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"…cheguei a um acordo perfeito com o mundo: em troca do seu barulho dou-lhe o meu silêncio…" (R. Nassar)
Francisco Noa acaba de publicar um texto sobre o Fama Show [para os visitantes portugueses este é um programa similar ao Operação ??? (não me armo em pedante, ao escrever este texto não me lembro do nome do programa, uma "branca" como se diz, aquela escola de música apresentada por Catarina Furtado e capitaneada por Maria João)].
Para ele a vénia devida.
Fogo-fátuoFolheando, há dias, um dos meus cadernos de apontamentos do meu tempo de estudante deparei-me com uma frase, muito cara a uma das minhas inolvidáveis professoras e que guardei ciosamente: os génios são os criadores, os outros são os seguidores, simplesmente. Vinha isto, na altura, a propósito da distinção entre efemeridade e eternidade, palavras que tinham a sua correspondência respectiva nas expressões fogo-fátuo (o que não dura) e fogo grego (o que permanece).
A frase, absolutamente lapidar na sua clarividência, ficou-me a chocalhar no cérebro, quando, há dias, assistia a um programa televisivo chamado Fama Show que não só tem mobilizado crianças, jovens e graúdos como também parece querer dominar a agenda cultural do país, tal o alarido mediático que o envolve.
Como proposta de entretenimento, nada tenho a apontar ao programa onde é possível verificar talentos interessantes na arte de ... imitar. Até aí, tudo bem. Se tivermos em linha de conta que imitar é algo congénito à natureza humana, não virá mal nenhum ao mundo que uma estação televisiva se transforme numa promotora e num mostruário das habilidades miméticas de jovens simpáticos e determinados a ter o seu momento de glória. Hoje, mais do que nunca, é quase vital manter viva a chama da fogueira das vaidades.
Preocupantes, porém, começam ao ser os sinais de histeria colectiva que se instalou por estas bandas e que leva as pessoas a acreditar que se encontrou, com esse programa e com tudo que o rodeia, a varinha mágica quer para resolver os problemas da música moçambicana quer para relançá-la através de novos talentos que irão inaugurar uma nova era no nosso panorama cultural e musical.
Mais preocupante ainda, na esteira da estação que alucinadamente reduziu a sua programação à atordoante e caudalosa promoção dos imitadores (transmissão de ensaios, repetições, auto-promoções, abertura de noticiários, etc), é assistir às irresponsáveis posturas e escutar levianas declarações de figuras que deviam ser mais responsáveis (governantes, edis, políticos, empresários, colunáveis, etc), ou observar a cobertura dada por alguns órgãos de comunicação que funcionam, sem o saberem, como caixas de ressonância do programa e dos seus mentores, ou então, aguentar a infindável e entediante procissão dos que se vergam à excelência e oportunidade da iniciativa, enfim...
Pior, muito pior, são os rios de dinheiro investidos em aprendizes de imitadores de que daqui a um, ou dois anos, possivelmente nunca mais ouviremos falar, em detrimento da real promoção e apoio dos verdadeiros e heróicos criadores da música moçambicana.
Com todo esse dinheiro (dinheiros públicos, lembre-se), que generosamente, a nossa tão patriótica operadora, e não só, vai orgulhosamente libertando, pergunto-me:
Quantos músicos, de verdade, não sairiam da indigência e da pobreza quase absoluta em que muitos deles se encontram? Quantos não veriam a sua inexorável caminhada, para a morte, adiada, se não interrompida (que o digam a Zaida e o Carlos Lhongo, o Eugénio Mucavele, o Alexandre Langa, o David Mazembe, o Avelino Mondlane, o Joaquim Macuácua, o Baptista Panguana, e todos os outros que, fatalmente, se vão seguir)? Quantas escolas de música, pelo país, não se abririam para dar oportunidade aos potenciais talentos da música moçambicana? Quanta dignidade e qualidade não ganharia a nossa música com apoios, equipamentos e tecnologia adequados que, certamente, metade desse dinheiro compraria? Quantas bolsas não se garantiriam para frequência de cursos sérios de música para muitos dos nossos jovens, incluindo aqueles que participam dessa tão frenética e alucinada experiência? Quantos especialistas sérios e competentes de música não seriam contratados para iniciar e aperfeiçoar jovens músicos moçambicanos?
Ergam-se, pois, as vozes acusando-me de estar a ser miserabilista, de estar a pôr em causa a iniciativa privada, de estar a ser um desmancha-prazeres, de estar a querer travar o espírito empreendedor!... Consigo sentir, aliás, o frémito e o rumor da indignação e do desagrado dos promotores e dos indefectíveis paladinos de um programa com desígnios tão nobres e tão sublimes.
Mas isso não abala nem a minha consciência nem a minha convicção de que seguindo por este inominável caminho, como está aqui a acontecer, com o beneplácito e compadrio de muita boa gente a quem é pedido, minimamente, bom senso, discernimento e sentido de responsabilidade, quando não mesmo, em alguns casos, sentido de Estado, mais não faremos senão decalcar, despudorada e alarvemente o que constituiu inteligência e esforço daqueles que são simplesmente os criadores. Aliás, é sabido que muitos programas de entretenimento, levados a cabo sobretudo pela televisão, concorrem mais para o empobrecimento intelectual, cultural e moral das massas do que para a sua edificação. A natureza, a finalidade e os interesses que os subjazem assim o determinam.
A este propósito, espíritos notoriamente lúcidos como o austríaco Karl Popper (“Contra a Televisão”, 1993), o canadiano Marshall McLuhan (Understanding Media, 1951) ou o italiano Gianni Vattimo (A Sociedade Transparente, 1993) há anos que vêm alertando quer sobre o poder incomensurável da comunicação televisiva quer sobre os efeitos perversos e nefastos que ela pode exercer sobre as sociedades, no geral.
Um dos sinais mais preocupantes desta nossa sociedade, por exemplo, é verificar que cada vez mais as pessoas, aos mais variados níveis e âmbitos, têm dificuldade em destrinçar o essencial do acessório. Se é essa a lógica que queremos que se imponha, não nos espantemos com a imagem com a qual estaremos inevitavelmente associados: a da futilidade e da inépcia. Sem remissão nem perdão.
Bom, e para que fique salvaguardado o porreirismo nacional que ninguém fique melindrado com tudo o que aqui foi expendido. Vejam apenas nisto a delirante e despeitada destilação de alguém que é tão incompetente na arte de criar, quanto na arte de imitar. Além do mais, the show must go on...