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"…cheguei a um acordo perfeito com o mundo: em troca do seu barulho dou-lhe o meu silêncio…" (R. Nassar)
[Sérgio Santimano, Macalange, Niassa oriental, 2001]
Todos teremos imagens de vida. E nessas, talvez, fotografias de vida. Esta é uma das fotografias da minha vida. Ao revê-la exposta, agora na Bienal TDM 2009, logo a paixão disse "presente". É paixão, não tem qualquer argumentação que a ancore. "Bigger than life" dizia-se do cinema quando ele o era, "Deeper than life" direi eu desta "(Mulher de) Macalange" encontrada no seu quotidiano percurso ao celeiro pelo Sérgio Santimano.
A fotografia moçambicana produziu alguns símbolos - e nesse sentido produziu a nação, construíu a identidade por via simbólica. Para cada era haverá um ou outro ícone particular: "os lavabos" e o "ferro em brasa" de Ricardo Rangel, o "banho dos soldados" de Kok Nam (que abaixo deixo), são fotos que considero particularmente relevantes. E se Rangel foi um grande reporter-narrador de Moçambique já a Kok Nam vejo-o, fundamentalmente, como um pintor de ícones - algo que obrigará à recolha da sua obra em livro, o que tarda -, bem adequado à época do seu apogeu fotógrafo, a do voluntarismo pós-independência.
[Kok Nam, "Sem título, Rio Révue, Manica, 1981". Reproduzida em Bruno Z'Graggen, Grant Lee Neunburg (orgs.) Iluminando Vidas. Ricardo Rangel e a Fotografia Moçambicana, Christoph Merian Verlag, 2002]
[Ricardo Rangel, (rapaz marcado com ferro). Reproduzida em Ricardo Rangel Fotógrafo, Éditions de l'Oeil, 2004]
[Ricardo Rangel, "Casas de Banho. Onde só o negro podia ser criado e só o branco era um homem, Lourenço Marques, 1957". Reproduzida em Bruno Z'Graggen, Grant Lee Neunburg (orgs.) Iluminando Vidas. Ricardo Rangel e a Fotografia Moçambicana, Christoph Merian Verlag, 2002]
Mas para mim, indivíduo aqui imigrado, há 3 fotografias moçambicanas que me são cruciais, que me construíram a auto-imagem, meio auto-reconhecimento, meio auto-embelezamento: uma "Aldeia Comunal" de Kok Nam (que vi na sua exposição individual da Photofesta, e da qual nunca consegui recuperar), a crucial "Apetecido Quintal de Caniço" de Rangel - as quais reproduzo abaixo -, e esta "Macalange". Um trio que faz o "meu" Moçambique. Ou melhor, me faz em Moçambique.
[Ricardo Rangel, "Apetecido Quintal de Caniço". Reproduzida em Ricardo Rangel, Pão Nosso de Cada Noite, Marimbique, 2004]
A (Mulher de)"Macalange" de Sérgio Santimano pertence a uma exposição individual dedicada à província do Niassa, que tem sido apresentada de forma itinerante. E está reproduzida - é apenas assim que a possuo - no livro "Terra Incógnita", publicado na Suécia em 2006, contendo fotografias de Sérgio Santimano e textos de Albino Magaia, Luís Carlos Patraquim, Bosse Hammarstrom, Henning Mankell.
É fruto de um longo trabalho de pesquisa, repetidas viagens à província. Um projecto possibilitado pelo apoio da "cooperação" sueca, penso que inscrito num esforço de testemunhar o papel desenvolvimentista que esta teve (e penso ainda ter) na província - o que marcará o livro, que tem como ponto fraco algum excesso de imagens (algumas pobres páginas com oito fotos cada), talvez no intuito de mostrar trabalho. Do patrocinador, do fotógrafo.
Mas esse é ponto fraco. De resto o livro é bem apetecível. Pois se "Fotografar é assumir uma responsabilidade. As imagens que ficam para trás são rastos importantes para o futuro." (Mankell) o que Santimano deixa, responsavelmente, não é apenas um conjunto de postais sobre a beleza natural do Niassa (ainda que aqui e ali ela surja, avassaladora). É o mundo humano, feito do camponês, como o espantoso "homem emergindo do rio, que não é Narciso" (Patraquim?). Mas também, e nisso rompendo com o constante e atávico olhar exoticizador dos fotógrafos em bolandas, com um mergulho no trabalho industrial do Niassa, de trazer a sua densidade, beleza. Essa a "responsabilidade" do Sérgio Santimano, a de afastar sem hesitação a folclorização. Do Niassa, do mundo. E, só assim, de o representar.
Também por isso, talvez por isso, toda a minha paixão por esta (Mulher de)"Macalange".
jpt