Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]
"…cheguei a um acordo perfeito com o mundo: em troca do seu barulho dou-lhe o meu silêncio…" (R. Nassar)
Isabella Oliveira, M. & U. Companhia Ilimitada, Porto, Edições Afrontamento, 2002
Despretenciosa escrita, e nisso ecoando o registo júnior que narra, ao serviço de uma história (“e nunca História”, sublinha a autora) sobre a independência de Moçambique, tudo decorrendo entre o 25 de Abril de 1974 e o dia de Natal de 1976, data da partida da autora e sua família para Portugal. Sublinha-lhe o interesse, e a obrigatoriedade, ser documento inusitado, a voz (e os olhos) de uma jovem aderente ao processo nacional e da sua, e a dos seus, rápida desilusão. Um entretanto de dois anos e meio que nos é transmitido por via de um microcosmos liceal, da burguesia de Lourenço Marques (o então liceu Salazar, depois Josina Machel), e das diferentes vivências dos seus alunos, ancorados obviamente nas formas familiares de reacção aos eventos. Nisso recebemos nós alguma etnografia da cidade de então, emocional e de costumes, bem como dos momentos mais marcantes da independência, estes comovidamente descritos. E também, ou principalmente, um quadro mental de um grupo sociológico que aqui perdurou, com suas evoluções e matizes.
A autora, criada em família portuguesa da oposição (“Democratas de Moçambique”?), aqui nascida e desconhecendo Portugal, deste rapidamente distante (“Embaixada [de Portugal], hem? Quem havia de dizer! – não consegui deixar de atirar, lembrando-me do tempo em que era tudo deles.” (75), só mais tarde concluirá o seu estatuto in-between: “Éramos uns estranhos primatas (tipo nem carne / nem peixe), concluo [meu sublinhado, frisando o a posteriori conclusivo] … racistas para os “pretos”, porque assim nos adivinham ainda mais estranhos privilégios, e racistas para os … da Metrópole” (40). Vibra com a revolução, mergulha na acção política como tantos outros jovens liceais (mas, para seu espanto posterior, afinal apenas uma minoria, uma dicotomia vista em termos muito maniqueístas, diga-se), adere à Frelimo recém-chegada à urbe colona, participa activamente nas actividades cívicas logo organizadas, e com particular relevo na alfabetização de adultos, assiste às bizantinas discussões teóricas entre os neo-revolucionários, impregna-se dos mitos nacionalistas de então (o bipolar dos cinco séculos de colonialismo, essa mescla falsificadora engrandecedora / culpabilizadora; o da ngunização de um Ngungunyane imperador traído [recobrindo o Viriato do Estado Novo?]), iconografa os líderes revolucionários de então, rende-se ao (esmagador) carisma de Samora Machel: é o seu “capítulo de formação” entre os dezasseis e os dezoito anos. É essa a parte mais interessante do texto, o eco da adesão sem limites de uma fracção da sociedade colona, em particular de alguma da sua juventude, ao novo poder e ao novo país. Do seu mergulho participativo, e até de algumas estratégias, práticas e simbólicas, de ruptura com as famílias em partida para a então (ex-)Metrópole: “O novo ano [1976] traz à cegonha uma tarefa inédita: depositar nos portos do Índico uma leva de bebés, cujas mães [ainda menores?] tinham engravidado, no início da última estação fria e seca, para não serem obrigadas pelos pais (avós dos concebidos) a deixar Moçambique antes da Independência. Fui tia solidária de dois destes continuadores e um deles, lembro-me, até recebeu como segundo nome “Chivambo”, em homenagem ao fundador da FRELIMO.” (90),
A utopia (“M(emória).& U(topia)., o título) da autora chocará rapidamente, mas não em vários outros do seu grupo etno-linguístico, com as particularidades da nova sociedade. Mas não tanto nas dificuldades do rápido acesso ao “homem-novo”, ideia que lhe (a)parece ainda (d’)hoje: “O bicho-homem demora a mudar, é escusado” (90). No seu caso a impossibilidade de continuar não brota das características essenciais do processo ou de seus líderes, é certo que afloradas mas como se que malgré eux. A partida germina no moralismo algo autocrático de então, provocado por um episódio perfeitamente pueril (uma brincadeira com um preservativo), ainda para mais numa época em que revolução era (para os ocidentais, apesar do propalado libertinismo laurentino) também uma revolução de costumes - uma tão menor coisa que sublinha o absurdo, insecuritário, por tantos então sentido. E assim “Tinha-se acabado a alegria” (101). Da esperança?
Ficam pois estas memórias como documento. Escasseiam as brotadas entre descendentes de colonos (os então portugueses de segunda, de gerações anteriores aqui). E estas incrustadas entre os pólos da total adesão (e participação) ou de total recusa face ao novo país, como o exemplificam as recentes publicações de “Voo Rasante”, de Jacinto Veloso, e de “Winds of Havoc”, de Serras Pires, respectivamente. Este “M.&U.” não tão rico factualmente, como é óbvio (não lhe é objectivo, nem tal seria possível), mas transmitindo uma bem maior complexidade emocional. E, sem rebuço, transmitindo também, apesar da sua brevidade e carácter fragmentário, uma maior complexidade sociológica do que as obras referidas. Talvez porque não partizan nem denunciatório / justificativo. Coisa escrita “apenas [com] uma condição, não trair as emoções que guardei do período a que a sua acção se refere, independentemente do juízo que possa, hoje, delas fazer” (126).
Elogio? Sim, livro muito a ler. Mas sem esquecer o desacordo que me foi provocando (e talvez daí este texto). Pois esta memória da utopia, ainda que explicitando o desencanto origem do divórcio acontecido, carrega emoções de então que lhe são também de hoje, contrariamente ao que reclama, construções muito discutíveis. As de uma superioridade ontológica desta terra e dos que nela germinam. Seja a do seu povo, “originário” como agora se diz, sofrido e explorado, implicitamente superior a esse do longínquo Portugal de apenas “alguns porreiros … mas [de] … considerável número de parolos … por quilómetro quadrado” (125). Seja a dos “outros” aqui nascidos face aos “…“parolos da Metrópole”, como chamávamos quer à corja que por lá aparecia para (se) governar (cheia de hábitos fechados e de uma moral hiperconservadora face aos nossos gestos extrovertidos e liberais) quer aos coitados dos explorados das berças metropolitanas … infelizes, descarregando … nas populações locais … todo o seu ódio” (40). Seja a dos todos daqui sobre os outros estrangeiros (não-lusos) “cooperantes, do tipo tudo na carteira/nada no terreno, um gado que se multiplicou por muitas e diferentes bandeiras e que, aos meus olhos, constitui ainda hoje um dos cancros do país” (93). Em tudo isto algo de verdade (até actual), mas nisso se cristalizando a implícita não verdade de uma superioridade moral (e sentimental) de quem daqui sobre os de alhures.
É Moçambique encantatório? É-o para a autora, memórias de nostalgia. E nisso com ela comungo, até com angústia antevendo as minhas. Mas este encanto tem como húmus uma gente tão má como as outras. Ou seja, apenas como as outras. Um emotivo “apenas”, mas só isso. Tudo isso.
(Encontra-se na Livraria Sopress, Av. 24 de Julho)