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"…cheguei a um acordo perfeito com o mundo: em troca do seu barulho dou-lhe o meu silêncio…" (R. Nassar)
Amanhã, quinta-feira, 20 de Setembro, às 18 horas, no Instituto Camões, Nelson Saúte falará sobre a poetisa Noémia de Sousa. Até lá ...
Nelson Saúte no A Sombra dos Palmares. E o bom de saber um livro de poesia tão rapidamente esgotado ... venha a reedição para mais leitores
"A Ilha de Moçambique Pela Voz dos Poetas", uma compilação de Nelson Saúte e Antonio Sopa (Edições 70, 1992). Uma bela producção, e com grande abrangência sobre a literatura dedicada à Ilha (do espantoso João dos Santos ou de Gaspar Correia até aos nossos - já aqueles, se em 1992? - dias). Com alguns registos de viajantes anglófonos, com poucos textos "populares", canções locais ditas anónimas pois o povo é anónimo, seja qual for o "folclore", entretanto já desanonimizadas. Impossivel de comprar por cá, presumo que também esgotado em Portugal. A pedir, pois, reedição. E se possível um complemento - coisas foram feitas evocando a Ilha, a edição de Virgílio de Lemos, obras de Eduardo White ou Adelino Timóteo, por exemplo. E, quem sabe, procurando mais ainda ecos exo-lusófonos de quem por lá passou. Estarão os compiladores de então disponíveis? Lerão esta provocação?
No Cidades Crónicas Nelson Saúte escreve a propósito do paiol de Malhazine.
O novo livro de poesia de Nelson Saúte, Maputo Blues (Ndjira), já aqui anunciado, e até prenunciado. Como sempre fiel aos seus totens locais, Craveirinha de quem foi cultor em vida e agora para lá dela, e Knopfli, de qual aqui foi um dos re-descobridores, década e tal após a partida do poeta. É, aliás, a súmula prefaciadora de Fátima Mendonça, cá decana dos estudos literários: "Quando Adrião Rodrigues definiu a poesia de José Craveirinha e de Rui Knopfli como o verso e anverso da mesma moeda, não podia prever que essa dualidade viria um dia a diluir-se numa nova poesia, produto de outro tempo histórico. Subsidiários, sem complexos, da herança poética dessas duas vozes maiores da poesia, os poemas reunidos em Maputo Blues exibem ostensivamente esse legado. Estão aqui reunidos o poema longo, introvertidamente knopfliano, e o poema breve quase aforismo de Craveirinha – a ingente tarefa da rosa / não reside no sorriso / no qual te ocultas / mas na tristeza que não revelas. Como estão reunidos a obsessiva e soturna introspecção, típica de Knopfli … e a fulgurante interpelação do mundo que consagrou Craveirinha …." (5)
Oscilo entre o apreço pelo lirismo, até entristecido, radicalmente individualizador mesmo (ou em especial) quando confrontado com o correr do mundo – e que tantos aqui, incompreendendo a personagem do autor, incompreendem e até negam, assim reduzindo os mecanismos de expressão poética à mera expressão do aparente quotidiano da pessoa poeta -, fugitivo às épicas ainda tão recorrentes, evocativo de um passado húmus de um eu e não de alguma outra construção, e o gosto pelo cosmopolitismo intrínseco, já material a tanto saudar do Viagem Profana (Marimbique, 2003), de leituras e audições a serem celebradas, explícita e implicitamente, de vivências descomplexadas, a serem anunciadas. Um cosmopolitismo local do Amo a solidão das viagens ( Ciber-epístola em versos) deste Eu inautêntico africano / moçambicano assumido (Tomatito), talvez o projecto aqui, e se sim tão necessário, tão a louvar. Tão urgente. Porque posso, aqui deixo
MARRABENTA PARA FANNY MPFUMO
ao Zé Flávio Teixeira
Fanny Mpfumo cantava I love you so
eu era menino e nem sabia o que era tindjombo:
- ó a va sati valomo! –
mas já dizia hodi nos quintais contíguos
do meu Bairro Indígena.
Unga tlhupheque nkata que ouvia na rádio
por sobre o móvel da sala
na casa da minha avó
nomeava todas as mulheres que derrubavam
à passagem os meus inocentes e desprevenidos anos
ali na varanda do Muchina.
O king ya marrabenta era suposto
conviver conosco todos os dias.
Também ouvíamos Elisa gomara saia
nos tempos em que os Djambo 70 conjuravam
e o destino dos meus pais não era só
os míticos bailes da cidade de caniço.
O mufana que eu era também gostava
maningue do Gonzana e de todo o conjunto João Domingos
Massoriana no palato daqueles tempos.
Algumas vezes ouvia o João Wate
e outros que a memória não acautelou.
O Alexandre Langa foi mais tarde
que me empolgou – Rosa Maria.
Tínhamos atravessado
para lá do asfalto e alcandorados estávamos
na Polana onde inaugurávamos a nossa condição
de habitantes de fogos suspensos,
alcançados mais tarde em obscuras escadas
disputadas por bidões de água
acartados do jardim Tunduro.
Minha avó falava naqueles velhos anos
do Artur Garrido, conterrâneo lá de Ressano Garcia.
Mais tarde vi Fanny Mpfumo no Scala
- não muitos anos depois no Estrela Vermelha –
marrabentando uma guitarra eléctrica
no frémito do seu amor por Georgina waka Nwamba.
E amanha, no Hotel Girassol (18 h.), o lancamento do "Maputo Blues" de Nelson Saute (Ndjira). Apresentacao de Joao Paulo Borges Coelho. Ao que julgo a entrada estara aberta, e estou crente que havera chamussas. Sera, pois, de aparecer.
Festival Cultural da Ilha de Moçambique: exposição-venda de artesanato.
Origem variada, dos Grandes Lagos (presença residente já referida aqui) à maconde de Nampula e, evidentemente, local. Destaco Hallu A Berta (antes Mustafa Juma), grande bordador de cofiós. Dele destaco
Hallu A Berta é também poeta, o maior letrista de Tufo da Ilha
Da sua extensíssima obra ocorre-me esta canção, feita para o grupo Beira-Mar há pelo menos década e meia, e que vem muito a propósito desta ocasião - sem que com isso queira apagar conflitos que estes eventos, e o turismo que há-de (há-de?) chegar, provocam e provocarão.
Zorrera phia zimphelia
Zinlompa pinadamo onkala etunia
Hinnho Beira-Mar nofurahia
Amaka zuwelani nihuku nalelo otikiniha makalelo
Echerehe ziniphwanhalé zinnithimaka mirima
Owá achulupale elapho zikhina
En'hipiti yotene enathithima
Nakhumaka olumbo
Nawaka mpaporo
Khumphwanha mwanaevela
Onemelale ny ekhantiero
Nhakumaka m´paporo
Khukela n'rikicho
Kiarowa nsarrero
Paketi awaka
Akela nipiloto
Aphiaka ekissirwa takhua
Apazeraka oweha elapo
Yanqueliha ekhantiero
Yossunkhulo wa morcado
(Eis o que é belo neste mundo
Eis o que um homem roga acontecer dia após dia
Nós de Beira-Mar gostamos imenso
A nossa alegria de hoje é incomparável, pela vinda destes
amigos de outros países
Toda a Ilha hoje está a abalar.
Naqueles tempos, tempos que já lá vão,quando vínhamos do continente
Lumbo, o nosso transporte principal era o paporo [rebocador]
Ao pisarmos a Ilha, avistávamos primeiramente as estatuetas
das muralhas florindo um brilhante candeeiro
Da Ilha para os vários locais viajávamos de riquixós
Quando o paquete adragava era guiado por um piloto, um
farol que piscava da ponta do Mercado Sancul)
[versão (muito) livre, sem identificação do seu autor, publicado em "A Ilha de Moçambique Pela Voz dos Poetas", compilação de Nelson Saúte e António Sopa (Lisboa, Edições 70, 1992). Aí publicada como anónima, e então assim a receberam os compiladores, como "canção popular", coisas do vero-velho olhar que anonimiza os chamados poetas "populares" enquanto eleva o nome de qualquer "poeta" burguês. Coisas de muitos lugares, não-só-daqui.]
Um regresso a este Apóstolo da Desgraça (D. Quixote, 1999), de Nelson Saúte. Pela prosa, sim. Mas também utilitário. Que em tempos que correm acontece necessidade de recuperar a figura do "intelectual", gente a pensar cosmopolita, maneira fina de dizer "pensar". Na prosa da ficção, na poesia da ficção. Gente que sabe estar o passado no futuro. Sem auto-paternalismos, falsos(?) encerramentos. Acantonamentos.
"Tenho trinta anos e passei a vida sem atender aos mitos que fundam a minha família. Agora sinto que tenho que aprender a ser." (20) "... na nossa tradição, ou nos traços do que dela sobra ..." (35) "Vocês que estudaram lá nas europas têm umas vidas sofisticadas. Nós não saímos deste canto nosso onde nos guardamos dentro da nossa inexistência. Ser ninguém não é vergonhoso. Não pedimos. Apenas inexistimos. Somos sombras em pessoas. Passeámos nas ruas com almas emprestadas. Não te encostes muito aqui aos velhos. Vai viver a tua vida" (56).
Chega-me às mãos oferta supreendente de preciosa. Uma agenda de 2005, isso do todos os anos, objecto utilitário sempre desprezado, usar e amachucar. Ainda para mais no agora, tempos do digital. Uma mera agenda?Nada disso, excelente Agenda a que os Caminhos de Ferro de Moçambique editam para este ano. Uma bela paginação a apresentar fotografias de Funcho (João Costa) sobre o mundo ferroviário moçambicano. Fotografias antes expostas como "Trilhos" na PhotoFesta 2004, e manda a justiça dizer que muitissimo mal expostas pelo autor, uma tristeza de desperdício pensei alto então.
Duas importantes edições D. Quixote, organizadas por Nelson Saúte: "As Mãos dos Pretos. Antologia do Conto Moçambicano" (2001) e "Nunca Mais é Sábado. Antologia de Poesia Moçambicana" (2004).
Panoramas muito completos, e legítimos, do conto do século XX em Moçambique, de Orlando Mendes a Orlando Muhlanga, e da poesia de XX e inícios de XXI, de Rui de Noronha à mais recente produção poética, mantendo ao fim o mito de Mutimati Barnabé João (António Quadros).
Antologias que juntam o interesse literário ao histórico-documental, e dizer isto não é desprimor estético. E que nelas encerram a vontade de problematização e mesclização do que é a "literatura moçambicana", processos em que Nelson Saúte, com Francisco Noa entre outros, foram e continuam a ser pioneiros. Aqui ainda discussão em aberto, por um lado já explícito pela relação que o património literário tem com a produção da imagem nacional. E por um outro lado, ainda quase-mudo, pelo relativo silêncio face à oratura, e articulação de ambas (mas a essa ainda irei antes do Natal).
Mas que estas considerações não assustem, isto são questões a propósito dos livros, nestes não estão os ensaios de tendência fastidiosa. Concisos e contextualizadores prefácios do organizador, e literatura.
Para além do mais são também livros ofertáveis em quadra, "ficam bem", e não os estou a desvalorizar, bem pelo contrário.
Livros objecto? Nada, livros para ler.
Muito ofertável será também, mas já muito raro, a anterior colectânea organizada por Fátima Mendonça e Nelson Saúte, "Antologia da Nova Poesia Moçambicana" (Associação dos Escritores Moçambicanos, 1988).