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E a certeza de Nabokov

por jpt, em 30.01.11

 

 

A não existência de Deus é simples de provar. Impossível de conceber, por exemplo, que um Jeová sério, omnisciente e omnipotente, pudesse empregar o seu tempo de forma tão fútil a brincar com manequins e – o que é ainda mais incongruente – restringisse as suas brincadeiras às horrorosamente banais leis da mecânica, química e matemática, e nunca – repare bem, nunca – mostrasse a sua face, mas se permitisse espreitadelas sub-reptícias e circunlocuções , e murmúrios furtivos (revelações, francamente!) sobre verdades controversas por trás das costas de alguma histérica inofensiva.


Todo este negócio divino é, presumo, um enorme embuste do qual os sacerdotes não são certamente culpados; os próprios sacerdotes são suas vítimas. A ideia de Deus foi inventada no dealbar da História por um velhaco de génio; cheira demasiado a humanidade, uma tal ideia, para tornar plausível a sua origem celeste; não quero com isto dizer que ela seja fruto de ignorância crassa; aquele meu velhaco era perito em erudição celestial – e na verdade interrogo-me sobre qual das variantes do Céu será melhor: esse deslumbramento de anjos vigilantes agitando as asas, ou esse espelho curvo em que um complacente professor de física retrocede, ficando cada vez mais pequeno. Existe ainda outra razão por que eu não posso, nem quero, acreditar em Deus, o conto de fadas acerca dele não é bem meu, pertence a estranhos, a todos os homens; está completamente encharcado pelos eflúvios pestilentos de milhões de outras almas que giraram um pouco sob o Sol e depois rebentaram; fervilha de medos primitivos; ecoa nele um coro confuso de inúmeras vozes lutando por se afogaram mutuamente; distingo nele o ribombar e o palpitar do órgão, o rugido do diácono ortodoxo, a melopeia do chantre, as lamentações dos negros, a eloquência fluente do pregador protestante, gongos, trovões, espasmos de mulheres epilépticas; vejo brilhando através dele as páginas desmaiadas de todas as filosofias como espuma de ondas há muito desfeitas; é-me alheio, odioso e completamente inútil.


Se não sou senhor da minha vida, sultão do meu próprio ser, então não há lógica nem acessos de êxtase de nenhum homem que possam obrigar-me a achar menos idiota a minha posição incrivelmente idiota: a de escravo de Deus; não, nem sequer seu escravo, mas apenas um fósforo acendido a esmo e depois apagado por uma criança inquisitiva, o terror dos seus brinquedos. Todavia não há motivos para ansiedade: Deus não existe, como não existe vida futura, truque esse que podemos arrumar tão facilmente como o primeiro.” (89-90)

 

[Vladimir NabokovDesespero, Editorial Teorema]

 

jpt

publicado às 16:28



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