

Um livro único no memorialismo português. E, mais uma vez, uma pergunta, como não filmar uma história destas?

publicado às 00:01


6 comentários

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De jpt a 18.03.2008 às 19:53

Nota na margem: Conheces Ahmadou Kourouma? A África portuguesa lê este senhor?
Um abraço

Publicado por: DivaseContrabaixos às fevereiro 10, 2005 06:19 AM
http://www.divasecontrabaixos.blogspot.com/
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De jpt a 18.03.2008 às 19:54

Não sei minha cara. A África Portuguesa acabou tinha eu 10-11 anos. Sei que, fantasma, erra por ultramontanas direitas revivalistas e ignorantes esquerdas lusófonas. E ainda em lapsos linguísticos.
Mas, sendo ateu, sou pouco dado à comunhão com almas penadas. Não faço pois a mínima ideia de quais serão as leituras nesse além pagão.
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De jpt a 18.03.2008 às 19:55

Despertaste a minha curiosidade pelo livro.
Eu conheço as histórias que o meu avô contou ao meu pais sobre a guerra no sul de Angola entre 1914 e 1916. E lembro-me de ouvir sobre episódios sobre a "crueldade hierárquica".
Uma coisa que pouco se sabe é que nesse tempo, os alemães conseguiram estabelecer contacto territorial entre o Tanganika e o sudoeste africano (actual Namibia) através das Rodésias.
Para recuperar esses territórios, os ingleses tiveram de mandar vir soldados da India.

Publicado por: Marco às fevereiro 10, 2005 12:13 PM
http://povodebaha.blogspot.com/
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De jpt a 18.03.2008 às 19:56

Olá JPT. Já vi que a coisa é séria e vais parar, ou dar um break à coisa dos blogs. Quero dizer-te que ficamos todos a perder muito com a tua viagem.
Um beijinho para ti

Publicado por: Passada às fevereiro 10, 2005 01:04 PM
http://www.passada.blogspot.com/
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De jpt a 18.03.2008 às 19:56

Passe a pedantice, gostei de saber que gostaste do livro do meu tio-avô. Na família estamos convencidos que só nós é que o lemos. É bom saber que chegou tão longe e a tão bons olhos.
Um abraço

Publicado por: Miguel Silva às fevereiro 14, 2005 08:09 PM
http://www.vivaespanha.blogspot.com/
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De O último soldado da I G.M. | ma-schamba a 18.03.2008 às 22:48

[...] nos últimos cinco anos com vários veteranos) - este recordar da Guerra de 14 lembrou-me o livro Kináni (Quem Vive?), de Cardoso Mirão, um espantoso relato da I Guerra em [...]

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