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"…cheguei a um acordo perfeito com o mundo: em troca do seu barulho dou-lhe o meu silêncio…" (R. Nassar)
(autoria de Pedro A. Manteiga)
Este "Toni" é a página de banda desenhada que integra a TVzine, a revista da programação da Tvcabo moçambicana, uma das poucas revistas do país.
O que chama a atenção para esta bd não será a sua reduzida qualidade estética. Enfim, é uma tentativa. O que o torna absurdo é a mensagem. Em 2005 a continuação de uma campanha contra o SIDA assente no apelo à abstinência sexual. Como a reprodução é má eis algumas das deixas do tal "Toni": "Vocês devem abster-se do sexo. São muito jovens e ..." ... "Não praticar relações sexuais é o único método seguro para evitar DTS HIV/SIDA e gravidez indesejada".
O Sida é uma praga, um drama terrível em Moçambique. As campanhas de sensibilização parecem falhar (parecem pois as percentagens de infectados continuam a aumentar. Mas que seria sem elas?). Nesta situação muitos procuram disseminar mensagens de sensibilização e mensagens de esperança. Mas não será já tempo de perceber quais as mensagens inúteis? E, pior, quais as mensagens contra-producentes?
Campanha pela abstinência sexual? Afirmar o preservativo como inseguro? Talvez inconsciência do desenhador, talvez ecos dos fundamentalismos cristãos. Mas a roçar o inaceitável. E a direcção da revista que diz?
Diz o estudo de agora que em 16,7% dos adultos. Aqui, na cidade grande, em 20%. Fico com o silêncio.
Dia de lembrar que perdi três alunos com a puta da doença. E do estúpido contra-natura que é perder assim os nossos mais novos.
Dia de lembrar tanta gente a dizer-me, anos a fio Moçambique dentro, que a doença não existe, "coisa dos brancos", "invenção para não termos filhos". E do até caústico "é preciso descascar a banana para a comer".
Dia de lembrar essa noite de distrito fronteiriço com um director local a dizer-me que por lá "entre 50% a 60% estão infectados", partilhando nós as cervejas quentes do barzeco local, entre as quase putas e seus homens. E da minha bebedeira final, ali aos bordos a imaginar-me entre zombies.
Dia de lembrar os sussurros sobre a ou b ou c ou d ou e ou ..., gente conhecida, por aí com a doença, a aguentar-se, a aguentar-se...
Dia de lembrar o que penso(amos), no dia-a-dia, quando passam esses tão mais magros.
Dia de lembrar os medicamentos que chegam em sigilo para as meninas-família, essas que também compram a pílula.
Dia de lembrar a palidez entre-whisky desse amigo acabado de saber os resultados do rastreio nos alunos dos liceus burgueses em Maputo.
Enfim, dia até de recuar a lembrar o Pifo, o primeiro tipo que vi com ela, apanhada nos meados dos 80s em Amsterdam, regressado ao bairro para morrer devagar, e a quem só me restava não o deixar ser o último a fumar o charro.
E dia, também, de lembrar a meia dúzia de "que se foda" de solteiro, fins de noite de imortal, que não haveria de ser daquela.
Dia de dizer que o resto é pó...
[Imagem roubada ao excelente Saude, SA]
Apontamento rápido (e muito pouco cuidado) a propósito do que disse no Vaticano sobre companhias farmacêuticas e a Sida em África. [Se quiser veja comentários anteriores no Aviz e no Valete Fratres]. A partir de Moçambique algumas questões:
1. Tal como noutros países africanos - exceptuando o referido bem-sucedido caso ugandês, de apelo à abstinência, “fidelidade” (odeio o termo, mas descreve), e “camisa-de-vénus” (acho óptimo o termo) apenas em última instância – as campanhas de prevenção falham e o Sida continua galopante.
Desconheço a realidade ugandesa. E será de estudá-la para saber como é que a mensagem passou, que contexto de divulgação e de recepção teve. E tentar reproduzir. Mas urge actuar, e não há nada pior do que estudos apressados para induzir à acção. Daí que...
As campanhas de prevenção falham, independentemente dos meios e métodos utilizados. Porque serão mal desenhadas é uma das razões, mas não pode ser a única.
2. Diz-se que a Igreja Católica é responsável. Se-lo-á em parte. Sou ateu mas nada anti-clerical, esclareço. Mas acho abominável o cabeça-na-areia em que ela se encerrou.
Mas há algo nesta discussão de muito eurocêntrico, melhor dizendo, catolicocêntrico. Aqui a maioria da população não é cristã. Professa as religiões dos espíritos ancestrais (às quais antes se chamava animismo, noto aqui para facilitar). 20% é islâmica. E os cerca de 30% de cristãos estão espalhados entre várias igrejas, estando as protestantes africanas em rápida expansão, atendendo entre outras coisas à sua superior capacidade sincrética com as religiões locais. Tal como o islamismo. E ainda (e aqui diferentemente do culto muçulmano) à sua reclamada capacidade em intervir directa e imediatamente nos destinos pessoais – daí a prevalência dos cultos no Espírito Santo, conceptualizado nas cosmologias locais como superior aos espíritos locais e portanto potência protectora dos ataques de espíritos ancestrais próprios e alheios, bem como dos constantes ataques dos indivíduos vivos e vizinhos (chamem-lhe feitiçaria para facilitar).
E, acima de tudo, porque oferecem protecção contra o omnipresente Sida, uma nova praga que exige uma protecção nova.
[Não é para aqui, mas acho que nestes decénios a grande revolução em África é a religiosa].
Daí que centrar a reflexão sobre o Sida na problemática do Vaticano é estar a discutir o Vaticano, não o Sida. Atacando-o ou defendendo-o, a partir de posições próprias. Porque a Igreja Católica é um dos elementos em campo, e quantas vezes não o mais audível. E porque mesmo quando presente a população católica catoliciza-se à sua maneira – o que todas as populações católicas o fizeram – relativizando a palavra da Igreja. E, importante, porque o clero no terreno também molda a sua mensagem muito mais do que a hierarquia o faz.
3. A prevenção falha. Encontrar razões para isso desespera quem as procura. À falta de melhor dizemo-las “culturais”. São-no também: eu encontrei do Niassa a Ressano Garcia (do norte a sul) a crença de que o Sida é apanhada exactamente pelo uso dos preservativos, em especial pelo contacto com o seu óleo. Estupidez? Mas o raciocínio provém da racionalidade empírica: pois se antes de chegarem os preservativos não havia Sida. Mais, o Sida é uma invenção dos brancos para acabar com os pretos, para os impedir de ter filhos, e assim tomar as terras. Absurdo? Talvez (atenção, em tempos também se falou da origem provir de uma fuga dos arsenais biológicos), mas se o branco sempre foi o agressor/conquistador? Ouvi a este propósito uma frase eloquente: “se os nosso avós fodiam assim e os nossos pais também fodiam assim, como vamos nós fazer?”
4. Razões sociais. A população, em particular rural - mas a urbana é ainda rural- precisa e quer muitos filhos (tal e qual a europeia até há algumas décadas, não esquecer). Porque a mortalidade é elevada e é preciso assegurar descendência. Porque filhos são mão-de-obra (retirem daqui o marxista “exploração” por favor). Porque filhos são alianças com os seus futuros sogros e parentes. Porque filhos são segurança na velhice, para seus pais e parentela (segurança social, não?). E, acima de tudo, porque é bom ter filhos. Sexo com preservativo é impedir a procriação, como é isso possível?
5. Mas então que sejam fiéis, dirão. Mas há a poligamia, que é tão ancorada como a nossa monogamia. Mas há o divórcio fácil, muito em particular no norte matrilinear ou no sul quando os casamentos não são lobolados (o lobolo é o pagamento à família da noiva – não é uma compra, é uma legitimação da relação, é tanto uma compra como o nosso dote era a compra do noivo). E o levirato e o sororato, em que viúvos ou viúvas casam com irmãs ou irmãos dos conjuges falecidos, assim continuando alianças, estatutos sociais e protecções mútuas. E há uma esperança de vida baixissima, que multiplica os viúvos em idade sexual muito activa. E há grandes deslocações populacionais bem como as migrações laborais (para as cidades, para a África do Sul – [e este é outro assunto, as actuais barreiras sul-africanas ao mineiro moçambicano, depois de tanta solidariedade]) que multiplicam a necessidade sexual e as hipóteses de posterior contaminação familiar. E há uma moral sexual (felizmente, apesar do Sida) bem mais aberta do que a tradicional euro-burguesa. E há a expansão da comercialização do sexo, até diferente da prostituição. Apanhei machambeiros de aldeias recônditas queixando-se de que agora as vizinhas, também machambeiras, lhes pedem 5 mil meticais por sexo (40 escudos, mas é dinheiro que se veja). Enfim, há uma série de factores para um sexo múltiplo, as quais não passam pela “infidelidade” nem pela “inconsciência”.
6. Há também o peso das Igrejas. Disse atrás que as igrejas cristãs defendem contra o destino, nele actuam. E também defendem do Sida. Vituperam o pecado. Os pastores invectivam o pecado, a infidelidade (que leva ao Sida), e os ambientes que a possibilitam, potenciam. Ambientes cujo pacote é o fumo, a bebida, o preservativo. A mensagem é não fumar, não beber, não usar preservativo, não ser infiel. Tudo é pecado, tudo isto é de renegar. – e aqui é espantoso, óbvio efeito dos preconceitos de quem faz as campanhas que estas igrejas não sejam integradas no esforço de prevenção, de molde a mudar um pouco a mensagem.
Será perceptível para um europeu (imerso em publicidade variada) o efeito contrário que campanhas de cartazes (out-doors, no português de Portugal) pelo preservativo têm? Pois se em tanto lugar (e tanto) os únicos cartazes publicitários que existem são os cigarros, a cerveja e os preservativos. E colocados nos mesmos sítios. Magnífico contra-senso, associar todos os símbolos do pecado (até a Coca-Cola ou a Sparletta poderão aparecer, os refrescos que também acompanham as noites pecaminosas).
7. E há o silêncio sobre a Sida, a vergonha. Há tempos um irmão de Samora Machel veio anunciar que estava a morrer de Sida (diz-se que influenciado por Graça Machel, aqui uma referência). Foi elogiado mas também muito criticado. Silêncio que começa a ser combatido, o último jornal Savana ocupa a capa com a fotografia de um entrevistado com o título “Sou seropositivo há dez anos”. Finalmente luta-se em público contra o grande inimigo: a invisibilidade do Sida. Pois durante anos não se via, dado que as pessoas morrem de outra coisa. Mas hoje, com mortos em quase todas as famílias, essa luta ainda que bem-vinda é até anacrónica, a invisibilidade pública do Sida não significa já uma invisibilidade privada. Mas ainda se reproduz, pelo medo, pela vergonha.
8. Volto ao princípio. A prevenção falhou. Com Vaticano ou sem Vaticano. Neste momento a única coisa a fazer, e de novo com Vaticano "pela fidelidade" ou sem o Vaticano, é espalhar os químicos. Criando ou reforçando as redes de saúde pública que permitam o seu acompanhamento, sem as quais tudo isso será inútil. E é decerto por Moçambique ter essa rede, rara em África ainda que tão frágil aos nossos olhos, que aqui se vão espalhar retrovirais.
9. E como a prevenção falhou e os químicos são a única forma de combate mais ou menos rápido há que os "mundializar", retirá-los dos monopólios de patente. E deixar de ler este assunto segundo os paradigmas da luta contra a Igreja (católica) ou a seu favor, ou contra os grandes grupos da indústria farmacêutica. Não porque sejam questões morais ou políticas, porque até as são. Mas acima de tudo porque essa é uma forma de pensar que neste caso é totalmente desligada da realidade. Devido à distância, talvez. Devido aos preconceitos, com toda a certeza.