De ABM a 20.02.2010 às 03:16
Falando como membro acreditado e com quotas em dia da Associação dos Donos dos Álbuns do Santos Rufino, gostava de tecer alguns comentários que penso poderão ser do interesse do JPT, da Ana Cristina (AC) e de mais alguns exmos leitores eventualmente mais ou menos aficionados à Iconografia Moçambicana.
Li atentamente todas e cada linha (incluindo as 46 notas de rodapé) das interessantíssimas considerações de AC sobre os dez álbuns de Santos Rufino, publicados em 1929, e em que AC essencialmente diz o que é que acha que aquilo tudo quer dizer, sustentando-se em conhecidas obras de cariz sociológico-etnográfico-político sobre o sempre incontornável tópico colonial. Tirando os longos (looongos) parágrafos e uma única gralha, é quase sublime, especialmente para quem como eu conhece esta obra de trás para a frente.
Conhecendo bem como conheço os Álbuns SR, e sendo alguém que está situado no mundo de hoje e daquela altura, a maior parte do que AC refere é, até certo ponto, a verdade de La Palisse, se bem que neste caso a diferença na argumentação é como diferenciar uma gravação analógica de uma digital: está bem escrito e tecnicamente está muito mais apurado e fiel ao que se pode esperar de uma análise iconográfica e sociológica de qualquer trabalho deste tipo (em 1928), elaborada em 2009.
Mas tem algumas pequenas falhas e omissões. E vou-lhe dizer quais são.
A primeira falha é numa certa falta de contextualização do que é que aquilo foi (os álbuns, isto é), como é que surgem, e para que serviram. Não é que eu saiba muito mais, mas parece que (só) um bocadinho mais, que a AC. Que tentarei partilhar aqui.
Ao que sei, Santos Rufino não era nem um ideólogo da colonização nem se lhe conhecem posicionamentos políticos. Era um português, branco, que ali rumou em busca de oportunidades. Naquela altura tinha um negócio de papelaria e de fotografia e (acredito que) fez os livros para ganhar dinheiro. Mais nada. Portanto não lhe atribuo desígnio algum senão o de tentar vender nada mais que o que lhe trouxesse algum dinheiro.
Assim, a mundividência que AC identifica, e com a maior parte da qual concordo, quando muito, reflecte o padrão publicamente aceitável no fim dos anos 20 do século passado, com o ocasional tique dos tais três senhores que AC menciona.
Tanto quanto sei os álbuns não foram um êxito comercial. Quando comprei o meu primeiro álbum, o Nº2, sobre a cidade de Lourenço Marques, tinha 11 anos (portanto 1971)e comprei-o por tuta e meia (12$50, na altura dizia-se "doze e quinhentos) numa loja de quinquilharias dum senhor muito curioso que ficava a 50 metros da estação dos caminhos de ferro na baixa de LM. Na altura ele tinha num canto da loja montanhas dos álbuns contra a parede e era um ver se te avias. Ora isto foi quarenta anos depois da sua publicação.
O que não foi grande problema. Por volta dos anos 40 e 50 Santos Rufino era um dos homens mais ricos da cidade. A fonte da sua riqueza aparentemente residia no facto que ele era o "Mr. Lotaria", ou seja, ele tinha o monopólio das apostas mútuas em Moçambique. Ironicamente, a razão por que ele é mais conhecido hoje - os álbuns - na verdade parecem ter sido pouco mais que um fait-divers da sua vida.
Santos Rufino teve um filho e uma filha. O filho mais velho era mulato (estas peculiaridades têm que ser mencionadas pois no contexto da altura eram referenciáveis e portanto continuando) ou seja, de uma relação com uma sra. negra, mas ele depois teve uma filha branca (de uma senhora branca). A ambos assegurou uma boa educação se bem que o filho, que tinha a formação de professor primário, nunca exerceu essa função, tendo sido sempre o seu braço direito nos negócios. A filha, Helena, estudou no Boksburg Convent School for Girls, perto de Joanesburgo, e mais tarde casou-se com o celebrérrimo Dr. Reis Costa. Creio que ela ainda é viva e reside em Cascais.
AC não menciona que, praticamente desde que abriu a linha dos caminhos de ferro de Lourenço Marques para Pretória (bem, foi mais ao contrário mas enfim) em Julho de 1895, LM passou também a ser uma importantíssima rota do circuito de negócios e de lazer do hinterland sul-africano. As pessoas iam e vinham da África do Sul e de todos os pontos do mundo para LM, que se tornou quase uma Las Vegas para quem viveu no riquíssimo e extremamente rígido (moralmente, socialmente, racialmente, religiosamente, sexualmente) eixo de Pretória-Joanesburgo-Blomfontein. Para além dos negócios, do lazer, da praia, de uma cidade de sonho, virada para o mar e com aquela estranha mistura latino-tropical tão exótica para os boers e anglos, mas também tão pouco portuguesa (aspecto que rotineiramente é descontado, não entendo porquê) LM tinha muitos hotéis, desportos, boa comida, casinos (o Casino Belo e o Casino Costa ficavam na rua Araújo, mesmo à frente à estação dos caminhos de ferro e semanalmente o Blue Train vinha da África do Sul repleto de turistas cheios de dinheiro e que o gastavam na cidade) e prostíbulos, salas de dança, orquestra e até a então única casa de ópera na África sub-sahariana, o Varietá.
Assim, AC verá que a promoção da cidade de da região circundante como pólo de atracção turística foi desde muito cedo uma preocupação dos senhores que mandavam. Várias acções, de que destaco a edificação do Hotel Polana, a que me referi há dias, mas várias outras atracções da cidade, como o Jardim Vasco da Gama, serviam tanto para encantar quem vivia na cidade como para arrebatar quem a visitasse. A promoção de Lourenço Marques na África do Sul era um negócio sério e na cidade fazia-se um negócio muito bom a produzir postais fotográficos - e também álbuns fotográficos, que se tornou uma moda de então. Eu que não ligo muito ao assunto tenho em casa três que datam dessa altura, um publicado por J.M Lazarus, outro publicado por Spanos e Zsitsias, ambos sobre a cidade, e um terceiro, da Companhia de Moçambique, feito em 1933 para a primeira exposição colonial portuguesa, que ocorreu em 1934.
Os álbuns de Rufino destoam na medida em que excedem de longe tudo o que veio antes ou depois na dimensão e na abrangência dos tópicos.
Eram manifestamente comerciais (a publicidade era paga) e promoviam desavergonhadamente os feitos dos colonos, face à imensidão quase invisível (o céu azul contempla-nos e rodeia-nos mas não nos detemos a contemplá-lo, é mais nesse sentido que refiro) repleta de mato, da população negra que vivia na tradicional vida de susbsistência, com culturas "bárbaras" e que, como AC acho que correctamente labora, haveria um dia lá longe talvez eventualemnte, de vir a ser qualquer coisa como o protótipo ideal do branco civilizado.
O objectivo dos álbuns era promover a modernidade e a civilização importada, em que se presumo que o que já está lá está lá e estará até se puder mudar. E o agente da mudança era o colono - obviamente.
Aliás, surpreende-me que AC não tenha pesquisado os muitos textos publicados em que consistentemente os ingleses e os boers acusavam os portugueses de serem, na melhor das hipóteses, maus colonos, ou pior ainda, iguais aos seus "colonizados" - isto dito com a mais patente displicência e sem quasiquer rodeios. Acredito que a resposta dos portugueses era pô-los na ordem (aquilo não era a África do Sul) e mostrar-lhes a obra feita.
Claro que toda esta dialéctica é para mim quase caricata, e tem por vezes contornos pérfidos. Há hoje quem diga que os portugueses andaram 500 anos a explorar todos os moçambicanos (é a maior mentira), há quem diga que em 500 anos não fizeram nada em Moçambique (também não exageremos), há quem diga que se Moçambique tivesse sido colonizado pelos ingleses que hoje era uma África do Sul (em termos económicos), etc etc. Tudo treta. Aquilo foi uma era como outra qualquer, que começou e acabou, infelizmente um bocado tarde demais e teve que ser à porrada. A meu ver, se Portugal tivesse atempadamente saído de Moçambique não teriam havido os traumas da guerra e tudo o que se sucedeu e logo, a necessidade para estas considerações.
Mas há outra dialéctica a que já antes fiz referência e a que aqui volto a referir: na essência, o palco da confrontação colono-colonizado, branco-preto, civilizado-bárbaro, era a cidade. A cidade foi criada pelo colono e para o colono e servia o desígnio colonial. Era, para todos os efeitos práticos, a reserva do colono branco e funcionava em termos quase incompreensíveis para a maioria da população negra moçambicana, que ainda por cima não era convidada a participar no festim a não ser servir à mesa e cortar a relva do jardim. Da cidade irradiava o poder para o resto do território e a cidade era, imagino, um deslubramento total para quem vivia no mato. Isso foi mais imediatamente apercebido por não brancos familiarizados com a cidade e que viviam perto dela. E de longe foram esses os primeiros a aperceberem-se da enormidade da injustiça do sistema e da simples percepção de que havia um festim a decorrer na sua própria terra e que eles não eram convidados a participar nele, ou porque eram pretos, ou porque eram pobres, ou porque não estavam educados e capacitados para beneficiar desse desenvolvimento.
Em muitos aspectos, a luta pela independência assentou na dinâmica da inacessibilidade pelos "colonizados" à cidade e às suas oportunidades e privilégios, que acompanhou o início da maior experiência humana que África jamais teve: a urbanização das suas populações. Que na Europa ocorreu entre os séculos XVIII e XX.
E se havia em Moçambique uma cidade onde esse confronto era fulminante, era Lourenço Marques, uma cidade jovem mas com uma história fascinante, com uma arquitectura e componentes ímpares em qualquer parte do mundo e que se constituiu numa grande capital quando Moçambique se constituiu em estado independente.
Independentemente de tudo isso, é por demais óbvia a visão que havia destas coisas naqueles tempos e AC enumerou- as quase todas.
Achei muito (muito) interessante o longo e bem documentada análise da questão racial e de como funcionava a lei portuguesa na altura, e os costumes, mas acho que esse discurso é um pouco extemporâneo ao assunto dos álbuns em si. É esticar um pouco demais a corda para aquilo que eles contêm. Mas para quem não sabe pode ser interessante, ainda que um tano a resvalar para o politicamente correcto deste dias (como aquela de apontar "uma certa desconsideração sociológica da parte de quem as fotografou e editou", referente ao Vol. 10.) Pois a "desconsideração sociológica" dos fotografados era um problemazinho mundial naquela altura - não? em toda a parte, os colonialismos eram principalmente assentes nessa "desconsideração sociológica" sobre os colonizados.
Sei pouco mas Santos Rufino foi uma pessoa curiosa - mais uma da Lourenço Marques colonial.