De ABM a 28.10.2009 às 02:59
Gostava de poder contribuir mas isto começa a ser água demais para a minha carroça.
Mas houve algo que me despertou a curiosidade: a referência do Sr Eduardo Pita a Guerra Junqueiro como um "panfletário". Sim mas...quem não era na altura? Eça? Antero?
Conheci Junqueiro de duas coisas: era o nome dumas dessas tais ruas de Lourenço Marques a que mudaram o nome (ele foi eleito deputado para o parlamento português em 1880 pelo círculo de...Quelimane - não me perguntem porquê), e porque a minha 2ª sogra há uns tempos me ofereceu a 7ª edição de 1908 de "A Morte de D. João", primeiro publicada em 1874 e que, como muito do que então saiu da Geração de 70, fez parte de um berro colectivo contra o "mesmismo" de uma sociedade que consideravam decadente, moralmente degenerada que achavam que não evoluía.
Leia-se o que ele referiu sobre os portugueses e que é frequentemente citado, da obra "Pátria", 1896: “Um povo imbecilizado e resignado, humilde e macambúzio, fatalista e sonâmbulo, burro de carga, besta de nora, aguentando pauladas, sacos de vergonhas, feixes de misérias, sem uma rebelião, um mostrar de dentes, a energia dum coice, pois que nem já com as orelhas é capaz de sacudir as moscas; um povo em catalepsia ambulante, não se lembrando nem donde vem, nem onde está, nem para onde vai; um povo, enfim, que eu adoro, porque sofre e é bom, e guarda ainda na noite da sua inconsciência como que um lampejo misterioso da alma nacional, reflexo de astro em silêncio escuro de lagoa morta. […] Uma burguesia, cívica e politicamente corrupta até à medula, não descriminando já o bem do mal, sem palavras, sem vergonha, sem carácter, havendo homens que, honrados na vida íntima, descambam na vida pública em pantomineiros e sevandijas, capazes de toda a veniaga e toda a infâmia, da mentira a falsificação, da violência ao roubo, donde provem que na política portuguesa sucedam, entre a indiferença geral, escândalos monstruosos, absolutamente inverosímeis no Limoeiro […] Um poder legislativo, esfregão de cozinha do executivo; este criado de quarto do moderador; e este, finalmente, tornado absoluto pela abdicação unânime do País. […] A justiça ao arbítrio da Política, torcendo-lhe a vara ao ponto de fazer dela saca-rolhas; Dois partidos […] sem ideias, sem planos, sem convicções, incapazes, […] vivendo ambos do mesmo utilitarismo céptico e pervertido, análogos nas palavras, idênticos nos actos, iguais um ao outro como duas metades do mesmo zero, e não se malgando e fundindo, apesar disso, pela razão que alguém deu no parlamento, de não caberem todos duma vez na mesma sala de jantar…”.
Hum.
E como artistas, o seu contributo foi partir a loiça e quebrar tabús - entre tertúlias e jantaradas.
Recordo ainda o "Finis Terrae" que saiu logo após o Ultimato em 1890 em que ele arrasa desgraçadamente o rei, D. Carlos (que então se tornara monarca há escassos meses).
Mas reparei no prefácio e numa "nota" inserida por Junqueiro no fim de "A morte de Dom João", que ajudam a explicar esta obra - não mais incendiária que o agregado das grandes obras de Eça - em que Junqueiro dá testemunho de porquê ele escreveu o que escreveu.
E ali refere (um pouco datadamente, admita-se) a moral, a "degeneração" da sociedade portuguesa e aí enquadra a sua visão da religião e da Bíblia: "se quereis que um certo numero de palavras não firam os vossos olhos ou os vossos ouvidos, começae por trancar a Biblia, cortar os diccionarios e riscar da doutrina christã um peccado escandaloso: a luxuria."
Junqueiro e muitos desta geração ajudaram a moldar um republicanismo virulentamente revolucionário e anti-católico, prenúncio do que veio a acontecer após o derrube da Monarquia, não se coibindo até de procurar justificar moralmente o Regicídio.
Neste contexto, de certo modo, este recente virar da obra de Saramago (não li o que saiu agora, li o que o Sr. Pita disse sobre a mesma) parece alinhar-se adequadamente à já centária inconformidade moral de alguns intelectuais e o seu desafio às matrizes essenciais do pensar e estar portugueses (e espanhõis: eu acho que ele escreve para ambos) e a sua conhecida relação simbiótica com o Catolicismo. Em todo este período, exceptuando talvez a "longa noite" salazarista, em que em dissesse mal da Igreja estava positivamente lixado, o Catolicismo e os seus pressupostos foram sumária e por vezes selvaticamente abandalhados.
Para Saramago, para quem Deus não existe e a Igreja inibe e condiciona o "progresso" da sociedade portuguesa, escolher o episódio de Caim é procurar explorar - admito que de forma algo intelectualmente desonesta - a desperante complexidade da Bíblia e procurar, de forma literária, novos confrontos com aquilo que ele acha que é um Catolicismo omnipresente e asfixiante.
O laço ideológico aqui, e a que fiz referência anteriormente, é o pressuposto de que há um mitológico "homem novo português" - nobre, empreendedor, capaz de fazer grande obra - se apenas se conseguisse despir de (no fundo) tudo que o caracteriza e tudo o que o rodeia. E isso inclui, obviamente, a religião.
E que como é impossível, desagrada, deprime e revolta o intelectual.
Deve ser muito triste vir-se de, e pertencer-se a, uma sociedade que tão lapidarmente se rejeita. Saramago devia ter ido para Lanzarote há mais tempo ou, como Jorge de Sena ou José Rodrigues Miguéis, emigrar para a América. Alivia o sofrimento e estar cá dentro lá fora é sempre muito mais agradável. Eça escreveu " A Cidade e as Serras", fez as pazes e pirou-se para Paris.
Bem, Junqueiro fez o mesmo percurso mas na sua quinta no Douro. E lá, parece que encontrou Deus - o seu.
Sendo este o grande blogue Maschamba, eis uma peça adicional de trívia sobre Guerra Junqueiro e Moçambique. Ambos ele e Manuel Maria Sarmento Rodrigues, que foi governador geral de Moçambique entre 1961-64, nasceram em Freixo de Espada à Cinta; e a mulher de Sarmento Rodrigues era sobrinha de Guerra Junqueiro. Manuel Junqueiro, um outro familiar, foi para Moçambique em 1918 e foi machambeiro (sem "s") de chá na zona do Gurué e foi dado o nome dele a uma vilarejo qualquer por lá (o nome já deve ter ido para as urtigas). Ainda hoje se faz chá lá mas já ninguém se deve lembrar que inventou aquilo. Pelos vistos foi Junqueiro. O outro.