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"…cheguei a um acordo perfeito com o mundo: em troca do seu barulho dou-lhe o meu silêncio…" (R. Nassar)
Machado da Graça enviou o seu "contraditório" (como agora se diz) às minhas opiniões muito pouco positivas sobre Ernesto Guevara, sublinhadas pela irritação face a tantas t-shirts e quejandas estampadas com o ícone.
Aqui o deixo, cumprindo a obrigação, que o Ma-Schamba é blog democrático, ainda que por vezes mal-disposto e azedo. E também porque corrompido por esses "os frescos anos" com que o Machado me brinda...
O Ernesto
Machado da Graça
12 Outubro 2004
Há dias, no teu blog, desancaste violentamente o Ernesto. Chamaste-lhe tudo, de sanguinário para diante. Li e resolvi deixar passar. Os teus frescos anos não dão para compreender o que ele significou para a minha geração.
Dias depois uma dessas recolhas de efemérides lembrou-me que fazia não sei quantos anos que ele disse a um soldado meio aterrorizado: “Coragem, dispara, vais matar um homem”. Coisa que o soldadito fez, disparando-lhe uma rajada de metralhadora para cima. Isto numa pequena escola, atrás do sol posto, na Bolívia.
A decisão de lhe dispararem aquela rajada parece ter sido tomada muito mais a norte, provavelmente num gabinete alcatifado na sede da CIA. E veio, pelos canais hierarquicos do costume: CIA – Generais no poder na Bolívia – militares nas montanhas.
Aparentemente havia quem o quisesse manter vivo para ser julgado, mas a CIA não foi nisso. O Ernesto vivo continuaria a ser sempre uma dor de cabeça.
Era o tempo da guerra do Vietnam. Centenas de milhares de soldados americanos andavam atascados até aos tomates nos arrozais a levar tiros que vinham não se sabia bem de onde. E voltavam à América, limpos e bem fardados, em bonitas caixas de madeira cobertas por uma bandeira. E como se gastou madeira para fazer essas caixas naqueles anos...
E o Ernesto queria fazer dois, três, muitos Vietnams. Queria espalhar Vietnams por todo o lado, para multiplicar as caixas cobertas de bandeiras.
Sanguinário, portanto? Sim, como todos os militares. E ele, desde a Sierra Maestra tinha passado a ser um militar. Subiu para lá como médico mas um dia, no meio de um combate, teve que escolher entre salvar o saco dos medicamentos ou uma caixa de munições. E escolheu salvar as munições. Foi uma opção que continuou até à morte.
Mas é preciso pensarmos que há dois principais tipos de militares: os que são militares porque a isso são obrigados (serviços militares obrigatórios e quejandos) e os que o são por escolha própria. E, nestes últimos, os que o são seja qual for a guerra e os que só o são se estiverem de acordo com a guerra a travar.
E o Ernesto, é claro, era destes últimos. Era ele quem escolhia a guerra. Não era apanhado, desprevenido, no meio dela.
Escolheu ir para Cuba quando ele, argentino viajante, conheceu o Fidel no México. Escolheu vir para África para tentar pôr em prática a Teoria do Foco no Congo. Escolheu ir para a Bolívia pela mesma razão, julgando que conseguiria comunicar melhor com os sul-americanos do que com os africanos.
Mas porquê essa vontade permanente de fazer a guerra?
Porque o Ernesto verificou, em Cuba, que uns tiros dados no momento certo podem mudar um país de bordel dos americanos para qualquer coisa de decente. E de bordeis identicos estavam a África e a América Latina cheias. E não eram coisas que se mudassem com boas palavras e agitar de raminhos de oliveira.
Em África não foi o objectivo que esteve errado. Foi o método. Muito provavelmente na Bolívia também.
Agora que os regimes da altura só sairiam à porrada veio a comprovar-se pelas inúmeras gravuras juntas. Não foi porque um achasse que era necessária a guerra e outro não que o Ernesto e o Mondlane discordaram. Foi porque um queria fazer o foco no Congo, ganhar o controlo do país e espalhar a revolução pelos vizinhos e o outro queria fazer a guerra apenas no seu país, onde era mais fácil mobilizar os combatentes para uma guerra que lhes daria frutos imediatos.
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De qualquer forma o Ernesto aparecia como o pequeno David que enfrentava, quase com as mãos nuas, o Golias americano, imponente e opressor.
Com as mãos nuas e limpas, porque podendo ter ficado no governo de Cuba a beneficiar das mordomias próprias dos cargos governamentais, preferiu voltar para o mato a arriscar o pêlo pelas coisas em que acreditava.
Por cima de tudo isso teve a sorte de ser fotogénico e ter encontrado fotógrafos que o imortalizaram (mesmo depois de morto, como bem notaste).
É por isto tudo que não concordo com a descrição que publicaste dele.
Talvez o Ernesto tivesse em si um pouco do D. Quichote, arremetendo, de Kalash em riste, contra os B 52.
Mas, que diabo, o D. Quichote continua a entusiasmar gente ao fim deste tempo todo.
E espero que o Ernesto também continue. Apesar de tudo continuo a achar que é preciso dizer aos jovens que devem lutar por aquilo em que acreditam em vez de fazer uma vida acomodadinha de discoteca e campo de futebol.
E o Ernesto continua a ser um modelo muito aceitável, na minha modesta opinião
Hoje no Público uma declaração assombrosa. Diz Mário Mesquita: "Certo é que, nesta Europa de 2004, para reavivar o espírito de Lord Keynes, a justiça social e a intervenção do Estado na economia, é necessário possuir alma de guevarista. Após a queda do muro de Berlim, o reformismo transfigurou-se, ficando, subitamente, revolucionário."
Percebo, é uma metáfora este "guevarismo". Mas metáfora alimentada de um pobre mito, já o resmunguei. Ernesto Guevara é um ícone pop, t-shirts, cintos, cartazes e afins. Tornado símbolo porque bela presença e bem fotografada, um cadáver bonito ainda para mais. Ernesto Guevara foi um líder sanguinário e um político inepto, buscando um ideologia totalitária. Como "exportador de revoluções" foi intolerante, incompetente, preconceituoso. Lê-lo é ler a sua extraordinária incapacidade para compreender o que o rodeava. E a sua profunda arrogância, o seu auto-convencimento. Bastará a beleza, alguma valentia e uma morte em acção para ser metáfora, servir para pensar o real?
Estes discursos do "che" não são coisa de geração, como se diz. São palavras de gente incapaz de metaforizar o real, de o simbolizar, pobres no mastigar (eterno?) destes símbolos alheios às confusas ideias que lhes associam, gente assim desprovida dos meios de pensar o real. Nada a esperar sobre o futuro destes tristes guevaristas metafóricos. Foi chão que deu uvas. Alimentado à Onan.
Ou então, porque também os há, são palavras de quem é realmente "guevarista". Gente inimiga, sanguinária, tal como o ícone que acolhem nas suas roupitas de marca. Sem qualquer pudor.
Há algum tempo fui ali ao PiriPiri ter com o meu mais que bom amigo Francisco. Esperei-o um pouco, até que ele me surgiu embrulhado numa t-shirt estampada com a célebre cara de Ernesto Guevara. Sabia-o regressado de um qualquer congresso em Cuba, decerto era aquilo um "recuerdo", memórias dessas agradáveis coisas do turismo académico.
Confesso a minha incomodidade de então, ainda que muda. Que raio, que fazia eu ali em plena esplanada com o meu amigo e mais o espírito do argentino? Aqueceu-me a 2M mais depressa, ainda que tudo tenha sido esquecido na conversa.Mas fiquei-me a pensar, que faz um homem destes, culto como ele o é, com todo o seu espírito crítico, um cáustico quase niilista, carregar aos 40 anos um ícone tão embotado pelo tempo e pelas verdades? Que falso peso o desse "che"? Passados uns dias ele apareceu de surpresa cá em casa (ele e Idasse são os únicos que surgem sem telefonar, magnífica coisa em sociedade tão formal). Abro-lhe a porta e eis de novo o Guevara, agora portas dentro. Não me contive num "foda-se pá, então vens a minha casa com essa t-shirt!!", resmungo que morreu na gargalhada dele, ali logo embrulhando um dito sobre a beleza das cubanas, lembro algo como o elogio das "bundas grandes", coisas mais importantes que ideologias, e aí todos concordamos.Estando então eu já de blog armado decidi escrever sobre este Ernesto Guevara por aí. Tive a sorte de encontrar uma fantástica montra na Interfranca com o dito cujo,
[Fotografia de Fernando Macedo]
como aperitivo de um texto sobre a estranheza face à persistência do mito. Texto que nunca terminei, para aí no meio de tralhas avulsas.E que nunca terminarei. Pois pouco ficará para dizer depois da prosa que o Comprometido Espectador acaba de dedicar a este assunto. O acutilante suficiente. Feliz coincidência.