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"…cheguei a um acordo perfeito com o mundo: em troca do seu barulho dou-lhe o meu silêncio…" (R. Nassar)
Há dez anos (já?) cheguei a Moçambique e fui andando para o norte, boleias, chapas e mochila às costas. Fiquei-me em Montepuez. Uma malako no restaurante do João, tempos em que não havia electricidade daí que cervejas várias e quentes para ganhar embalo, uma noite no Geptex onde, vá lá, havia água no balde. No dia seguinte visita à administração, “para saudar” e informar ao que vinha, e logo avançar à procura de aldeia onde viver. De preferência junto a estrada com carros, pois então ainda temia que a malária se pegasse fulminante. Mas antes, porque era obrigatório, visitei a célebre missão, padres holandeses há décadas no distrito. Fui bem recebido, mas por aquele que era já o último, os outros três, velhos, tinham morrido recentemente. Todos de cancro, “se calhar contagioso”, ironizou o padre, alto, rijo nos seus cinquentas, bem-humorado. Lamentou não me ser muito útil, só tinha chegado há dois anos, depois de décadas de Zâmbia (ou Malawi, já não estou certo e o diário está em Lisboa). Os mortos, esses sim, tinham muitos anos daqui, este nem falava bem macua. Foi buscar as cervejas, até quase frias do gerador, e discorreu sobre macuas e macondes, sobre o fim da guerra (recente então). Tudo ali na varanda, mosquiteiros remendados, casa pobre como sempre o são as missões. E por todo o lado bolas de futebol a remendar e equipamentos puídos. Surpreso indaguei o que era tudo aquilo, riu-se bem lá do fundo, e explicou-me o seu trabalho. A evangelização fazia-a pelo futebol, tinha organizado equipas de jovens em cada aldeia, transportava-as no velho 4X4 da missão e o campeonato lá se realizava: “a minha missão terminará quando Montepuez tiver uma equipa na I divisão nacional”, sorria, quase sonhador. Tal como eu, a ouvir-lhe o rumo, da passagem da ideia de entreajuda, da competição saudável, rasgando ainda um bocado de horizontes a todos aqueles miúdos encerrados em vidas de machamba. Já agora, mas já agora, ligava-os à missão, à sua fé católica, num “a Bíblia vem depois”. Surpreendi-me, ali original e mesmo algo heterodoxo. Até pelo tom. Disse-lho e aí sim começou a falar, naquele tom irónico da desilusão que vamos aprendendo com a vida. Invectivando os erros da igreja católica em África, resmungando com um Vaticano tão cheio de certezas mas sem nada perceber das realidades, assim incapaz de perseguir os objectivos propalados. Ainda hoje o ouço, certeiro, eu cujo Vaticano é outro mas tão semelhante nas certezas enfatuadas. E lá seguia ele, criticando o Papa e sua hierarquia, enquistados de rigidez. Sem sentirem os contextos locais e como neles trabalhar, ainda que com todos estes séculos de experiência de evangelização. Sem olharem com olhos de ver as possíveis misturas, numa fé católica ela própria feita de sincretismos outros e aqui apenas a exigirem serem actualizados. Incapazes de actuar na pobreza radical tão ricos se tornaram. E exemplificava com a atitude face à poligamia, que tanta gente afasta da igreja, e já me falava da Sida, num país então pouco alerta, que os refugiados estavam a chegar, carregando-a claro está. Fiquei atónito. Ateu, ali recém-chegado e a escutar um discurso daqueles. Quase à saída confessei-lhe um “nunca pensei encontrar aqui um discurso destes”. Riu-se, olhos brilhantes, rematando como se tudo justificasse “I’m a dutch!”.
Nunca mais o vi, nesses meses seguintes procurei-o algumas vezes quando regressava a Montepuez mas sempre o desencontrei.Todos estes anos passados fui até lá. Perguntei por ele, revisita que se me impunha. Alguém, até atrapalhado, disse-mo já partido, que tinha saído à pressa há coisa de dois anos. “À pressa?”, lamentei, logo lembrado do tal cancro (se calhar contagioso), “estava doente?”. Mas não, teve que partir, e diziam-no constrangidos, pois havia muitas queixas de pedofilia. “O Qué?”, recusei, sem poder acreditar, que agora todos o são, não pode ser mais que uma moda. Mas não, infelizmente não eram boatos, queixas muitas, a sua própria hierarquia o mandou embora. Fico-me na minha desilusão. As belas ideias, a bela palavra. E, afinal, homem como os outros. Como nós.