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"…cheguei a um acordo perfeito com o mundo: em troca do seu barulho dou-lhe o meu silêncio…" (R. Nassar)
[Luis Abélard, "Reinata]
Foram hoje entregues os prémios FUNDAC 2010. Como é óbvio o mais relevante é o "Consagração", que foi atribuído à escultora Reinata. O júri, um grupo integrando Elvira Viegas, Funcho (João Costa), Machado da Graça, Ungulani Ba Ka Khosa, apresentou este texto dedicado à premiada (estou obrigado ao seu presidente, Machado da Graça, que facilitou a sua publicação neste ma-schamba).
A atribuição do Prémio FUNDAC “Consagração” a Reinata Sadimba reconhece a notável carreira desta escultora moçambicana, sublinhando o extraordinário merecimento da sua obra. O prémio intenta realçar junto da comunidade nacional as virtudes e as virtualidades do seu projecto artístico. Este que vem constituindo desde há décadas, começado na sua aldeia Nimu, animado com as iniciais experiências na capital nacional na já longínqua década de oitenta, enriquecido com a sua estadia na Tanzânia, e desde então estável mas nunca rotineiro. Pois tem sido um caminho sempre desbravando novas perspectivas, de desafio em desafio, passo a passo, neste seu trajecto de oleira a escultora, da fogueira ao forno. E o qual sendo acarinhado internamente tem também sido reconhecido no estrangeiro, como o demonstram as inúmeras exposições em que a artista tem participado, a título individual ou em manifestações colectivas.
Este prémio pretende alertar para as características próprias da sua arte, que implicam referências transversais à sociedade nacional, e as quais se poderão considerar como exemplares reformulações dos patrimónios plásticos e culturais, sem que esta reclamação possa questionar o carácter de irredutível individualidade do exercício artístico de Reinata Sadimba.
A escultora é receptáculo das tradições culturais do seu contexto originário. Crescida no planalto Mueda, cedo se iniciou no trabalho da olaria. Uma olaria tradicional, de dimensão utilitária ainda. Mas que também comporta importantes dimensões estéticas, expressas nas temáticas geométricas que explicitam simbolicamente valores e concepções culturais cosmológicos. Uma olaria trabalho feminino, correspondendo a uma divisão por género dos encargos representacionais da cultura maconde: os homens esculpindo na madeira os discursos locais sobre o mundo, as mulheres fazendo-o, menos explicitamente, no moldar da argila.
Ascendida à maturidade Reinata inovou o seu trabalho de oleira. Rompeu com os limites utilitários da sua actividade e assim tornando-se demiurga de um novo mundo, figurativo, antroponómico, instável e em riscos de permanente surpresa. Nessa constante vontade de novos passos e novos fornos, carrega consigo o seu passado, traz os picotados geométricos que invocam as formas mas acima de tudo os conteúdos do mundo humano. Traz ainda o ensino tradicional, dos ritos femininos, palco das iniciais figuras da olaria local (shitengamatu) utilizadas nas suas danças finais. Traz, com toda a certeza, as figuras cósmicas, esses shetaniaté mestres do destino, que todo o Moçambique conhece e associa ao discurso maconde. E traz também todo o mundo de figuras, uma fauna reconstruída, um mundo assim capturado para seu deleite e sossego comunitário.
Pois no seu labor, pela sua fervilhante imaginação, assiste-se também á reconstrução do papel do imaginário feminino, à mudança do estatuto desses discursos femininos. O mundo, não apenas a representação do mundo, passa a ser produzido por Reinata. E, depois dela, pelas mulheres oleiras. E, porque não, pelas mulheres. Todas elas. Também elas.
Sim, Reinata representa o mundo. Mas representa-o como ele é e como quer que ele seja, uma mescla feliz, até utópica. Usa para isso a sua matéria-prima, a cultura na qual foi feita crescer. Mas é exactamente essa sua dimensão criativa, essa sua constante reconstrução, criativa, irónica, que apresenta erotismo e tristeza, festa e quotidiano, a fertilidade, o carinho, o mundo doméstico e a constante monstruosidade, é esse caminho sempre inesperável que Reinata anuncia que cumpre o desígnio artístico que aqui se consagra. As virtualidades da reconstrução. Constante. E rebelde. Assim demonstrando, através da sua individualidade, a extrema plasticidade da cultura dita popular. Sempre reinventada.
Reinata oleira maconde, dizem-na como se fosse essa a descrição que a definisse. Escultora do mundo, esculpindo mundos. Fazendo futuros. Pelo seu brilho inscrevendo as mulheres como dele escultoras.
Mas também anunciando a escultura em cerâmica, campo hoje em dia tão pujante nas artes plásticas moçambicanas actuais. Com toda a certeza devido à sua influência. São também esses novos caminhos colectivos rasgados por Reinata, essa sua marca no futuro, que se consagram neste e por este prémio.
Nota: fotografia de Reinata de autoria de Luis Abélard, publicada em "Com as Mãos. 24 Artistas Moçambicanos" (Athena, 2010).