"Em nome do passado, Portugal há muito se outorgou uma percepção mundialista da história e integrou esse dado na sua particular imagem de povo de vocação universalista. Não está errado, e, mesmo que estivesse, esta mitologia do nosso providencial universalismo cria uma exigência que sem ela reduziria a nossa cultura à mera irradiação empírica de povo não hegemónico numa Europa também já não hegemónica. Graças a essa mitologia, sentimo-nos menos desarmados nesta batalha visível e invisível de que as identidades e as culturas particulares - mesmo as de maior espessura no passado - são o verdadeiro objecto, o que está em causa. Mas este excesso de passado, vendo bem, não nos garante nada. Pode ser mesmo, no seu papel reconfortante, um paradoxal inimigo de nós mesmos..." (106)
"É detrás dessa muralha da China do que fomos, ou antes de um passado voluntária e nada inocentemente mitificado, que nos encerrámos para que um futuro onde nos não vemos como nos sonhámos se esqueça de nós e nos deixe à glosa interminável da nossa felicidade onírica.
Na ordem quotidiana, Portugal e os Portugueses adaptam-se às chamadas necessidades do real com um pragmatismo que espanta numa cultura tão lírica. Na ordem do imaginário, esse famoso lirismo ... não desmente esse pragmatismo. Mas os seus efeitos são inversos, porque o seu escopo não é o de transfigurar ou superar os obstáculos, mas de os evaporar. Vamos para o século XXI em carruagem-cama, indiferentes às tragédias do mundo e às nossas próprias. Os problemas caem-nos em casa já resolvidos. É o mundo que tem problemas, não nós. Os portugueses que não pensam assim não são bons portugueses. Nunca o foram....No tempo de Salazar imaginou-se que essa maneira nossa de não estar no presente e diferir simbolicamente o futuro era um vezo de uma ideologia assumidamente conservadora. Não era. Apenas uma expressão coerente dela. Vinte anos após o fim de tão longo reino, agora vivendo e vivendo-se como normalidade democrática num tempo europeu e no mais vasto de uma cultura planetária do estilo americano, Portugal e o tempo português não mudaram de configuração. (...)
A que se deve tão extraordinária capacidade de estar fora do tempo como presente ... ? Reflexo de velho povo e velha cultura, conscientes de que o seu embate sério com uma sociedade tão incontrolável como a que a cada segundo atravessa os ecrãs planetários nos destruiria? Ou íntima convicção de que, mesmo ganha, a nossa aposta num futuro incontornável nunca nos trará de volta aquela imagem que veneramos sob as várias metamorfoses de um quinto império? (...) Reciclámos os restos imperiais que é o melhor que temos e único sinal de mútuo reconhecimento. (...) Enquanto o tempo da realidade se nos impõe e nos arrasta sem contemplações, o nosso tempo simbólico converte-o - e não só na ficção - em fantasmagoria virtual. (...) entraremos no século XXI. E com ele, queiramo-lo ou não, na história real, a nossa, de pequeno povo e sonhos compensatórios, para que não nos demos conta disso. Será o fim do tempo português e o começo do tempo de Portugal, um país como os outros a contas nunca certas com o tempo. Quer dizer, com a rugosa essência da realidade." (107-109)
[Eduardo Lourenço, "Tempo português", em A Nau de Ícaro seguido de Imagem e Miragem da Lusofonia, Lisboa, Gradiva, 1999]