Saltar para: Post [1], Comentar [2], Pesquisa e Arquivos [3]




O milagre das rosas

por jpt, em 26.10.10

(O Milagre das Rosas, versão medieval)

No Libération leio um artigo sobre a emigração portuguesa: só nos últimos 5 anos partiram 350 000 portugueses. Principalmente para Grã-Bretanha, Suíça, Espanha. E Angola. E também aqui, ainda que Moçambique seja destino secundário, se notam os compatriotas a aportarem. Em termos estatísticos trata-se de algo similar aos tempos do "salto" nos anos 50-60, ainda que provenientes de uma sociedade muito menos dickensiana (apesar da actual retórica miserabilista da esquerda comunista), e com contornos sociológicos diversos. Entretanto a imprensa internacional anuncia que Portugal tem o 3º menor crescimento económico da década em todo o mundo.

É a "crise". Essa que, em Portugal, os teclistas ligados ao poder - por crença ou por remuneração, económica ou simbólica - continuam a explicar pela tese do "inimigo externo", ladainha tão reconhecível para quem vive em Moçambique. Para esses a culpa do estado das coisas é da crise financeira internacional, qual John Bull (aka Wall Street ou os ainda mais malévolos, porque inomináveis, "mercados internacionais").

 Mas vem Miguel Sousa Tavares num discurso típico que tantos mimetizam: “... quem foram estes loucos que nos governaram nos últimos 30 anos? Quem foram estes ministros das Finanças e da Economia que acharam que o Estado podia sustentar 14.000 (catorze mil!) entidades, entre as quais 900 Fundações e Associações particulares e 1000 empresas estatais e locais? Que aceitaram fazer sistematicamente obra sem a pagar (as parcerias público-privadas), negociando contratos onde o Estado foi sempre aldrabado e as facturas foram irresponsavelmente chutadas para quem viesse depois? Eles não sabiam que um dia teríamos de pagar isto e nunca se perguntaram como o faríamos?” Isto é um  nada-analítico, não é por "loucura" que esta situação se constituiu, não há causas psicológicas ou doenças que expliquem os contornos sociológicos portugueses. Este vácuo explicativo, muito comum agrada ao povo? Pode ele assim invectivar “os políticos que são todos iguais”? A pequena-burguesia, sentada à mesa do erário público, gosta? Pode dizer que está contra o "sistema" que a alimenta? Enquanto não o pensam, não o entendem, não se pensam e não se entendem.

Ou seja, de manhã a culpa é do "estrangeiro" (os "americanos" - esse avatar das "multinacionais americanas" de há décadas -, a “Alemanha”). Ao fim da tarde já é dos gestores públicos e, também, dos funcionários públicos. De manhã está-se com o Sócrates, à tarde com o "Miguel". E vai tudo bem, a situação decorre e os cidadãos descansam pois sentem-se críticos. E quando um tipo torce o nariz a este coçar da micose cerebral ou é um reaccionário ou é um "sociopata", como agora sói chamar-se aos que estão fartos do socratismo e da sua ascendência.

No meio disto ficam os últimos anos. Onde a transição do pós-comunismo exigiu a tantos dos activistas políticos uma adequação a uma retórica festiva, até juvenil, que lhe escondesse passado e presente ideológico e imoral. Optaram pelas causas sociais (antes, aborto, homossexualidade; agora touradas; amanhã o cânhamo), que os apressados socialistas (seguindo Sousa Pinto) vieram a chamar "fracturantes", em cúmulo de adesão para poderem surfar a onda.

Temas que serviram para estabelecer uma demarcação, topológica, no eixo central do sistema político, enquanto se propagava um discurso "naturalista" da alternância democrática, das virtudes da “bipolarização”. Coisas que colheram sucesso, num país bem menos conservador do que os "velhos da concordata" sonharam. Às quais o candidato Manuel Alegre chama agora, fazendo apelo à sua voz cava, "valores civilizacionais". Erro, por limitada reflexão. Porque "valores civilizacionais" - expressão traiçoeira, é certo - seriam mesmo as bases de um comum modelo social a tornar “sustentável”, económica e socialmente. Mas isso é algo que este agitacionismo impensante julga garantido. Tanto que esquecida foi a sua periódica revisão, a sua manutenção.

São esses reais – e pragmáticos – “valores civilizacionais”, os que ancoram a sustentabilidade, que vão torpedeados pelo centramento político na festividade agit-prop e no proteccionismo interno, sendo este o modelo estatista que o poder social-democrata português (PS/PSD) optou para substituir o super-proteccionismo do prévio Estado colonial. Pois estando a socioeconomia nacional impreparada para a liberalização acontecida por via da entrada na CEE/UE, vem servindo esse modelo estatista para aconchegar a aconchegar no regaço da redistribuição estatal, qual "Milagre das Rosas" moderno. Que se aconchegou de início, agora apenas estrafega.

Nesta óbvia derrocada de uma etapa do regime o que nos resta é tentar perceber o que poderemos fazer, o que se poderá manter, o que se poderá conquistar. O que se poderá desenhar, num balbuciante futuro, nas cinzas de um péssimo poder socialista que desperdiçou duas décadas. Mas tudo isso exige uma ruptura. Não com o sistema democrático. Mas sim com a elite eunuca e incompetente e com a sua vasta base social de apoio, dependente. Com esse mito da Rainha Santa, distribuindo o bodo aos pobres. E isso significa também uma ruptura, às vezes até um pouco dolorosa, com os escribas e blogo-escribas coniventes (e às vezes até estuporada e gratuitamente coniventes) com esta tralha. Vai ser necessário perder muita coisa. Até simpatias.

jpt

 

publicado às 04:13


1 comentário

Sem imagem de perfil

De “Porreiro, pá …” | ma-schamba a 20.08.2011 às 01:24

[...] deste nosso país da mudança de século. E a pacovice, de novo-rico mimado e ignaro, que abordei aqui, de centrar a discussão nas “causas fracturantes”, quando o “fracturante” [...]

comentar:

Se preenchido, o e-mail é usado apenas para notificação de respostas.

Este blog tem comentários moderados.

Este blog optou por gravar os IPs de quem comenta os seus posts.



Bloguistas







Tags

Todos os Assuntos