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Acabo de ver na SIC o "debate" entre o padre Carreira das Neves, professor da Universidade Católica, e José Saramago, acolhido por Mário Crespo. Morno, desinteressante. O escritor algo defensivo e pouco convincente [talvez suspeitando que, como diz Eduardo Pitta (que agora leio) "Infelizmente, Saramago dá um passo maior que a perna."] . O padre explicitando o carácter histórico-cultural da Bíblia, a sua dimensão literária - visão com a qual é fácil concordar, mas se assim é então porquê tanta azáfama na contra-crítica? E, mesmo, porquê o inusitado debate "literário" (!?)? Se alguém disser que Marco Polo era uma aldrabão, Dante um mitómano, Virgílio um chato, Heródoto um falsário, haverá tanta irritação, tamanha ofensa? Mas não são estes textos compreensíveis no seu contexto histórico, literários, metafóricos, etc e tal? Tenho, temos, alguma obrigação moral ou política de dizer bem de Marco Polo? Algum impedimento social de o refutar ou, até mesmo, insultar?

Mas para além disso ao ouvir o bom padre (grosso modo: a Bíblia é simbólica, é literatura, são imagens, e nós estamos lá com as nossas notas de rodapé para guiarmos os leitores - ali no Mário Crespo a história do catolicismo debitada) logo me lembrei de Rilke

rilke-bom-deus

[Rainer Maria Rilke, Histórias do Bom Deus, Quasi, 2008, tradução de Sandra Filipe]

Está o narrador de Rilke contando uma história centrada no facto de que "Deus, devido a uma feia desobediência das Suas mãos, não sabe qual é o aspecto final do homem" (20) pelo que engendra forma de o conhecer. Logo as crianças ouvem essa narração e ...

"A história anterior espalhou-se de tal modo que o senhor professor passeia pela travessa com um ar profundamente ofendido. Compreendo-o. É sempre desagradável para um professor as crianças saberem de repente qualquer coisa que ele não lhes contou. O professor deve ser, por assim dizer, o único buraco no tapume através do qual se pode ver o pomar; há no entanto outros buracos, por isso as crianças todos os dias se empurram para a frente de outro, mas em geral ficam logo fartas do panorama. (...)

Ele [o professor] estava de pé, à minha frente, a puxar os óculos para cima, vezes sem conta, e dizia: "Não sei quem contou esta história às crianças, mas, seja como for, é injusto sobrecarregar-lhes e exacerbar-lhes a imaginação com invenções tão extravagantes como esta. É uma espécie de conto de fadas ..." (...) continuou muito apressado "Primeiro parece-me mal que se utilizem livre e arbitrariamente temas religiosos e sobretudo bíblicos. É que tudo isso foi descrito de tal forma na catequese que se torna impossível contá-lo melhor." (...) "E finalmente (...) afigura-se-me que o assunto não está suficientemente aprofundado e visto sob todos os aspectos." (...) "Sim, dou pela falta de muitas [coisas]. Do ponto de vista de crítica literária, maioritariamente." (22-24)

***

Um delícia. Não fosse a tristeza de ver a paróquia tão paroquial.

jpt

publicado às 02:34


10 comentários

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De Luís Rilhó a 24.10.2009 às 03:18

Opiniões. Saramago fundamentou-se no texto literário que á a Bíblia, somatório de escritos de cortesãos que, tendo conhecimento de acontecimentos passados, os profefizaram para o futuro.
Carreira das Neves limitou-se a dizer que a Bíblia não deve ser lida pelo que tem escrito, mas pelas interpretações desvirtuantes que a Igreja lhe deu ao longo de 2 mil anos. Coisas de padres!
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De Kantas de Galo a 24.10.2009 às 06:25

Oh Rilhó dedica-te à pesca que disto não percebes nada, nem ouvir sabes quanto mais interpretar.
Os homens entenderam-se e deus saiu por cima e tu fizeste figura de urso, tinha que ser, alguém tinha que ficar com a pior parte, foste tu o escolhido.
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De Kantas de Galo a 24.10.2009 às 06:26

paróquia tão paroquial. O que é isso oh Riku?
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De Luís Rilhó a 24.10.2009 às 10:53

Ficamos por aqui. Não aceito a sua falta de educação. Não tolero discutir o conceito de deus com um primitivo cultural. Mostre-se, seja educado e, então, cedo a debater consigo deidades durante várias horas. Oh tendencioso! Olhe que os deus foram só sessenta mil. Se quiser continuar a ser malcriado, não o acompanho.
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De Luís Rilhó a 24.10.2009 às 12:58

Naturalmente escrevo e não leio o texto feito. Para o Kantas de Galo, corrijo: "Olhe que os deuses foram só sessenta mil." Aproveito para informar o senhor Kantas que o que distingue os seres humanos é a cultura e a educação.
Quanto à primeira característica, provou não ter nenhuma. Quanto à segunda, aquela cabeça não tem um rudimento dela.
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[...] que não havia nada a dizer), uns vociferando contra o herege, outros lamentando-lhe a incapacidade de crítica literária, a falta de profundidade [...]
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De ABM a 28.10.2009 às 02:59

Gostava de poder contribuir mas isto começa a ser água demais para a minha carroça.

Mas houve algo que me despertou a curiosidade: a referência do Sr Eduardo Pita a Guerra Junqueiro como um "panfletário". Sim mas...quem não era na altura? Eça? Antero?

Conheci Junqueiro de duas coisas: era o nome dumas dessas tais ruas de Lourenço Marques a que mudaram o nome (ele foi eleito deputado para o parlamento português em 1880 pelo círculo de...Quelimane - não me perguntem porquê), e porque a minha 2ª sogra há uns tempos me ofereceu a 7ª edição de 1908 de "A Morte de D. João", primeiro publicada em 1874 e que, como muito do que então saiu da Geração de 70, fez parte de um berro colectivo contra o "mesmismo" de uma sociedade que consideravam decadente, moralmente degenerada que achavam que não evoluía.

Leia-se o que ele referiu sobre os portugueses e que é frequentemente citado, da obra "Pátria", 1896: “Um povo imbecilizado e resignado, humilde e macambúzio, fatalista e sonâmbulo, burro de carga, besta de nora, aguentando pauladas, sacos de vergonhas, feixes de misérias, sem uma rebelião, um mostrar de dentes, a energia dum coice, pois que nem já com as orelhas é capaz de sacudir as moscas; um povo em catalepsia ambulante, não se lembrando nem donde vem, nem onde está, nem para onde vai; um povo, enfim, que eu adoro, porque sofre e é bom, e guarda ainda na noite da sua inconsciência como que um lampejo misterioso da alma nacional, reflexo de astro em silêncio escuro de lagoa morta. […] Uma burguesia, cívica e politicamente corrupta até à medula, não descriminando já o bem do mal, sem palavras, sem vergonha, sem carácter, havendo homens que, honrados na vida íntima, descambam na vida pública em pantomineiros e sevandijas, capazes de toda a veniaga e toda a infâmia, da mentira a falsificação, da violência ao roubo, donde provem que na política portuguesa sucedam, entre a indiferença geral, escândalos monstruosos, absolutamente inverosímeis no Limoeiro […] Um poder legislativo, esfregão de cozinha do executivo; este criado de quarto do moderador; e este, finalmente, tornado absoluto pela abdicação unânime do País. […] A justiça ao arbítrio da Política, torcendo-lhe a vara ao ponto de fazer dela saca-rolhas; Dois partidos […] sem ideias, sem planos, sem convicções, incapazes, […] vivendo ambos do mesmo utilitarismo céptico e pervertido, análogos nas palavras, idênticos nos actos, iguais um ao outro como duas metades do mesmo zero, e não se malgando e fundindo, apesar disso, pela razão que alguém deu no parlamento, de não caberem todos duma vez na mesma sala de jantar…”.

Hum.

E como artistas, o seu contributo foi partir a loiça e quebrar tabús - entre tertúlias e jantaradas.

Recordo ainda o "Finis Terrae" que saiu logo após o Ultimato em 1890 em que ele arrasa desgraçadamente o rei, D. Carlos (que então se tornara monarca há escassos meses).

Mas reparei no prefácio e numa "nota" inserida por Junqueiro no fim de "A morte de Dom João", que ajudam a explicar esta obra - não mais incendiária que o agregado das grandes obras de Eça - em que Junqueiro dá testemunho de porquê ele escreveu o que escreveu.

E ali refere (um pouco datadamente, admita-se) a moral, a "degeneração" da sociedade portuguesa e aí enquadra a sua visão da religião e da Bíblia: "se quereis que um certo numero de palavras não firam os vossos olhos ou os vossos ouvidos, começae por trancar a Biblia, cortar os diccionarios e riscar da doutrina christã um peccado escandaloso: a luxuria."

Junqueiro e muitos desta geração ajudaram a moldar um republicanismo virulentamente revolucionário e anti-católico, prenúncio do que veio a acontecer após o derrube da Monarquia, não se coibindo até de procurar justificar moralmente o Regicídio.

Neste contexto, de certo modo, este recente virar da obra de Saramago (não li o que saiu agora, li o que o Sr. Pita disse sobre a mesma) parece alinhar-se adequadamente à já centária inconformidade moral de alguns intelectuais e o seu desafio às matrizes essenciais do pensar e estar portugueses (e espanhõis: eu acho que ele escreve para ambos) e a sua conhecida relação simbiótica com o Catolicismo. Em todo este período, exceptuando talvez a "longa noite" salazarista, em que em dissesse mal da Igreja estava positivamente lixado, o Catolicismo e os seus pressupostos foram sumária e por vezes selvaticamente abandalhados.

Para Saramago, para quem Deus não existe e a Igreja inibe e condiciona o "progresso" da sociedade portuguesa, escolher o episódio de Caim é procurar explorar - admito que de forma algo intelectualmente desonesta - a desperante complexidade da Bíblia e procurar, de forma literária, novos confrontos com aquilo que ele acha que é um Catolicismo omnipresente e asfixiante.

O laço ideológico aqui, e a que fiz referência anteriormente, é o pressuposto de que há um mitológico "homem novo português" - nobre, empreendedor, capaz de fazer grande obra - se apenas se conseguisse despir de (no fundo) tudo que o caracteriza e tudo o que o rodeia. E isso inclui, obviamente, a religião.

E que como é impossível, desagrada, deprime e revolta o intelectual.

Deve ser muito triste vir-se de, e pertencer-se a, uma sociedade que tão lapidarmente se rejeita. Saramago devia ter ido para Lanzarote há mais tempo ou, como Jorge de Sena ou José Rodrigues Miguéis, emigrar para a América. Alivia o sofrimento e estar cá dentro lá fora é sempre muito mais agradável. Eça escreveu " A Cidade e as Serras", fez as pazes e pirou-se para Paris.

Bem, Junqueiro fez o mesmo percurso mas na sua quinta no Douro. E lá, parece que encontrou Deus - o seu.

Sendo este o grande blogue Maschamba, eis uma peça adicional de trívia sobre Guerra Junqueiro e Moçambique. Ambos ele e Manuel Maria Sarmento Rodrigues, que foi governador geral de Moçambique entre 1961-64, nasceram em Freixo de Espada à Cinta; e a mulher de Sarmento Rodrigues era sobrinha de Guerra Junqueiro. Manuel Junqueiro, um outro familiar, foi para Moçambique em 1918 e foi machambeiro (sem "s") de chá na zona do Gurué e foi dado o nome dele a uma vilarejo qualquer por lá (o nome já deve ter ido para as urtigas). Ainda hoje se faz chá lá mas já ninguém se deve lembrar que inventou aquilo. Pelos vistos foi Junqueiro. O outro.
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De jpt a 28.10.2009 às 11:17

Tu és uma fonte inesgotável: o Guerra Junqueiro foi deputado por Quelimane?! E "deixou" descendência, por interpostas pessoas, nestas paragens?

Sobre Eduardo Pitta lê-lhe o livro "Persona", que é passado no período final do regime colonial em Moçambique. Na minha modesta opinião é fantástico. Ele é também um excelente bloguista (sofreu um pouco - melhor dizendo, bastante - da gripe dos Partidos (estirpe PS) mas agora debelada a pandemia deve ser de novo agradável ler
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De JOSMOR a 05.11.2009 às 01:17

Há muitos pretendentes para falarem sobre a Bíblia. Infelizmente, porém, não são biblistas e não conseguem dizer nada que tenha jeito.
O Pe. Carreira das Neves é o maior estudioso português da Bíblia. Mais palavras para quê?
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De Luís Rilhó a 05.11.2009 às 10:23

A Bíblia é uma soma de escritos de vários autores cortesãos e deve ser lida
como está. Os judeus não a comentam e, que eu saiba, as outras seitas do
cristianismo também não. O senhor e eu temos a capacidade de lê-la, sem
sermos desviados - a puxar a brasa à sua sardinha - pela opinião de
comentaristas. A afirmação de Neves, de que deve ser tomada por uma obra
poética, é de gozo. A poesia é uma criação literária muito posterior. É de
gozo ter ele vindo para a televisão dizer que a estudou durante quarenta
anos. Também fui obrigado a estudá-la durante cinco anos. Depois de muito
raciocinar e de mastigar as outras religiões, cheguei a uma posição em que
me sinto muito bem. Sou e vou morrer ateu.

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