De ABM a 11.06.2009 às 01:36
1. Luis Bernardo Honwana honra-nos com as suas memórias, cujo valor interpretativo do que sucedeu aquando e depois da independência de Moçambique na penosa dialéctica cultura-nação têm relevo para quem quiser entender o que foi feito e porquê.
2. Tem a vantagem de uma educação sofisticada, de uma experiência fecunda e de escrever num português linear e provocatoriamente rico. Tomara muitos em Portugal poderem pensar ou escrever como ele.
3. Definitivamente não subscreve facilmente os atavismos fáceis de um Paulo Fauvet, mas isso fica para o outro lado do blogue.
4. Mas lendo a sua magistral exposição, só posso balbuciar baixinho, enquanto leio, "Luis, estás errado, estás errado, estás tão errado". O que, curiosamente, não diminui em nada o intenso respeito e consideração que por ele -e a sua caneta - nutro.
5. Não é descurável deixar de lado o facto que o periodo que sucedeu à independência foi de uma inexorável ditadura marxista-leninista sem precedente em Moçambique e que as orientações - todas as orientações - emanadas pela Comissão Política da Frente de Libertação de Moçambique de então eram dogma indiscutível. O mesmo se aplica a todas as emanações e reflexões culturais subjacentes. Como em tudo o resto, subjugou-se a cultura à ideologia e ao fascínio masturbatório de meia dúzia de indivíduos que se achavam no direito de "criar" uma cultura, "criar" uma nação. Como uma experiência num tubo de ensaio. Até porque, Luis o refere, importava mais do que tudo não ser português, ser africano "genuíno", procurar beber o que o povo vivia - até certo ponto, pois desde logo se depreendeu o perigo eminente da fragmentação e tribalismo, que, está nos livros desde o Tratado de Versailles em 1919, quando o nacionalismo étnico-racial foi proclamado o grande e novo e poderoso dogma dos povos e se postutlou a extinção das nações multiculturais.
6. Nesse sentido, a estonteante riqueza histórica e cultural de Moçambique era estonteante, deve ter sido quase desconcertante, para o nacionalista moçambicano que se senta à mesa e lhe é pedido que apoie o forjar de uma Nação moderna. Mas tinha que ser. Tinha que ser, pois o custo era correr o risco da desfragmentação do projecto nacional. Portanto os moçambicanos iam ser moçambicanos à imagem de quem manda, quer quisessem quer não. O resultado deste tipo de visão foi uma guerra que fez a guerra colonial - ou de libertação - parecer um piquenique. Os moçambicanos não querem ser moçambicanos por encomenda. Nem precisam.
7. A resposta fácil, especialmente dada a ideologia e os instrumentos de repressão disponíveis, foi a. num render à evidência e ao pragmatismo, decretar a língua portuguesa como a língua oficial ou franca da nascente república b. decretar a nulidade da relativamente superficial penetração da cultura e costumes portugueses em sectores cruciais da nova nação - as cidades e escolas, por exemplo - decapitar sumariamente a burguesia colonial, em particular os "invasores" e procurar outras fontes de inspiração (ainda que eu não considere prestigiante o encosto à África do Sul ou rentável o namoro à Commonwealth, ambos os quais, sim, podem ajudar a esvaziar a especificidade cultural moçambicana). c. re-escrever a história dando a impressão que a única coisa que o colono português fez em cem anos - cem não, quinhentos - foi roubar a terra, violar a mulher, explorar o trabalhador, apagar as culturas locais e regionais, escravizar, roubar, denegrir. Se houve demasiado disso tudo, acredito, com a modéstia que se requer nestas análises, acho que o somatório das experiências coloniais excede este balanço. A história o confirmará. Afinal, em última instância o Estado português tinha quase exactamente o mesmo tipo de desafio de "nation-building" que teve a Frente de Libertação de Moçambique quando chegou o seu momento.
8. No fim, mais do que festivais e reflexões culturais e revisionismos, o que a meu ver acabou por ser a verdadeira "cola" que une a nação foram três criações do pós-independência, três elos que qualquer moçambicano hoje, mais ou menos conscientemente, partilha: a) o adoptar da língua portuguesa como a segunda língua que todos falam, b) o ódio e desconfiança em relação a tudo o que tenha que ver com Portugal, portugueses e a cultura portuguesa, nalguns casos indo ao extremo de pretender que o ano zero da moçambicanidade é 1975, o que é a meu ver uma das grandes hipérboles do Moçambique moderno, c) o sangue, a morte, a miséria, o terror à escala indiustrial, partilhado por quase todos os moçambicanos nos quase quinze anos de guerra civil resltantes da incapacidade do regime de tomar consciência de com quem se tinha metido (os boers do Sr. Vorster)
9. A cultura moçambicana entretanto fugiu do controlo estatal e Luis Bernardo Honwana, como eu e como o dono deste fenomenal blogue, podemos apenas assistir impotentes à sua evolução natural, como acontece em qualquer parte. Se as manifestações de "rap" e os moços de óculos escuros a abanar o rabo nas estações de televisão enquanto exibem carros que nem os senhores da terra possuem, habitados por estonteantes beldades, todos a cantar baladas que parecem importandas do Brasil ou de Angola, se nada disso parece ser a cultura que se pretende floresça num Moçambique soberano, bem, já é um bocado tarde demais para alterar isso. O regime já não é o que era. Daqui a dez anos a gerações libertadora morreu toda sem excepção e 94% dos moçambicanos já nasceu após 1975. Esse já não será o Moçambique deles. Nem do meu querido e respeitado Luis Bernardo Honwana. O "problema identitário" a meu ver já está resolvido. Só não vê quem não quer.
Enfim, foi só um pensamento que queria partilhar. Ciao.