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[Vasco Pulido Valente, A República Velha (1910-1917) , Gradiva, 1997]

Porque o centenário da República já se festeja, e também porque as enormes Histórias de Portugal actuais (a de José Mattoso e a de João Medina) estão na longínqua Lisboa, fui reler o "República Velha", a ver se me situo na efeméride. Mas nem tanto. Ainda assim entre algumas coisas retiro duas ideias, sendo a primeira a referência à lenda de Nossa Senhora de Fátima, a qual aqui transcrevo para alegria dos mais crentes, principalmente para os que já se afadigam na expectativa da próximas visita de Sua Santidade a Portugal, decerto que inscrita - de forma muito particular - nas comemorações do centenário da instauração da República. É uma longa citação mas vale a pena:

"Perante a óbvia fraqueza do Partido Democrático e, ao mesmo tempo, a sua intolerável violência a Igreja tomava, sem vacilar, a cabeça da oposição política. Os republicanos moderados estavam desfeitos e, aparentemente resignados. O movimento monárquico oficial tinha recebido ordem de Londres para se abster enquanto a guerra durasse. A Igreja católica ocupou o vazio.

Cem anos antes, em 1822, a causa realista fora reanimada por um milagre. A Virgem aparecera a duas pastorinhas em Carnide, para lhes dizer que Portugal sobreviveria à impiedade maçónica. Sob o patrocínio de D. Carlota Joaquina, grandes peregrinações se fizeram aos locais sagrados, em que Deus garantira a dízima, os bens dos conventos e a perenidade das classes dominantes. Povo e nobreza associaram-se nessa devoção, destinada a exorcizar a "pestilenta cáfila dos pedreiros" e a promover o ódio às Cortes, onde eles "campeavam". Quanto a insurreição armada começou uns meses depois, trazia já consigo uma sobrenatural legitimidade.

Em 1915 e 1916 os pastorinhos Lúcia ... Jacinta e Francisco ..., viram oito vezes, em vários sítios da freguesia de Fátima, um anjo, que declarou ser o anjo de Portugal. Ao princípio, o anjo não era muito nítido e não dizia nada. Pouco a pouco, porém, foi-se definindo e explicando. De acordo com a ortodoxia, estas visitas preparavam os acontecimentos de mais consequências que se seguiram. (...) Entre Maio e Outubro de 1917 a Virgem apareceu quatro vezes (...) Alegadamente, a Virgem comunicou que a Segunda Guerra Mundial seria "horrível", uma ideia muito compreensível quando a primeira mostrava diariamente o seu horror, e preveniu também que a Rússia revolucionária se preparava para subverter o mundo, coisa que os jornais de Lisboa publicavam na primeira página, dia sim, dia não, desde Fevereiro. As profecias (...) resumiam as preocupações e a angústia do conservadorismo português da época. (...) reflectiam perfeitamente as opiniões e os sentimentos do padre médio, esmagado pelo triunfo terreno do mal, tremendo com a perspectiva de novas catástrofes e sonhando com a eventual conversão dos pecadores. Que Deus partilhasse as aflições dos inimigos da República era uma coisa insusceptível de espantar o clero português de 1917." (pp. 115-117)

E há uma segunda característica deste livro que fala comigo. Isto décadas depois de ter aprendido isso da "objectividade" e "subjectividade" no discurso das ciências sociais, suas fronteiras e namoros. É que o tom de Vasco Pulido Valente é - constantemente, e à excepção deste curto "... gente séria, católica e ordeira que o radicalismo de Afonso Costa horrorizava." (p. 25) decerto inconsciente avatar de um certo "bom povo português" - de um enorme desprezo pelos agentes da história. Populares ou graúdos, políticos e anónimos, monárquicos ou republicanos de qualquer tendência, turba ou cáfila, é tudo gente "patética", "miserável", incompetente. São páginas e páginas de uma enorme superioridade do narrador, de uma enorme moralização (des-valorização) sobre o que (quem) fala. Ora aprendemos nós a desconfiar dos "engajados", dos "exotizados" (então tontos antropólogos apaixonados pelos seus nativos - dantes - ou pelas suas minorias exploradas/discriminadas - hoje - é um festival constante) para cair na esparrela inversa? Ou seja, na mesma? 

jpt

publicado às 07:15


10 comentários

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De jpt a 10.02.2010 às 02:06

FA eu não considerei ninguém "dono da história" de Portugal: citei um livro (que acabei de reler) e referi duas extensas obras colectivas (que gostaria de ler - no respeitante à época da I República - mas que não possuo em Maputo). Para mais referi algum des-gosto com o tom de VPV, o que implicita uma leitura (releitura) que não atribui título de propriedade (quanto muito dá carta de corso, nada mais).

Sobre o resto: acho que temos um entendimento diferente. Uma coisa é respeito outra é anuência. O facto de ser ateu não implica que algo me mova contra quem tem fé (nem contra a fé, em abstracto). Mas isso não me impede de discordar de dimensões particulares (institucionais ou individuais) do exercício da fé. Aceito o direito de crer, praticar e até acreditar que a entidade Nossa Senhora tenha aparecido em Fátima a três crianças pastoras e lhes tenha transmitido algo. E de aí se ter erigido um local de culto. Mas isso não implica abster-me de descrer, seja na entidade seja, muito em particular, em toda a parafernália cultual que ali se organizou.

Cito (e como tal, da forma como o fiz, sublinho) as palavras de um autor. Que não são insultuosas, nem para os envolvidos directamente nem para os que lhes prestam culto e admiração. São uma reflexão sobre a História - a qual, como bem diz, não tem donos. Assim sendo a História das Religiões (e dos actos religiosos) também não tem. Nessa acepção (que partilhamos) é totalmente legítimo abordar a questão como VPV o fez. E, subsidiariamente, citá-lo em registo de anuência.

Diz-me ainda que um praticante das ciências socias só deve opinar sobre o que investiga. Discordo radicalmente: por um lado isso obrigar-me-ia ao silÊncio radical sobre quase tudo (posso falar de cinema? poesia? evoluções climáticas? etologia? ecologia? os perigos ou virtudes da energia nuclear? e por aí adiante numa infinidade de temas). Só posso opinar, e aí concordarei, sobre algo sobre o qual tenha alguma informação, sempre limitada, sempre secundária. Mais, o corolário da sua consideração, conduz à inibição do opinar a todos aqueles que não investigam (e assentes num saber científico). Aqui é a discordància radical - a democracia que refere é, para mim, exactamente o confronto de opiniões incompletas, nada mais.

Agradeço-lhe a referència a uma sensibilidade que eu terei. Mas não está escondida (bem, pelo menos parte dela): é exactamente com ela que opino. Imperfeitamente. Ou, como em tempos se dizia, opino sensitivamente, com deficit de luzes, de razão. É a minha condição. E a de todos os outros.

cumprimentos

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