De jpt a 20.02.2010 às 11:58
1. não vou defender o texto, está aí para ser lido por quem quiser. Mas pode-se debater sobre ele, e até interessante fazê-lo fora do consenso académico que marca o tipo de abordagens consideradas "correctas", assim delimitando (censurando) os olhares sobre os seus produtos. Espero que a autora, se alguma vez se googlar, venha a dar com este teu comentário, que porventura lhe será útil, em particular no que respeita ao ambiente histórico, e factos biográficos, de então.
Muito rapidamente (estou a caminho da piscina) dois pontos que não podem esgotar nem o longo texto de ACNS nem o teu também longo comentário:
a) algo que considero descabido, e que vou designar como "síndrome do Quadrado de Marracuene". O texto começa assim: "No trabalho que intitulou Estados, impérios e imaginação política, Frederick Cooper [um autor bastante conhecido, é minha nota jpt] recordou, com a ajuda de muitos exemplos recolhidos em estudos historiográficos e antropológicos recentes, que falar a linguagem do Império é sempre conjugar, no que às populações colonizadas diz respeito, a incorporação e a diferenciação. Incorporação porque os Impérios foram sempre percepcionados como espaços políticos e morais ao quais pertenciam as populações nativas dos territórios que os compunham e não somente como espaços de subordinação política e de exploração económica. " - penso que começar um artigo desta forma é explicitar que se está a trabalhar sobre um objecto enquandrando-o comparativamente, em processos que não lhe são únicos, um "olhar colonial" se quiseres, e que depois terá tido realidades locais particulares (neste caso, o português, em Moçambique, nas primeiras décadas de XX). Ora o teu ditirambo contra uma desvalorização do contexto português, invocando o que designas de "problemazinho mundial" - que não seria melhor do que o português - cai assim pela base. Que me pareça o texto vai exactamente no sentido contário do que dizes: havia um olhar e concomitantes representações algo similares no mundo colonial, que se repercutem no modo de "fotografar"/"representar". Mais, o que o texto inicial (que aqui cito) refere são as modalidades de integração e de exclusão conjugadas no mundo colonial, que utilizavam vários marcadores (construídos e seleccionados, sufragados, legislados, e em processos de mutação histórica). Também aí a tua adversidade à proposta me parece próprio de quem tomou a nuvem por Juno (ou melhor tomou Juno, as suas duas faces, pela nuvem, unifacial). Como digo acima, parece-me uma defesa do "Quadrado de Marracuene" quando o único adversário é o sol forte da Macaneta, bastando creme solar e alguma sombra de árvore para nos defendermos, não precisamos de teclados-canhangulos.
b) algo mais vasto, que é a tua irritação sobre Santos Rufino como "político". Ora isso prende-se com a noção de "política", "político". Não me parece que seja defendido ou entendível que Santos Rufino, seus fotógrafos, sejam "políticos" ou que os seus albuns fossem um trabalho político (com objectivos políticos, encomendado, propaganda, etc). O que é entendível é que as formas de olhar o mundo (de o representar, de o fotografar) são imbuídas de uma concepção política, de como entendemos a "Sociedade" (a "polis", se quiseres), como nela integramos e excluímos, o que consideramos relevante ou não. SR e seus fotógrafos tinham concepções sobre o que era relevante, sobre o que era significativo, atractivo, partilhavam de uma "visão do mundo", uma visão que era "cidadã", que era social. Nesse sentido é um objecto político o que eles produziram, nao no sentido instrumental (e até talvez maquiavélico) ou programático a que quantas vezes nos referimos a "política".
Isto prende-se com o que já aqui referi, o meu relativo desconforto (que não é crítico, eu compreendo os motivos individuais, as saudades, se assim se quiser chamar) diante de todos esses blogs e sítios de imagens coloniais. Todos expressam o mesmo mundo - alguns como tu (e eu, já agora) têm um interesse estético sobre a iconografia antiga - mas a maioria reproduz "um mundo", que é um "mundo político" (nem de outra forma poderia ser) mas do qual não reconhecem a "politicidade", afirmando-o, julgando-o "natural", uma naturalidade biográfica. Mas mais do que isso são os álbuns fotográficos ou iconográficos que são recentes (alguns estão pelo ma-schamba, outros estão nas minhas (e com toda certeza nas tuas) estantes) [João Loureiro, Curado Gama, as colectâneas do Carlos Vieira - organizadas pelo seu filho e meu amigo] que não têm essa dimensão biográfica, que querem mostrar um mundo, e que mostram à evidência uma forma de entender o social de então: a bela paisagem, frondosa e às vezes luxuriante (não muito pois o Sul - local da maioria das imagens - de Moçambique não é luxuriante), as belas praias, as belas cidades, a bela arquitectura colonial, as infraestruturas "europeias" e, às vezes, muito às vezes, o africano "típico" ou seja, aquele que reproduz o estereótipo [por alguma razão escolhi esta fotografia para ilustrar este post. E olha que "The Chief and I" é um must da auto-reflexão dos antropólogos, eu até meti um texto hermético há uns anos aqui chamado "exotic-dropping", estupefacto com a perenidade deste olhar auto-afirmador e exoticizador no meio intelectual português] Mas voltando à vaca fria - já reparaste que nenhum desses álbuns tem imagens dedicadas à arquitectura africana, que nenhum retrata os processos laborais agrícolas, etc, etc.
Enfim, alongo-me, há sempre (donde, havia) uma concepção política do que é a sociedade, que é mais ou menos partilhada. E que influencia as formas de a retratar. E as fotografias históricas são um local fantástico para a analisar. Para isso, repito, convém burilar o que entendemos como "político" [não, não é apenas o engenheiro Socrates e o jsd Passos Coelho nem aquela turba esquerdalha de verve rápida e mente vã]
Vou à tal piscina.
(há uma nota "outros olhares" acho eu no ma-schamba, sobre as fotos dos tipos da Magnum sobre Portugal - tenho o livro: é notório o encanto anos 40 e 50 sobre as mulheres da Nazaré. São os tais estereótipos ...]