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"…cheguei a um acordo perfeito com o mundo: em troca do seu barulho dou-lhe o meu silêncio…" (R. Nassar)
Uma entrevista a Miguel Tamen, na qual o académico enquadra "como deve ser" a questão do Acordo Ortográfico, brotado dessa outra questão, a "Lusofonia". Pela sua clarividência transcrevo-a aqui. Muito lamento que em 2012 ainda seja necessário louvar quando surge esta argumentação. Que deveria transversalmente entendida. Mas não, a irreflexão petulante abunda.
Aqui fica a boa entrevista. A ver se, como vem no jornal, a análise entra na cabeça de mais alguns:
"Crítico do Acordo Ortográfico (AO), o director do programa em Teoria da Literatura da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa não reconhece ao Estado o direito de legislar sobre a língua. Na ideia de lusofonia que hoje serve para justificar o AO, Miguel Tamen vê a recuperação da mesma utopia que serviu à direita para defender o imperialismo colonial português. Pronta a passar atestados de incompetência aos cidadãos, “a esquerda portuguesa é, afinal, a direita portuguesa por outros meios”, lamenta.
Qual a sua posição no que diz respeito ao AO?
Considero o acordo uma péssima ideia e uma ideia inútil, mas por razões diferentes daquelas que tenho visto apresentar. Há pessoas que dizem que o acordo é mau porque foi tecnicamente mal feito; há outros que consideram que o acordo é mau porque é inválido e porque, juridicamente, não está em vigor; há ainda as pessoas que criticam o acordo como erro político, uma cedência a países terceiros; aqueles que são contra por entenderem que o acordo é ineficaz, por não existir um modo exequível ou prático de o implementar; e, por fim, os que o rejeitam por acharem que coisas como a língua não devem ser objecto de legislação e acordos. Percebo todas estas posições e concordo essencialmente com a última, mas a minha objecção principal não coincide com nenhuma destas.
Qual é então essa sua principal objecção?
Eu acho que o acordo é mau porque a ideia de lusofonia é má. Na minha opinião, tudo o que invoque a noção de lusofonia me parece deplorável.
Porque considera má a noção de lusofonia?
Por duas ordens de razões. Começando pela mais abstracta, porque pressupõe que, como um dado adquirido, países ou pessoas possam estar unidos por uma língua. E pressupõe que uma língua faz parte de um património – e de um património que precisa de ser defendido. Não acho que as pessoas precisem de ser defendidas por uma língua, não acho que a língua seja património e, por isso, não acho que exista alguma necessidade especial de defender o património da língua. Esta é a primeira ordem de razões. Mas há outra, que é mais desagradável, que me faz entender a lusofonia como uma noção errada: a noção de lusofonia corresponde em Portugal, historicamente, a uma espécie de colonialismo de esquerda, à ideia de que, desaparecido o império colonial português, seria possível manter um seu substituto espiritual.
Uma espécie de irmandade de armas?
Sim, uma espécie de irmandade. É como que a versão de esquerda de uma causa que nos anos 40 era defendida com a ajuda de palavras como “fé”, “império” ou “religião”. Hoje já não se fala de fé, nem de império ou religião, mas fala-se de lusofonia. Com motivações muito parecidas. Felizmente, os meios para pôr em prática esta agenda são escassos. E mais: muitas das pessoas que são contra o acordo são a favor da noção de lusofonia. Acham é que é possível defender a língua doutra maneira. Simpatizando embora com a hostilidade destas pessoas face ao AO, entendo ser um mal-entendido deplorável invocarem a lusofonia, a cultura comum, etc.
Posto isso, na sua opinião, fica alguma coisa da ideia de lusofonia?
A ideia de lusofonia é geralmente usada em Portugal como uma espécie de cartaz daquilo a que se poderia chamar o excepcionalismo português, a ideia de que os portugueses são diferentes de todos os outros. A ideia de excepcionalismo português é usada para encontrar justificações políticas para toda uma série de acções.
Quais, por exemplo?
Se um angolano for cleptocrata, só porque fala português é menos cleptocrata. E se um timorense for mártir, só porque fala português é mais mártir. Ora não é nem menos cleptocrata nem mais mártir. Falar português não acrescenta nem tira nada. Recorremos a esta noção para pensarmos que somos especiais. A ideia de imaginar que um país é especial por causa da língua é tão nefasta como imaginar que se é especial por motivo da raça ou da cor da pele, ou dos sapatos que calçamos, ou do penteado.
A língua não deve ser objecto de nenhum cuidado particular, devemos deixar que siga o seu livre curso?
Claro. E é aí que entram os argumentos razoáveis sobre o modo como nenhum acordo ortográfico vai mudar a maneira de as pessoas falarem. Não é só legislar sobre a língua que é tonto, é imaginar que leis sobre a língua possam ter efeitos. Legislar sobre a língua é o mesmo que legislar sobre a virtude. Imagine um decreto-lei que estipule que, a partir de agora, os pecados são proibidos. Como é que isso se põe em prática?
Os adeptos do AO dizem que se trata de assegurar a compreensão e a leitura.
Os problemas de compreensão não ocorrem por causa da ortografia e não são resolvidos graças à ortografia. Os problemas de compreensão ocorrem, por exemplo, no caso daquilo a que se chama eufemisticamente “português do Brasil”, por causa da sintaxe, ocorrem por causa da pronúncia, ocorrem por causa de um sistema de formas de tratamento completamente diferente, ocorrem por um vocabulário que nalguns casos é completamente diferente e, portanto, nenhuma medida de ortografia e nenhuma medida de leis sobre ortografia vai resolver problema nenhum.
A favor do AO diz-se ainda que o número de palavras cuja grafia é alterada é relativamente pequeno.
É verdade, mas é igualmente verdade que as palavras cuja grafia sofre alteração tendem a aparecer concentradas em determinados contextos. De repente, vemos proliferar num ecrã de televisão palavras como “espetadores” e “atuais”. Ocorre-me a descrição de um fragmento muito conhecido de Fernando Pessoa no “Livro do Desassossego” que nunca é citado no seu conjunto. A primeira parte é “Minha pátria é a língua portuguesa” e o resto deste fragmento diz “Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incomodassem pessoalmente. Mas odeio, com ódio verdadeiro, com o único ódio que sinto, não quem escreve mal portuguez, não quem não sabe syntaxe, não quem escreve em orthographia simplificada, mas a pagina mal escripta, como pessoa própria, a syntaxe errada, como gente em que se bata, a orthographia sem ípsilon, como escarro directo que me enoja independentemente de quem o cuspisse”. Esta é uma dimensão pessoal e visceral; os meus argumentos contra o acordo não são de modo algum de ordem tão pessoal ou visceral.
Neste momento, como prevê que as coisas se desenrolem?
No mundo académico, as transformações sentem-se de uma forma diferida, acolchoada, não são ressentidas automaticamente. Depois da reforma de 1911, as pessoas continuaram a escrever durante muito tempo como se escrevia antes de 1911. E muitas escreveram dessa maneira até ao fim da vida. Não penso que no mundo académico isso tenha muitos efeitos. Parece-me altamente insensato que nas universidades ou academias se altere a ortografia por via administrativa. São desejos de um Estado hipertrofiado.
Mas a universidade vai ter de adoptar o AO nos documentos oficiais.
Não é para mim claro que isso tenha de acontecer, embora a discussão a ter seja uma discussão jurídica. Não é claro que a autonomia da universidade e a lei da autonomia das universidades não dêem espaço às universidades precisamente para decidirem se devem adoptar ou não esse tipo de medidas.
A pronúncia como argumento é, na sua opinião, inconsistente?
Há aí uma contradição: muitos dos defensores do AO dizem que é um bom instrumento para aproximar a escrita da pronúncia. E ao mesmo tempo querem que a maneira de escrever seja comum a todos os países que falam português. Em partes diferentes de Portugal, de Angola ou do Brasil são usadas pronúncias completamente diferentes. Se acham que a ortografia deve respeitar a pronúncia, isso daria lugar, não a uma ortografia unificada, mas a dezenas de ortografias. Se, pelo contrário, acham que a ortografia não deve respeitar a pronúncia, então não tem sentido um acordo ortográfico.
Querendo aproximar da pronúncia para simplificar a escrita, é lógico que se queira legislar sobre esta questão?
É completamente incongruente e irracional. É mais uma contradição. Há coisas com as quais não concordamos, mas às quais conseguimos reconhecer vantagens. No caso do AO, não consigo pensar numa única vantagem. É um desastre completo.
Quais são os argumentos que o fazem dizer que é um desastre?
É um desastre linguístico, porque foi feito de uma forma inepta. É um desastre jurídico, porque ninguém tem a certeza se está em vigor. É um desastre político, porque cede a interesses espúrios. É um desastre intelectual, porque não é, muito simplesmente, eficaz. E é um desastre do ponto de vista geral, porque consiste em legislar sobre uma coisa que não tolera legislação.
Os defensores do acordo argumentam que, de qualquer modo, estamos a obedecer a um acordo anterior.
Em rigor, não é verdade. Estamos a obedecer a uma reforma que foi feita unilateralmente em Portugal em 1911 e houve várias tentativas abortadas de acordo desde 1911, uma reforma que demorou muito tempo a ser implementada e que, em última análise, se transformou numa espécie de segunda natureza. Alterar a ortografia em 1911 era igualmente irrazoável porque, embora a maneira de escrever e as línguas se alterem, não devem mudar por imposições legislativas. Também havia erros de ortografia antes de 1911. Mas mais grave que escrever mal ou bem palavras, é dizer disparates ou pensar mal.
Está a dizer-me que se trata de um vício de tutela do Estado, que não reconhece capacidade e responsabilidade aos cidadãos?
Da perspectiva liberal, é certo que entendo, como os liberais, que o Estado não deve legislar sobre a língua. Mas a razão porque assim entendo não é porque ache que seja uma imoralidade intrínseca fazê--lo, mas porque não são necessárias leis onde existem costumes satisfatórios. É uma defesa daquilo que é familiar. E, deste ponto de vista, considerações sobre o interesse de uma espécie de lusofonia etérea parecem-me a pior de todas as alegações e o pior de todos os argumentos."
jpt
E o Eduardo White empresta-me mais um texto, escrito para um encontro sobre "lusografia" realizado em Maputo, na UEM, em Fevereiro de 2008. Uma delícia. Um texto verdadeiramente a laWhite. E é o momento de o (re)ler.
A LUSOGRAFIA, A LUSOFONIA E EU
por Eduardo White
O tema é, realmente, de muito interesse, mas confesso que são pequenas as minhas balizas sobre as Lusografias, sobre as lusofonias, ou melhor sobre esta coisa de lusos daqui, lusos de lá, para que o abordasse de outra maneira que não esta. Por isso, pergunto: Que geografias terá a minha grafia? As da minha língua? As das línguas da minha língua? Estas são, de repente, as perguntas que me ocorreram quando um amigo propôs-me o desafio de questionar-me, enquanto “poeta”, nesta coisa a que chamam lusografias. Decidi, então, procurar outras perguntas a partir de um Dicionário Universal de Língua Portuguesa. Recomendei-me, antes: Eduardo, não academizes nada, não és um académico. Ok. Vamos lá, por ordem, percorrer o abecedário do vocabulário. Na página 763 do tal dicionário, logo no topo, entre a numeração, duas palavras constituíam os dois lados do portal. À esquerda, gramaticologia que é o mesmo que dizer “o estudo científico da gramática. Do lado direito, granitificar que é o mesmo que ler “ transformar ou transformar-se em granito “. Logo pensei:. A falta de chão à esquerda levar-me-á, por certo, a empedrar-me à direita. Porém, aquietei-me. Decidi: Eu vou mas é percorrer tudo isto como percorro a escrita quando escrevo. E, assim, encontrada a palavra grafia, descobri-lhe, igualmente, o primeiro recuo. Grafia estava na página anterior. A 762. Muito bem. Vamos procurar-lhe a gema. E o que encontro no nutritivo amarelo da grafia, antes de qualquer outro significado, é isto : modo de escrever. Respirei fundo. Limpei-me dos medos. Retomo à palavra lusografia. Reparo que necessito de procurar definir, para melhor entender, a expressão luso. Soletro: g, h, I, j, l. Eis o l, na página 762. Do lado direito da numeração a palavra lupinotoxia, ou o mesmo que alcalóide venenoso dos tremoços. Deduzo, bem moçambicanamente, a envenenada anedota. Tremoços, Eusébio, Portugal. Estou perto. Leio, depois, no lado esquerdo luto: sentimento de pesar pela morte de alguém, mágoa, tristeza. Viajo, pela memória, no traje preto da varina da minha avó portuguesa. As suas amigas todas de preto na Madragoa. Oiço-lhe o fado. É aqui que paro. Digo-me. Dedo coçando o papel, encontro mesmo a palavra Luso, que será dizer lusitano, português, lusíada. Portanto, lusografia significa modo de escrever lusitano, português. Mas, porque carga de água pede-me o Cezerilo que eu escreva qualquer coisa sobre o modo de escrever português? Sobre o assunto, escrevem certamente melhor, os portugueses. Deixa-me perguntar-lhe. Agarro na minúscula tecnologia da mal encarada emecel e disco-lhe o contacto. Alo? Cezerilo? Não entendo bem. Afinal, o que me estás a pedir é que escreva sobre o modo de escrever português. Não caberá, mais abalizadamente, um escritor português escrever sobre o tema ? Não, mano Dino, diz-me ele, eu pedi que escrevesses sobre as lusografias. Bom, volto a pensar sobre o assunto. Não vá isto ser susceptível de ser uma visão xenófoba. Ponho a questão noutros termos. Assim: Lusografia, modo de escrever o português. E, nisto, logo se me põe outra cogitação. É que esta expressão, modo de escrever o português transporta-me a uma visão oliveirista mas não salazarista. Quero dizer, remete-me àqueles conteúdos dos filmes do Manoel Oliveira, ou seja, a essa visão do ser português. Bonacheirão afável e o humilde triste. Então, que tem isto a ver com este espaço onde me pedem para que disserte sobre Lusografia? Chamo pela Augusta, que é a minha companheira, e peço-lhe: Augusta, ajuda-me lá a ordenar as ideias. Estou encalhado à volta do assunto das lusografias. E ponho-lhe as palavras sobre o papel: 1. Luso. 2 grafia + tudo junto = Lusografia. Agora traduzamos para a nossa língua portuguesa a palavra. Muito bem 1. modo de escrever português. Faz-te sentido? A minha augusta Augusta sentencia. Modo de escrever português significa a maneira como escrevem os portugueses. Santa minha Augusta, exclamo, é também assim que o pensei. E se te puser a frase de outra maneira. Desta: modo de escrever o português. Diz-me ela. A maneira como se escreve o modo de ser português. Iluminada mulher, a minha, que esclarece os meus escuros. Penso, enquanto agradeço correctamente em língua portuguesa a Augusta. Mas, assim mesmo, me lembro de outro assunto: Minha mãe, portuguesa distinta da Madragoa, a chamar-me a atenção para os bons modos quando peço e recebo a sua ajuda. Diz-me ela: Agradece sempre o que recebes. E é nisto que me vem a fotografia do meu modo de escrever o português e que é o retracto escrito de minha mãe. Educada, sensível e terna. Mas, também, é este o meu modo de escrever em português: educado, sensível e terno. Então, se são todos estes modos, modos de escrever e até de entender, como entenderei o facto de em nenhum dicionário de português por mim pesquisado não vir referenciada a palavra lusografia? Ou será mais uma nova expressão da nossa sempre inventiva língua portuguesa? E estará assim a minha língua a lusitanizar-me? Eu moçambicano a falar-me com a minha realidade sociolinguística? E se me chamam, após tudo isso, de lusófobo? Não o podem, até porque o meu saudoso amigo Professor Manuel Ferreira lembrava-nos já que as modificações que a língua vem sofrendo nestes múltiplos espaços, criando situações de diglossia, vai, por simpatia, explodir nas línguas escritas, nomeadamente no texto texto literário. Daí que as literaturas destes países acusem, claramente, as interferências de outras línguas que não a portuguesa e a incorporação de novas aquisições lexicais provenientes dos novos espaços humanos, geográficos e sociais, e deste modo se organizam. As cartas de amor do meu meu pai, que é de Angónia, lá para o norte de Moçambique, deveriam ser um belo testemunho disso. Sempre escreveu como tetense o gordo murchem no caril e amou a minha mãe com os mais belos versos chuabenses. Tudo em Língua Portuguesa doutras crioulas grafias. Está pressuposto aqui que a grafia da Língua Portuguesa no meu caso, amoçambicanizou-se. Afinal, uma língua também se escreve como se a fala. Porém este facto é uma fatalidade que recai sobre uma língua desde que no quotidiano seja confrontada por outras Línguas que circulam com intensidade no mesmo contexto. Aqui, com estes pontos de vista, começo a tocar na questão da identidade, quero dizer, na moçambicanidade impercebível da minha língua que tem de entre outras identidades também e não somente a lusitanidade. Desconsigo-me na cabeça. É que toda a vida pensei que a minha moçambicanidade tinha por língua a minha moçambicanidade, quero dizer o meu moçambiquês e a minha moçambigrafia que é também donde eu entendo, vejo e respeito o lado da lusitanidade da minha língua. Mais claro, onde eu Eduardo White, moçambicano, me vejo a olhar a minha mãe, Maria Helena, portuguesa. Seja, na mesma língua com modos diferentes. Só para melhorar a ideia, a minha mãe portuguesa respeita com a lusitanidade com que está na sua língua a moçambicanidade com que a oiço na minha. O facto é tão somente este, falamos eu e a minha mãe a mesma língua com duas identidades diferentes. E como escrevemos a língua em que falamos, de que modo escreve a minha mãe português? Ou por outra, de que modo escrevo eu português? Como é que respondo a esta baralhada toda na língua portuguesa? Chamo de novo pela Augusta. Augusta, responde-me lá tu a estas perguntas, mas em português, peço-lhe. Reparo, assim, que a Augusta me responde em Língua Portuguesa com a sua Língua Portuguesa. Interessante isto. A Augusta a responder-me com a sua Língua que é a minha e que só é a mesma na identidade que nos cobre, a nossa moçambicanidade, mas completamente distinta no modo diferente das nossas origens. As terras onde nascemos. Mas isto no português é uma confusão. Perdão, não é isto o que queria dizer. O que quero dizer é, isto na Língua Portuguesa é uma confusão. Incrível como quer dizer tantas coisas a minha Língua. E querendo dizer muitas coisas, diz, por certo, muita gente. E eis que se me torna claro que há muitos povos diferentes a falar diferente a mesma Língua. Há várias normas e, logicamente, umas tantas Variantes. Não tenho dúvidas. A Língua Portuguesa é o património colectivo de cada um dos povos que a fala, ou não tivesse ela nascido no universo de cada um desses povos. Uma Língua falada é uma Língua que está permanentemente a nascer porque se não o faz no seu processo de ser Língua, gente, cultura, ideia, civilização, ela morre. Como é evidente, falo isto do modo que penso, muito moçambicanamente na minha Língua, com a minha língua e sobre a minha língua. Porque a língua tem sempre a identidade de quem a fala mesmo não sendo ela a sua língua. No entanto esta realidade, da Língua Portuguesa, tem simultaneamente o valor de verdade e o valor de falsidade. Quero dizer, é uma realidade que é e não é. A Língua Portuguesa é nossa, e não é nossa, e não é só nossa, porque sendo ela propriedade dos povos que a falam, é também ela fruto do que ganha com as outras línguas que também falam e são as desses povos. Em suma, a Língua Portuguesa é o que é nas diferentes maneiras de a pensarmos, de a escrevermos e de a sermos. Angolanos, Brasileiros, Caboverdianos, Guineenses, Moçambicanos, Portugueses, São Tomenses e quase ainda Timorenses. Mas retomo de novo, e se mo permitem, a lembrança do Professor Manuel Ferreira muito a propósito dos cinco: Os cinco partiram do princípio de que a língua é um facto cultural e os factos culturais começam por pertencer a quem os produz é certo mas a partir daí deixam de ter dono. São de quem os quiser ou tiver necessidade de utilizar. Reapropriaram-se da Língua Portuguesa como se deles fosse. Assumiram-na com toda a dignidade e naturalidade e agora reintroduzem-na por todo o seu espaço nacional, dando-lhe um estatuto nobre ao tempo que a vão interiorizando, tornando-a totalmente sua. Tão sua que a modificam, a alteram, a adaptam ao universo nacional ou regional e a transformam no plano da oralidade e no plano da escrita. E aqui, gostaria de fazer um aparte. O já meu celebérrimo Dicionário Universal de Língua Portuguesa, na página 101, vem como significado de anglófono o que se diz do indivíduo ou do povo que se exprime em inglês. Sem dúvida mas com curiosidade perguntei a um amigo Sul-Africano se existia na sua língua a expressão anglófono. Ele respondeu-me negativamente. Pego então no dicionário de Português – Inglês da Porto Editora e constato que a palavra não existe mesmo. Mas e existiria então tradução para lusófono? E a que encontrei foi esta: Portuguese; Portuguese speaking. Estranha e também curiosa a pobreza desta tradução. Mas bom, é uma questão que levanto porque não poucas vezes me confunde muito essa coisa de povos lusófonos com as suas lusofonias e as suas lusografias. Complica-me um pouco a cabeça que ainda falem de nós como povos lusófonos. E porquê esta carga toda de desidentidade? Porque falamos a Língua Portuguesa? É certo que não podemos fugir ao facto de que a Língua que todos falamos é a Língua Portuguesa que também é a dos povos lusófonos. Do Norte a Sul de Portugal. Mas não podemos correr o risco de que ao contextualizarmos essa realidade, desatribuamos com uma só identidade todas as outras identidades que é, por natureza, a Língua Portuguesa. Mas como na Língua Portuguesa também é comum a susceptibilidade, advirto já que não pretendo que sintam neste meu discurso, mais do que não seja apenas o querer levantar assuntos que não me são muito claros e que aspiro ver, em parte, aqui aclarados. Até porque, esta questão desta só identidade da Língua Portuguesa, tem sido quase que uma desajuda nos debates sobre as identidades dos povos africanos que falam esta língua. É que nenhum deles quer voltar a ser luso. Pelas razões que são bastamente conhecidas. A História e as identidades dos nossos povos se cruzaram há muitos anos, porém, há menos anos ainda se reescrevem em Língua Portuguesa. É preciso muito tacto quando as designamos e mais ainda quando as definimos. Não vá acontecer estarmos a cobrar, involuntariamente, aquilo que devemos. Este conceito das lusografias, no contexto dos povos lusófonos e da sua lusofonia deixa-me um pouco com o pé atrás quando tento perceber as suas motivações e finalidades. E porquê? Porque mexe com as identidades de cada um dos povos que se vêem, deste modo, injustamente inseridos nesse quadro que respeito e que é o da lusitanidade. Onde fica nesta designação a pluridentidade da Língua Portuguesa escrita e falada? Este é um facto, não podemos contorná-lo, muito embora possa ser um ponto de vista discutível como creio que é e como eu gosto de tornar as coisas quando não as percebo muito bem. Portanto, para terminar a confusão que é tudo isto na minha cabeça, peço-vos desculpas se este texto não faz absolutamente nenhum sentido aqui. Mas creio que concordarão que terá sentido que um cidadão falando e escrevendo da cidadania que lhe confere a sua Língua, a permita retractar nas inúmeras fotografias da prolixidade que acaba por ser a realidade da mesma.
jpt
Já há anos que aqui não entra um texto do Eduardo White. Agora reproduzo o que ele acaba de me emprestar, este recente "As línguas da nossa língua" - que ainda para mais vem muito a propósito. Publicado originalmente na revista Tempos Livres:
As Línguas da Nossa Língua
Eduardo White
Porque a língua tem esta faculdade de ser interpretativa mesmo sendo comum aos seus falantes. A língua que mente é a que veredicta, a que odeia é a que ama. As ironias evidentes de um só destino. E advinhe-se qual? O de que, nem tudo o que parece é.
Guarda a nossa Língua outras tantas línguas. A que falamos em comum e que por inerência das nossas culturas, nossas, as dos falantes, se amaneirou de identidades próprias, e de sonoridades e estruturas a elas subjacentes. A língua que falamos, passou, assim, por espelhar povos tão diferentes e tão eloquentemente multifacetados. Tornou-se mesmo uma ponte entre as distâncias das Nações que somos.
Mas, o mais notável que tenho constatado, para além do que já nos é comum saber quanto à importância que a nossa Língua Portuguesa tem de nos tornar perto estando nós tão longe, é a que encontro nos lugares do dia a dia. Por exemplo, num bar, numa cafetaria, numa festa. E, a esse propósito, aconteceu-me, lá por Lisboa, estar eu sentado numa pastelaria e ter ouvido uma senhora a pedir a conta ao empregado de mesa. De princípio nada tem o facto de invulgar. Se estamos numa pastelaria, é evidente que acabamos sempre por pedir a conta. A menos que nada tenhamos consumido. Porém, não sendo o português que falo o português de Portugal, a moçambicanidade da minha língua deixou-me quase que atónito quando o empregado, ao trazer a conta, diz para a senhora: - Então, é uma Coca-Cola e três línguas de veado.
Olhei para ele atónitamente e, confesso, meio encabulado. Não estava a perceber de como os bons modos se tornavam, tão de repente, numa marca de tão pouca cortesia num recinto de denotada fineza. Dei-me, um pouco mais reflectidamente, ao benefício da dúvida, não fosse ter mesmo consumido a senhora, as três línguas de veado. O que não deixava de ser estranho, para mim, que tal subtileza gastronómica se servisse num café. Mas como estou sempre a aprender, de cada vez que viajo, fiz por não me surpreender. Cairá por terra, a seguir e entretanto, tal esforço, ao notar a senhora, educadamente, a liquidar a conta. Mas, porque carga de água, num pequeno pires sem resíduos de molho algum e com uns restos do que me parecia ter sido um bolo, se dava como pagas línguas de veado?
Perguntei-me eu. Daí a pouco tempo e como resultado de acautelada investigação, se deu como confirmado, junto ao empregado, de que não eram as línguas as de tal animal, mas biscoitos. Sendo assim, restava-me uma outra curiosidade por satisfazer. A se estariam tais iguarias conotadas ao quadrúpede ou a certas pessoas a quem os nossos irmãos brasileiros costumam adjectivar. Não sendo a primeira como se veio a comprovar, pus-me a cogitar de que modo entenderiam os brasileiros as línguas de veado. Por sua vez, se pediriam os veados, no Brasil, os doces em questão e como entenderiam os mesmos tais línguas aqui?
É que não me esqueço de certa complicação, de que fui autor, no aeroporto de São Paulo, quando indaguei a um sujeito porque me estava a passar, á frente, na bicha, se não tinha estado na bicha. A confusão, até que se explicasse, foi, deveras, um problema quase diplomático. O drama esteve às portas de ser consumado devido a uma simples interpretação linguística entre pessoas falantes da mesma Língua. Sim, porque em Moçambique, bicha é o que é fila para os brasileiros. Mas, imagino eu um dilema maior que era o de pedir, num restaurante, para uma originalíssima senhora moçambicana, tal ementa:
Bebidas : Licor de merda, Vinho Periquita. Bifana no Pão: Caralhotas Comidas: Sopa de Grelos, Punhetas de Bacalhau. Sobremesa: Fatias Paridas
Ela olhar-me-ia, com toda a certeza, com um olhar indignado e depressa me deixaria sozinho à mesa, sem, ao menos, a oportunidade de poder explicar-lhe que tal ementa era típicamente portuguesa e não uma blasfémia em português. Portuguesa do Portugal de onde nos é oriunda a língua que falamos e nos entendemos, eu e ela, mesmo com as nossas diferenças étnicas e que nos permitem comunicar se não tivéssemos em comum o Português. E, porque, deste modo, também se traduz a lusófonia, esta palavra que qualquer dia dará o nome a uma qualquer iguaria, também, de igual modo, nos entendemos e vemos lusófonos em detalhes tão peculiarmente pequenos como o é este que relato e nos faz tão imensamente grandes. Grandes no sentido de que a Língua, acaba por nos trazer a mais valia incomensurável de podermos partilhar, com tolerância, os sentidos que a ela damos nas diferenças que somos inevitávelmente. Já o antevia Fernando Pessoa quando dizia que a sua Pátria era a sua Língua e nenhuma outra maneira de estar nos poderia responsabilizar melhor por ela e nem melhor nos poderíamos sentir nela.
jpt
(Fotografia de Fernando Macedo)
A síntese mais inteligente que até hoje li sobre a temática do Acordo Ortográfico, de leitura obrigatória para quem se interessa por esta (malfadada) matéria: "O Impossível Acordo, de António Guerreiro, publicado em 25.2.2012 no jornal Expresso. Com um breve historial da questão Guerreiro sublinha o volume das críticas realizadas (em tempo próprio) por vários dos mais importantes linguistas portugueses, assim permitindo ultrapassar a costumeira baixa argumentação de alguns linguistas de hoje pró-acordistas, particularmente no que toca à abstrusa crença de que a grafia não influencia a fonética - algo desde logo argumentado por vários dos referidos especialistas. E, mais do que tudo, Guerreiro tem o raro discernimento de explicitar as raízes ideológicas do documento, sistematicamente "naturalizado" pelos seus defensores, encontrando-as (como deveria ser óbvio) no ambiente "lusófono" finissecular, esse para tantos doloroso "luto colonial" português, para usar o apurado termo de Eduardo Lourenço.
"Na discussão do Acordo Ortográfico, além dos termos de uma estéril querela que se fica por questões de princípio, é possível perceber que por mais críticas que tenha suscitado, por mais que tenha sido desautorizado cientificamente, ele resistiu pela sua condição de projecto político. (...)
Assim, em várias e competentes instâncias, o AO foi desautorizado enquanto documento técnico-científico, considerado inepto e nefasto. Em sua defesa, porém, o mais que pudemos ler foram artigos de jornal, refugiados nas questões genéricas das supostas vantagens de um acordo, sem responderem aos argumentos dos críticos. É fácil perceber que a impermeabilidade à crítica e a impunidade do AO estavam garantidas pelo facto de se tratar de um instrumento político para servir a estratégia ideológica da lusofonia."
Insisto no que abaixo referi. É tempo de abandonar esse projecto político Acordo Ortográfico. Por razões especificamente linguísticas e culturais, de competência própria. Mas também porque passaram as décadas, mudou (ou deverá mudar) o país, necessário é largar a visão plana (e culturalista) do passado, desencerrar-se do império, pensar um futuro aberto, sem sonhar com a perenidade de velhas "áreas de influência". Assim heterogéneo, assim heterográfico. E é esse progresso que tanto custa aceitar aos incompetentes "progressistas" acordistas.
jpt
E-mail amigo faz-me chegar esta crónica de José Diogo Quintela sobre o tema do "macedato". Nunca um postal do ma-schamba teve tamanho eco, o que me faz perguntar se vale a pena intentar algo. Não só porque os postais que mais cuido passam despercebidos como, e ainda por cima, porque o objectivo deste nem se centrava em bater num responsável mas muito mais na tosca ideologia que o(s) ilumina. E essa passa praticamente incólume neste coro de gozo.
jpt
As colagens lusófonas de Ana Macedo são abordadas a partir dos 13 minutos desta edição do Governo Sombra (João Miguel Tavares, Pedro Mexia e Ricardo Araújo Pereira. Este último anuncia a sua intenção de trazer mais colagens a Moçambique. Feitas pelas suas filhas.
jpt
Uma bela entrevista de António Cabrita à revista brasileira "Pausa". Sobre ele próprio. Sobre poesia, poetas, cinema. A situação das áreas culturais em Moçambique e Portugal, etc. Tudo isto a propósito das suas frenéticas publicações (o Cabrita acaba de publicar três livros) em particular o romance "A Maldição de Ondina", publicado no Brasil.
Sublinhando esta recomendação para que se leia a entrevista aqui transcrevo a visão do António Cabrita sobre dois temas que têm sido recorrentes aqui no ma-schamba: a lusofonia e o acordo ortográfico.
Está muito bem o Cabrita.
O que você acha do acordo ortográfico e da chamada lusofonia.
O acordo não me ofende nem me arrefece. Como dizia o Deleuze há que gaguejar na língua para que a língua no seu próprio interior se torne bilingue, isto é, cito-o, o multilinguismo não é apenas a posse de vários sistemas mas antes de tudo a linha de fuga ou de variação que afecta cada sistema impedindo-o de ser homogéneo. Isto que sublinho é o que me importa no manejo de uma língua, é o que sempre foi feito por alguns e é o que continuará a ser feito, e isto não há acordo que o impeça. Agora, há o aspecto político da questão e aí é claro que o acordo existe para favorecer a indústria do livro brasileira, o resto são balelas.
Quanto à lusofonia manifesto reservas. Não sei como é no Brasil mas em Portugal fala-se em lusofonia como um efeito hipnótico que levaria logo a uma bacalhauzada entre os falantes de português. Para Moçambique é um termo controverso, associado ao neo-colonialismo. E de facto é preciso perguntar que sentido faz falar em «lusofonia» num país em que só oito por cento dos seus habitantes é que tem o português como língua mãe. Mesmo que o português seja a língua oficial, os códigos e as performances da língua aqui são distintas, verificando-se um crescendo de contaminações das línguas nativas e do inglês na textura do português, assim como a presença de deslizes semânticos que introduzem variações quer de significado, quer sintácticas, que tornam a sua tradução uma história de diferimento e não um rastro contínuo. Aparentemente falamos a mesma língua, mas os códigos e protocolos da língua e os valores dos seus significados são tão díspares que nos sentimos num perpétuo território estrangeiro, o qual está minado pelos equívocos e mal-entendidos com que a aparência de uma língua comum, transparente, tornou bélico o terreno. A lusofonia é uma cortina de fumo para que as embaixadas possam não falar entre si de coisas concretas, urgentes e necessárias. Com o álibi dessa suposta base identitária faz-se de conta que está tudo bem para não se investir em nenhum tipo de comprometimento sério.
É como Prémio Camões. Em 2001 fui ao Brasil, tinha acabado de lançar Inferno, que escrevi em parceria com a Maria Velho da Costa, a quem fora atribuído o prémio há 2 anos atrás. Fui a várias editoras brasileiras tentar vender esse e outros livros dela. Ninguém sabia quem ela era. O eco do Prémio Camões não tinha saído das embaixadas. É patético. Não entender a inocuidade disto é grave, desajustado e redutor. Por isso a lusofonia lembra-me a deselegância de estar a martirizar uma noiva, na véspera do casamento, falando-lhe obsessivamente do antigo namorado que ela faz tudo para esquecer.
O imaginário lusófono é como o sentimento da queda no Paraíso bíblico: há um misto de culpa, de rejeição e de tremenda atracção pela Eva. O aparente decoro da Eva não nos deve deixar impotentes, e convém voltar a fecundá-la, com a diferença de que agora pode ser ela a tomar as rédeas do jogo, tendo o papel activo na função. É preciso aceitar a troca das posições no leito para que a coisa volte a animar. Enquanto não se entender esta coisa primária, a lusofonia não passa da simulação das erecções de um anão ao espelho. O Eduardo Lourenço já disse tudo sobre esta matéria no seu devido tempo, mas como os políticos portugueses não têm mais nada a oferecer senão retórica agarram-se à miragem.
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Razões pessoais têm-me afastado do blog. Hoje por email e sms avisam-me que o Expresso e o DN ecoam os meus postais sobre Jorge Braga de Macedo (explicitamente aqui, implicitamente aqui ) e o contador sitemeter acusa um inusitado número de visitantes. Sobre isto um esclarecimento e um lamento.
O texto sobre JBM insere-se num abordagem ao actual ressurgimento lisboeta da ideia "lusofonia", da qual ele é paladino através do seu slogan "lusofonia global" e motriz através da sua aparente recuperação para pensar a política externa pelo actual governo. Entenda-se, a ideia não presta. Por mais que possa parecer sedutora a gente cultural e politicamente inepta. Ou seja, nada disto tem a ver com a recente colocação de JBM na EDP, a qual desconhecia quando escrevi aquele último postal, explícito.
E ainda o lamento. Os textos foram publicados e como qualquer outro deles sou responsável mas não proprietário. E como tal são ecoados por quem os queira ecoar. Acontece que chegam milhares de leitores via as ligações que Daniel Oliveira lhes fez, tanto no Expresso como no Arrastão. E isso incomoda, sinto-me como se estivesse com sarna. Não por razões ideológicas ou políticas. Mas porque esse bloguista é um canalha, um vil caluniador. Já em tempos aqui narrei da minha desilusão por não ter tido a coragem moral de lhe dar a sova que merece. O texto de Daniel Oliveira no Expresso é um monumento de hipocrisia, "É-me desconfortável falar da vida familiar de qualquer pessoa. Até porque odeio que falem da minha." diz. O verme, que não me conhece, cruzou Maputo acusando-me de actos etica, deontologica e, acima de tudo, intelectualmente inaceitáveis, o de criar barreiras aos meus colegas portugueses que querem trabalhar em Moçambique - para alguns isso poderá parecer pouco, pois para mim é acusação inaceitável -, intentando apoucar-me e prejudicar-me no meu meio, onde vivo, onde trabalho, onde me socorro. E fê-lo, ainda que diga não gostar de falar de família, apenas por torpes razões familiares, pois reproduzindo a ingratidão, a desonestidade e a perfídia de um seu cunhado, também ele bloguista, também ele antropólogo. Também ele assim.
Confesso que prefiro o amor paternal, mesmo que induzindo actos algo criticáveis, de Jorge Braga de Macedo a esta vilania, a este canalha, cheio de patois moralista mas imbuído da mera solidariedade de parentela.
Entretanto há milhares a ler aquilo. E os bandoleiros que com ele vão. Pobre gente.
jpt
Imediatamente abaixo falei de "nepotismos idiotas", referindo-me a uma execrável e indigente exposição, uma acção de propaganda disfarçada de "arte contemporânea" que aqui colheu o desagrado generalizado. Pela sua mediocridade e pelo seu conteúdo. Um trabalho, rasteiro, de Ana de Macedo.
Ora isto assim não vale nada. E já não tenho idade para meias palavras. O que se passa é que aquela "intervenção artística" foi apresentada em Maputo com o patrocínio do Instituto de Investigação Científica e Tropical. Aqui vivo há quinze anos, tenho acompanhado, primeiro profissionalmente e depois como amador, a vida cultural da cidade e nisso também as realizações chegadas de Portugal. Nunca esse Instituto havia patrocinado alguma intervenção artística. Até agora. Acontece que a autora do escolar trabalho, Ana de Macedo é filha de Jorge Braga de Macedo, presidente do referido IICT.
Acontece ainda que o ex-ministro ressurgiu na praça pública no último ano, primeiro como "coordenador" de um falhado projecto de "diplomacia económica" (os 4 grandes cérebros foram incapazes de conjugarem as extremas inteligências), depois como aventado presidente de um super-instituto público (qualquer coisa como o IAPMEI e o AICEP unificados, algo tramado para tramar Portas, acho), afinal, e pelo menos por enquanto, ressuscitado como comentador televisivo, dedicando-se a explicar o que fazer em termos de economia e finanças públicas. A explicar o presente e a aventar um futuro.
Em todos esses âmbitos convirá recordar - e não só pela gigantesca crise em que o país se deixou cair - que Jorge Braga de Macedo é um homem que nas suas funções públicas (estatais) faz favores à sua filha. Convirá lembrar isso para pesarmos bem o valor das suas palavras e a lisura dos seus procedimentos. E para nos lembrarmos de que o que o país precisa, também, é do fim dos nepotismos. Destes, idiotas. E também dos outros, mesmo que inteligentes.
Deselegante, este postal? Deselegante é gastar o dinheiro do Estado, mesmo que meros "amendoins", a pagar coisas às nossas queridas filhas, umas viagenzitas, umas estadias, um curriculozito, umas realizaçõezitas.
E deselegante é tanbém as estações televisivas chamarem esta gente (e pagar-lhes) para discutir o presente e o futuro do país. Pois é destes que temos que nos livrar. Dos papás e das filhotas. E do resto da família alargada.
jpt
Há algum tempo deixei aqui eco de uma conferência em Maputo dedicada à comunicação social em português, organizada pelo jornal "Sol", na qual foi vastamente abordada a noção de "lusofonia". Sobre isso exprimi o meu desconforto e desencanto (o que até desagradou a patrícios amigos ou conhecidos, distraídos quanto ao assunto, quero crer). Sei agora que o "Sol", avisadamente, abordará o assunto através de três artigos de opinião, a serem publicados nas três próximas edições, a primeira das quais hoje mesmo. De Nataniel Ngomane, Nelson Saúte e Perpétua Gonçalves, ao que julgo exactamente por essa ordem. Pela qualidade dos intervenientes, e também pelo espaçado da publicação, julgo que será um bom momento para aclarar algumas ideias sobre o assunto. Que é muito mais "preenchido" do que o mero "falar português" que alguns julgam.
A ver se lhes passa o rancor. E se nos deixamos, nós, portugueses, de verborreias e nepotismos idiotas. Que inibem. A compreensão dos contextos e a interacção.
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Um dos excelentes volumes que Manuela Ribeiro Sanches organizou e fez publicar na Livros Cotovia é a colectânea "Portugal não é um país pequeno. Contar o "império" na pós-colonialidade" (2006), 14 preciosos textos dedicados às narrativas coloniais portuguesas [assim mesmo, sem exagero, e dos quais gosto de salientar, com a injustiça do interesse próprio, os artigos de João Leal e de Harry West]. O volume é posfaciado, em jeito de "comentário", por Miguel Vale de Almeida [MVA] com um texto de grande actualidade.
Nele MVA utiliza o célebre episódio do "arrastão" acontecido a 10 de Junho de 2005 para dissecar o Portugal de então (de agora). A explosão do boato de um arrastão na praia de Carcavelos provocado por jovens negros, ditos "imigrantes de segunda ou terceira geração" (em sim mesmo uma expressão sintomática) oriundos de bairros periféricos da grande Lisboa, e que causou uma enorme comoção nacional, reacções abruptas na comunicação social, histeria securitária, manifestações da extrema-direita contra a imigração (e, em contra-corrente, veio mesmo a nomear o mais conhecido blog de esquerda do então crescente bloguismo português). Na realidade o arrastão não aconteceu, enquanto facto, foi um mal-entendido no local exponenciado pela ligação não-mediada (não demorada, direi) entre os cidadãos (seus telemóveis e computadores) e a imprensa. Nesse eixo de comunicação o rumor assumiu carácter constitutivo do real, e o arrastão aconteceu - não na praia de Carcavelos, como muito bem diz MVA, mas nas mentes e temores de inúmeros portugueses.
O autor retira deste acontecimento duas conclusões sobre as auto-representações de Portugal, por ele desnudadas:
a) o papel da imigração como delas constitutivo. Com efeito na endo-narrativa nacional ao Portugal colonial que "não era um país pequeno" [o volume leva como título a célebre palavra de ordem colonial "Portugal não é um país pequeno", cujo iconografia abaixo reproduzo], imperial, atrasado, anti-democrático, isolado e de emigração, e assim pequeno, sucedeu um Portugal póscolonial, "pequeno" na sua geografia, mas democrático, europeísta, desenvolvido e de imigração, e assim "grande" no seu cosmopolitismo. A transição emigração-imigração é assim uma dimensão crucial da representação da "grandeza" portuguesa, da perenidade desta acrescento eu. Pois ao pequeno Portugal de emigrantes sucedeu-se o grande Portugal de imigrantes [ainda que o autor lembre, já em 2006, o quão factualmente (numericamente) errada era esta ideia, dado o crescimento da emigração portuguesa ser notório];
b) por outro lado MVA frisa que o episódio do "arrastão" e o tom racialista, xenófobo e racista que o rumor assumiu, bem como o das reacções havidas, desnudou as contradições das características subjacentes ao velho discurso lusotropicalista (e lusófono) da inexistência de racismo na sociedade portuguesa, concepções assentes no escamotear das dimensões racialistas e racistas que as produziram em pleno regime colonial. Concepções de exclusão, temor e de crença numa superioridade que, como o episódio mostrou, subsistem na actualidade mesmo que menos explícitas nos discursos do quotidiano.
Nestes últimos dias não pude deixar de recordar este texto a propósito da polémica em torno da entrevista de Pedro Passos Coelho [ler aqui; sobre isso já escrevi 1, 2, 3, 4] em que o primeiro ministro terá mandado emigrar os professores desempregados. Esta interpretação da entrevista correu célere, provocando grande comoção nacional: o presidente corrigiu-o, o proto-candidato presidencial Marcelo Rebelo de Sousa criticou-o, a oposição em peso também, o sindicalismo bramou, enquanto alguns do seu círculo tentaram uma inábil fuga em frente, em particular Paulo Rangel, ou recuperam velhas declarações desse teor de responsáveis socialistas. Mas nada disso funciona, é apagar fogos com gasolina.
De súbito brotou uma onda de repulsa pelas palavras de PPC , na imprensa (entre inúmeros exemplos o institucional Expresso dá-lhe capa, a SIC realiza uma entrevista fazendo também intervir, em golpe de asa, questões associadas à "condição feminina") e bloguismo, nas fervilhantes redes sociais, nas conversas (até em Maputo). Coros de protestos surgiram por todo o lado, uma patética carta mandando o governo emigrar tem eco espantoso, a imprensa rejubila, os cartoons sucedem-se, académicos que tantas vezes ouvi protestar contra o excesso e falta de qualidade e de pertinência do ensino superior descentralizado (na multiplicidade distrital e na "universitarização" dos institutos politécnicos) e do privado (explicitamente considerados como produtores de professores lumpenizados) erguem-se, irados, acompanhando escritores, jornalistas e outros fazedores de opinião, e até o mundo de Salazar, aquele produtor do "salto", da emigração clandestina e miserável, é agitado como avatar dos objectivos deste governo, pelas teclas da velhíssima extrema-esquerda delinquente e reproduzida, em catadupa, pelos seus antigos adversários. Também na direita nacionalista se ouvem impropérios, e até já (pelo menos nos passos perdidos do facebook) apelos à expulsão dos imigrantes. Certo que a crise actual acicata os cidadãos contra o poder, e em particular o uso da palavra pública (hoje felizmente tão disseminada) dos sectores da oposição, mas a dimensão e os contornos deste episódio aparentam ultrapassar essas dimensões, (re)iluminando características centrais das representações dos portugueses sobre o seu país.
Na verdade PPC não disse o que se lhe aponta, tudo isto é um verdadeiro Emigrão. Não regresso em detalhe às suas declarações. Mas qualquer leitura desapaixonada poderá constatar que PPC anuncia o fim do ciclo emigratório para Angola [140 000 pessoas, ao que consta, e a esmagadora maioria na última década, após a morte de Jonas Savimbi], algo óbvio para quem viva em Maputo e constate aqui os patrícios regressados ou oriundos daquele país. E que apela a uma reconversão profissional dos cidadãos portugueses. Uma linha de pensamento inversa da que lhe atribuem. Mas o conteúdo efectivo das afirmações não é verdadeiramente importante pois, como muitos me têm afirmado, "não disse mas parece ter dito", denotando o quanto todo este processo ancora numa vontade interpretativa, de adesão ao rumor. De crença, de querer crer. O rumor social assumiu tal virulência que se torna realidade. Fenecerá agora com as festas natalícias e será, já menos potente, recuperado na guerrilha política subsequente.
Mas o que este Emigrão me traz são exactamente os dois pontos que MVA sublinhou no perspicaz texto a que acima aludi, estruturantes da representação dominante sobre Portugal e, como se nota agora, vigentes em contextos que - em parte - aparentam ser ideologicamente diversos. Mas assim bem mais unos do que apartados:
a) o lugar da e/imigração na narrativa actual da portugalidade. Nesta a ideia de uma "grandeza" (cosmopolita, desenvolmentista) de Portugal assenta no facto de ser receptor de mão-de-obra e não seu exportador. Mesmo que essa ideia não corresponda à realidade factual Face à crise financeira e económica actual o normal ascender da realidade da emigração, já duradoura, para a esfera pública, política, devasta a auto-representação (algo mistificada, sublinhe-se) portuguesa - e também por isso a conjugação na indignação da direita mais nacionalista com os sectores de esquerda, e mesmo a sua penetração em políticos ligados à área do poder. O drama deste Emigrão deriva da ideia de que Portugal se apequena, se descosmopolitiza neste processo. O aparente desvaler aos professores excedentários surge como a realidade desvalida do país e do seu futuro. A funda questão não é pois a da referência à emigração pelo poder político mas sim a da sua não elisão, dado o seu carácter poluente. Pois agora que de novo país emigrante como recuperar a "grandeza" nacional, vector considerado necessário na configuração simbólica?
b) a perenidade da visão lusocêntrica do real, a tal manipulação de um lusotropicalismo (actualizado em lusofonia). Com efeito as ditas "propostas" de emigração de professores desempregados para África não são discutidas na sua viabilidade política ou prática, nisso sobressaindo a ideia generalizada de que elas são possíveis e, até, desejadas alhures. Se por um lado isto recupera acriticamente a imagem colonial de uma sociedade portuguesa produtora de civilização alhures através da acção pedagógica (algo tão bem abordado no recente "Livros Brancos, Almas Negras. A "missão civilizadora" do colonialismo português, c. 1870-1930", de Miguel Bandeira Jerónimo, ICS, 2010), torna-se também óbvio que a esta recepção corresponde a ideia do "espaço plano", "afectivo" da lusofonia, o tal espaço lusotropical desprovido das rugas da conflitualidade colonial (e até actual). Mas este complexo da actual representação póscolonial portuguesa é ainda sublinhado pela introdução explícita das hierarquizações consideradas aceitáveis ("naturais"). E isso é cristalino quando discursos sobre a emigração de quadros elevados (inseridos em grandes empresas ou em esquemas multilaterais) não são questionados, incidindo a crítica apenas sobre a hipotética proposta de emigração de sectores não privilegiados. Que, como é óbvio, colocariam em causa a supremacia sociológica e económica da mão-de-obra portuguesa no amplexo lusófono.
Ou seja, tal como no caso do "arrastão" este "emigrão" demonstra bem as dimensões de hierarquização racial e socioeconómica internacionais (póscoloniais) que suportam a representação da portugalidade. E o seu, afinal, pouco cosmopolitismo.
Adenda: aqui fica a o célebre cartaz colonial do "Portugal não é um país pequeno" que dá título (e temática abrangente) à obra de organizada por Manuela Ribeiro Sanches.
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A propósito do "O regresso da lusofonia", um postal desagradado da última semana, ouvi alguns comentários algo desabonatórios. E até algumas simpáticas desilusões. E levei com um comentário que reduzia o texto a "rancor". Subjacente a isso está a homologia que se faz entre cidadão português e lusofonia, uma crença em que um tipo português não pode estar contra aquilo. Seja porque a entendem como sinónimo da língua portuguesa, seja porque a entendem como sinónimo dos interesses portugueses. É o pensamento "tapete da porta" (flat, no português mais erudito). E não me apetece analisar essa homologia, errada, que fazem. Mas, para os do rancor e os da desilusão, deixo duas ligações: a categoria "lusofonia" no arquivo do ma-schamba, que tem 108 (?!) entradas, e onde entre muita tralha poderão entender, se o quiserem, o que é o conteúdo do tal "rancor". E um velho texto, com dez anos, em registo não-bloguístico, que é a coisa que escrevi sobre a lusofonia como objecto histórico e social. Se tiverem paciência para o registo da escrita está aqui.
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Um amigo carregou-me, desafiou-me ["há chamussas (chamuças?), anda daí"] para uma conferência no Indy Village, "A comunicação social nas relações Portugal-Moçambique". Onde outro amigo falava. Ali mesclado com o poder vigente em Portugal. Erro meu, fui. Num local hoteleiro de um grupo económico português, uma conferência organizada por um jornal português, transmitida por uma televisão portuguesa, com um ex-ministro português e um ministro português como oradores. Era o que era. Posso, veterano nestas coisas, achar que há outras formas de apresentar projectos e discutir futuros, e de nisso fazer política externa. Outras formas mais competentes, entenda-se. E menos viradas para "dentro" (um "dentro" relativo, pois apenas serve para uns títulos da Lusa, a ocupar alguns fundos de jornal, e pouquíssima gente verá a RTP-África em Portugal). Na prática era um evento ritual.
2011. Os portugueses que falaram, supra-influentes, centrados na lusofonia. Pano para mangas, se lhe analisarmos o discurso. Fico transido, irrito-me, e acabo por meter a foice em seara alheia, sem garbo. Até amigos se irão desagradar com isso, pois para muitos que seguem mais distraídos, a "lusofonia" é igual a "falar português". Não é. É uma tresleitura da história, uma afirmação que presume de comunhão de interesses, de princípios e de valores, de objectivos entre Estados e sociedades. É, mais do que tudo, um projecto político.
O ministro português conseguirá dizer, culminando a sua inenarrável comunicação, "a RTP-África não tem nação". Às 22 horas poderia eu estar em casa a ver o telejornal português ..., valerá a pena discutir isto? Não sem antes referir, lapidar, que a RTP-África tem como valor máximo (não foi esta a expressão, mas equivale) a lusofonia. Assim como se esta seja coisa indiscutível, naturalizada. Em tempos chamava-se a isto "missão nacional", depois "ideologia do Estado". Afirmou ainda, ancorado na sua biografia (anunciando que cresceu em Angola) que através da língua portuguesa aprendeu, em criança, o "dialecto" quioco. Valerá a pena discutir isto? Um indivíduo que chega a ministro não tem, obrigatoriamente, que dominar linguística ou socioantropologia ou história colonial. Mas se vem falar destas coisas não deveria ter um adjunto que lhe organizasse o discurso, coligindo alguma informação sustentável? Para não provocar um esgar generalizado, que nem sequer compreende. E para poder, reflectindo, estruturar melhor o que pensa das relações actuais e futuras entre as sociedades.
Nuno Morais Sarmento, ali orador, apresentado como ex-ministro, homem simpático e educado, referiu a importância da lusofonia, como vector económico. Um discurso para proferir em casa. Como corolário do debate disse que o espaço de desenvolvimento, económico e político, fundamental dos países lusófonos é o espaço da lusofonia. Continua este tipo de afirmações, que não têm qualquer relação com a realidade, nem passada (nem sequer no período colonial as relações económicas portuguesas eram predominantemente com as colónias e o Brasil, caramba) nem presente, e que representam apenas uma total tresleitura da história e um empecilho nas relações actuais entre Estados e sociedades (pelos anti-corpos que criam e, acima de tudo, pelo enorme desconhecimento que indicam). Um discurso de aparência "natural", de conteúdos até por vezes verdadeiramente afectivos (como se interesse não interesseiro), mas que não só é falso como intenta moldar uma realidade que não se lhe ajusta. Morais Sarmento é um antigo político, jurista, tem por cá interesses profissionais e goza de muito boa fama entre os que o conhecem. Também ele não é historiador, nem tampouco historiador económico, nem politólogo (ou antropólogo, ou coisa quejanda), não tem obrigação de olhar analiticamente para o jargão que alguma elite política e alguma lumpen-intelectualidade portuguesa manipulam. Mas, também ele, podia-se aconselhar quando aceita falar em nome (ou suportando) a política do Estado português. E nisso afastar-se, um pouco que seja, dos meros slogans a la carte.
Nelson Saúte, ali falando como intelectual moçambicano e homem da comunicação social (assunto que, à excepção dele, ninguém realmente referiu, e que seria o realmente interessante), lá teve que saltar fora do comboio lusófono, referindo aquilo que normalmente aqui se diz, "sou bantófono". O interessante não é exactamente a sua alocução (Saúte, no mundo da gente das letras moçambicanas será, porventura, o mais culturalmente cosmopolita, como se pode entender lendo-lhe a poesia). O interessante é a imediata contra-reacção - várias pessoas me disseram (na tal chamussa) que "O Nelson estava a fazer política". E muito interessante isto. A "lusofonia" é um conceito (melhor dizendo, é uma noção, mas enfim isso é outra conversa) político, e criticam uma reacção política face a um conceito político. Porquê? Porque naturalizam a ideia lusófona, querem torná-la "lisa" (falar português) e disso partem para uma afirmação de princípios, algo ontológico. Isto é o grau zero da reflexão, da política. E uma muito má propaganda.
Atenção, assistimos a este regresso da "lusofonia" como valor central no discurso do Estado português - há que recordar que por meados da década passada o poder socialista tinha, finalmente, largado as loas à paupérrima noção (inclusivamente com uma presidente do Instituto Camões a explicitar isso). O novo poder trouxe novos protagonistas ao discurso público, e recuperou outros. A "lusofonia global" anda por aí. Estamos em 2011 e regressámos aos anos 90s socialistas. Do impensamento. Mas, acima de tudo, da impreparação. E, pior ainda, uma radical falta de cosmopolitismo. Uma pretensa elite portuguesa, agora (re)acampada no poder, que para pensar os desígnios para o futuro os encerra no antigo império, incapaz de dele se libertar. Não é um neo-colonialismo (como resmungam alguns), que não há esse programa na sociedade portuguesa. É muito pior. É o medo do futuro. Aberto.
Rodapé etnográfico: Depois daquilo, curto interregno na vida a sentir-me exactamente em 1999 quando as incultas e venais "pessoas de mão" de Jaime Gama (sim, os partidos não contam nisto, tal como o tempo que passa nada conta, nada lhes acrescenta) por aqui andavam, a tal breve chamussa (ou chamuça?) à volta da piscina do referido Indy Village. Não me nego. Conversa com colegas académicos, assunto Quelimane (que é assunto do dia) e assunto cimeira Guebuza-Dhlakama em Nampula (que é assunto do semestre), "parabenizando" vencedores apesar de neutral (na prática, por mais que custe às pessoas eu sou um suave pró-frelimista, burguês de Maputo). De repente olho em volta, procurando um rissol. Poucas dezenas de portugueses nos rodeiam. Todos, sem excepção, de casaco azul - é preciso conhecer a estação das chuvas de Maputo para me acompanhar no sorriso, de menosprezo feito, face às fardas. Mesmo naqueles, daqui, que nunca as usam.
Fardas lusófonas? Cabeças lusófonas?
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Adriano Moreira é um importante académico português, figura grande no que poderei chamar "pensamento lusófono" (e será nesse âmbito que foi escolhido como "Personalidade Lusófona do ano" por uma associação chamada Movimento Internacional Lusófono), corrente intelectual que muito me desagrada, pelo que amputa da história, pelo que cerceia o futuro, pelo que incompreende o presente e, nisso tudo, pelos medíocres que vai promovendo (entre os quais não incluo, e apenas o refiro para que fique explícito para leitores mais apressados ou incompetentes, o próprio Adriano Moreira).
A Adriano Moreira dizem-no, e ouço-o de locutores que me são próximos que dele foram alunos ou que com ele privaram, um homem de grande rectidão, intelectual e pessoal (aliás, os adjectivos que lhe associam são normalmente superlativos). Foi uma personagem algo peculiar do salazarismo tardio [convirá ler esta entrevista, por exemplo]. Há exactamente 50 anos surgiu como Ministro do Ultramar, cargo que exerceu durante 2 anos, tendo sido protagonista de importantes reformas que intentavam a (impossível) perenidade do sistema, e nesse âmbito é uma personagem importante da história colonial portuguesa tardia. A mim não me parece necessário estar a adjectivar esse sistema. Era colonial, e só um vício de pensamento nos pode impelir à necessidade, que é muito recorrente, de lhe aduzir outras características (ditatorial, exploratório, injusto, fascista, etc. Ou, noutras áreas muito menos analíticas, benéfico, civilizador, lusotropical, etc.). Era colonial, e penso que é suficiente dizê-lo assim para se entender o seu conteúdo sociológico, económico e político. Parece-me, e referindo-me ao período em que Adriano Moreira foi ministro, apenas necessário juntar-lhe outro epíteto, devastador. Era anacrónico. O tempo histórico que o contextualizou enquanto projecto tinha passado.
Posteriormente Adriano Moreira tornou-se figura importante na III República, no seio da democracia-cristã portuguesa, um pouco à imagem de Veiga Simão, outra figura do Estado Novo tardio que veio a ser proeminente, esse no contexto social-democrata. Constitutivo da democracia portuguesa. E sempre figura-grada da universidade portuguesa, em particular no ISCPS, uma instituição peculiar, como sabem as gentes das ciências sociais.
Agora a Universidade do Mindelo atribui-lhe o grau de doutor honoris causa. Alguma esquerda portuguesa indigna-se (o "indignismo" é a ideologia deste início de década), e recorda que Adriano Moreira foi o ministro que reabriu, no início das guerras de independência, o campo do Tarrafal. Não ocorre, nos postais bloguísticos, abordar questões interessantes, das quais me ocorrem de imediato um pequeno punhado: a autonomia universitária face à política, presente ou passada; ou, contrariamente (mas não paradoxalmente, face à praxis real) as profundas ligações entre as universidades e o "reino" político; ou o facto de várias instituições universitárias portuguesas o terem feito, e do Estado o ter condecorado ["nós" podemos homenagear o antigo ministro mas "eles" não, uma dicotomia espantosa, quando dirimida por universitários]; ou o que isto poderá reflectir, ainda hoje, sobre o estatuto tão peculiar das elites cabo-verdianas, seja no período colonial seja, muito mais difusamente, na actualidade "lusófona".
Ou ainda, e isso seria muito mais importante, reflectir sobre a História, sejam as contradições e os constrangimentos das acções em determinados momentos históricos, sejam as formas como os/alguns agentes históricos evoluem, nas suas práticas, nas suas concepções.
Nada disto é importante, para gente ligada à História, profissional ou afectivamente. Apenas o ... apenas.
Por fim, infelizmente Adriano Moreira tem uma paupérrima afirmação sobre o assunto da reabertura do campo prisional do Tarrafal, lembrando que reabriu com outro nome, reproduzindo, no fundo, a estratégia retórica então assumida. Dourar a própria vida é uma tendência quasi-universal. Mas enfrentá-la, convivê-la, seria um acto de honoris causa. Estou certo, no entanto, que a esmagadora maioria dos honoráveis tende ao doirar. Apoucando-se.
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