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7

por jpt, em 05.09.04
Na discussão que dominou os blogs portugueses dos últimos dias li algo que não resisto a transcrever. Porque é elucidativo, um corolário das considerações anteriores: de que para se nascer se deve ter assegurado um conjunto de recursos e disponibilidades.

Atenção, acho um corolário. Não quero afirmar que todos os defensores do aborto ou do pró-escolha (o que é semanticamente diferente) pensem assim.

Encontrei esta afirmação num comentário a um “post” de um blog com imagens durissimas. Coloco a ligação, claro, mas não apelo a que as vão ver. Porque são duras e não são necessárias para pensar. Mas não impedem o pensar. Não estou a censurar o blog, apenas digo que são chocantes as imagens.


No Partículas Elementares li este comentário adverso: "Já agora, essas vidas eram conscientes? Preferias que tivessem crescido sem carinho nenhum e se calhar matassem alguem que te fosse querido num assalto? Ou que andasse por ai metido na droga porque não lhe deram a educação porque nunca foi querido. Ou fosse para um orfanato e viver uma vida infeliz (sim porque por muito carinho que depois lhe possam dar irá sempe carregar o estigma de ter sido abandonado, principalmente se for adoptado muito tarde." (é um comentário anónimo, infelizmente)

Um corolário, repito, e particularmente cru.

Mas, em minha opinião, é denotativo do que está no fundo desta concepção que considera necessário um quadro prévio de disponibilidades económico-afectivas para que esse “algo” tenha direito a nascer: um absoluto eugenismo.

[não há ponta de ironia no “algo”: é humano, é pessoa, é projecto, é embrião/feto? Alma nunca lha reconhecerei, personalidade social ainda não, consciência duvido muito, dor não faço ideia; “projecto” subentende projectista, que não entrevejo. Fico com o “algo” neutral, uma “possibilidade” de vida]

Dizer eugenismo é forçado? Não. Nesta concepção têm direito à vida aqueles aos quais se reservam determinadas capacidades e dos quais se esperarão determinadas características (comportamentais, donde sociais).

Se isto não é eugenia, o que é a eugenia?

publicado às 10:13

6.2.

por jpt, em 05.09.04
Outras sociedades históricas (e não digo todas porque não o posso empiricamente comprovar) usam e usaram práticas abortivas como mecanismos de controle de natalidade. Controle global e controle individual da reprodução. Ligados a concepções sobre os recursos existentes, gerais e os disponíveis em cada caso particular.

Também é (ou foi) recorrente a prática do infanticídio. Como forma de controle da reprodução legítima, ligada a concepções de descendência legal. Como efeito de concepções simbólicas e/ou de saúde/normalidade [em algumas sociedades africanas o infanticídio de albinos e/ou gémeos, p.ex.].

O infanticídio horroriza-nos. Mas, se não formos anacrónicos, poderemos entendê-lo (também) como prática de controle em sociedades onde a concepção de pessoa, ou de início do percurso da pessoa social, é algo diverso.

Mesmo entre nós ainda não há muitas décadas se baptizava as crianças, se lhes dava nome, personalidade social, apenas após aquele ano em que elas provavam poder medrar. Vingavam.

Em quantas sociedades as recém-nascidos não são "chorados", ou seja, não são carpidos, não são ainda pessoa social, a sociedade não cumpre luto (claro que são chorados por pais e parentes, mas isso é outra dimensão).

Ligeiro exemplo: onde vivo posso perguntar a quem acabou de ter um filho, "então que nome tem?" que a resposta será "vamos ver", ou seja ainda há-de ser pessoa, ainda há que escolher (ou ser escolhida) o laço com os antepassados [lá está ele com o "exótico" dirá o mais imbecil dos visitantes, que os há decerto; não, apenas o "igual", com outro requebro, mas isso entenderão os outros visitantes]

Este argumento apenas para salientar, não é apanágio da sociedade ocidental, portuguesa, esta vertigem de controle da natalidade, nem esta manipulação estratégica dos corpos das mulheres (porque é disso que se trata, da manipulação social dos corpos das mulheres, ainda que sob ideologia individualista, onerando-as dos custos morais ainda para mais).

É fenómeno recorrente. O que será novidade é o facto de se estabelecer em sociedades de opulência. Sim, coloquei o termo que pensei, "opulência" não está ao correr da tecla.

publicado às 10:11

6.1.

por jpt, em 05.09.04
Insisto na citação que o Nuno Guerreiro faz do texto do rabino Abraão Assor:

"Há certas ocasiões em que as razões que as levam a esta decisão são de carácter económico, porque o casal, ou a pessoa, considera que não tem os meios necessários para manter a criança que iria nascer, tomando em conta as exigentes necessidades que a nossa sociedade impõe aos seus membros."

É similar ao que Eduardo Nogueira Pinto escreve, ainda que este opinando em sentido inverso (e, integrando alguma ironia caústica que, em meu entender, algo desvaloriza o texto, mas não o seu argumento):

"Quem nasce deve nascer com dignidade. Este tipo de argumento, que pressupõe sempre por parte de quem o invoca que a dignidade está ligada ao conforto físico e material, é, quanto a mim, o mais perigoso de todos. Se se considerar que apenas se deve tutelar a vida ou expectativa de vida daqueles que podem e vão nascer saudáveis, prósperos, com quarto, cama, tecto, mesada, limpos, bonitos, fortes, novos, a rir, com perspectivas de carreira, com perspectivas de ter o que comer, daqueles que não vão dar trabalho, ou mais trabalho, ou muito mais trabalho, daqueles que não vão pesar no orçamento, na lista do supermercado, que não correm riscos de ir parar à casa pia ou a uma qualquer sarjeta, ou ser vendidos, ou ser mortos à pancada, que não vão sofrer, ter dor, ou medo, daqueles que obrigatoriamente vão ter que ser felizes, então está bem - defenda-se a liberdade de quem os carrega na barriga em definir quem vai ser feliz e a liberdade de, prevendo a sua infelicidade, abortar. Se não, se se considerar que a dignidade é algo que se tem pelo simples facto de existir, esse argumento já não vale."

Em ambos os textos vemos explícito o que surge sistematicamente nos defensores do “direito à escolha”. A procriação é aqui vista como algo social (portanto que não diz respeito exclusivamente ao indivíduo-mãe e, quiçá, ao indivíduo-pai), e essa “socialização” da pater/maternidade implica um conjunto de expectativas (sociais): que haja um conjunto de recursos, melhor dizendo, de disponibilidades económico-afectivas para que o nascimento seja “legítimo”.

“Legítimo” é palavra forte? Então use-se “socialmente desejável”.

Estamos, parece-me óbvio, num domínio de pensamento balizado por um forte materialismo a montante e por um psicologismo (pouco teorizado?) a jusante.

publicado às 10:09

6

por jpt, em 05.09.04
Há muita gente e muita organização que defende a possibilidade ou o direito (os termos são diferentes e significam coisas algo diferentes) de abortar.

Mas poucos o fundamentam coerentemente. Como se houvesse um mal original que poluísse a noção do que defendem.

Não li nada tão explícito, ponderado, tolerante, tão certeiro como isto:

"Por motivos diferentes, muitas mulheres optam por interromper a gravidez, abortando o feto que têm em seu ventre. Há certas ocasiões em que as razões que as levam a esta decisão são de carácter económico, porque o casal, ou a pessoa, considera que não tem os meios necessários para manter a criança que iria nascer, tomando em conta as exigentes necessidades que a nossa sociedade impõe aos seus membros. Outras pessoas optam pelo aborto porque consideram que emocionalmente não podem enfrentar todas as implicações que significa trazer um ser humano a este mundo. Certas sociedades modernas estimulam o controlo da natalidade por considerarem que não podem solucionar os problemas que um aumento de população representa. Um dos métodos de controlo é o aborto.

Toda a mulher deve poder decidir por si própria o que deseja fazer com o seu corpo. O Talmude afirma: “Úbar yérej imó”, que significa que o feto faz parte do corpo da mulher e por isso carece de individualidade própria
."

O último parágrafo tem um valor extremo, como num particular contexto teológico se conceptualiza a relação mulher / feto. E, portanto, como se conceptualiza este último.

Aceitando esta concepção ou não a aceitando, ela não deixa de ter esse estatuto. A de um particular contexto cultural/religioso/teológico (escolha-se). Alto estatuto, digo. Mas particular.

Portanto dificilmente reclamável como certeiro porque universal por quem se levanta contra outros (pre)conceitos religiosos/teológicos/culturais particulares.

[Quem exige um pensamento laico não pode andar à cata de uma concepção religiosa particular que caiba na sua concepção - e isto não se refere obviamente ao autor do blog em causa, que a cada post que passa mais prezo]

Já o parágrafo primeiro descreve um conjunto de razões para abortar. Reconhecíveis para as sociedades que conhecemos. Todas derivadas de e ancoradas em valores sociais. Nenhuma restrita à relação mulher/feto e sua concepção.

publicado às 10:07

5

por jpt, em 05.09.04
Um blog é um diário. Aos bocados. Pouco interessante. Pouco arrumado. Até estúpido. E, visto depois, envergonhável.

A arrumação, o sistema, o texto bem acabado, a consistência, a coerência. Belos, belas.

Narcisices, acima de tudo

publicado às 10:06

4

por jpt, em 05.09.04

Não acho a vida humana inviolável. Sobre ser ateu escrevi, o que me impediria de a sacralizar. Nem proporia uma sociedade actual desprovida de meios de defesa armada.Repugna-me a pena de morte. Mas mesmo esse princípio, dos poucos que sigo, aceito violar. Porquê não abater Eichmann? Beria? Pol Pot? Apenas por princípio.

 

Mas não sou fundamentalista. Aos meus valores vivo-os incoerentemente.

publicado às 09:55

3

por jpt, em 05.09.04
Tenho muito respeito por quem conduz o seu raciocínio e a sua acção por princípios elevados. Mas quem cai nestas contradições (dramáticas) perde a razão. Ainda que se mantenha com razões.

Cá no meu entender ficaria bem a quem tanto se contradiz baixar o tom de voz, mantendo-a claro está.

publicado às 09:54

2

por jpt, em 05.09.04
Há pessoas e organizações que negam a hipótese de interromper a gravidez, explicitam ou implicitam a vida humana como inviolável.

Vi e li gente que recusa tais interrupções em qualquer altura. Vi outros que a consideram inaceitável após determinado momento da gestação.

Outros, furibundos de certezas, gritam-nos de hipócritas. Não os vejo assim. Apenas incoerentes. Pois não encontro as mesmas pessoas exigindo, com igual veemência, a proibição de outras formas de possível violação da vida humana.

Admitem a existência de forças armadas. Admitem condições atenuantes em legítima defesa para os cidadãos. Admitem que as forças policiais estejam armadas e que, em condições extremas, tirem a vida.

Dir-se-á que o objecto da violação é diverso. Um agente inimigo é diverso de uma vida embrionária / ou projecto de vida (não quero nem posso argumentar este ponto médico/filosófico/religioso, tudo matérias que me ultrapassam). Concordo.

Mas se é um princípio entendido como tão fundamental e defensável de forma tão arreigada, então coerentemente tem que ser assumido em qualquer circunstância.

publicado às 09:53

1

por jpt, em 05.09.04

Agora que a discussão sobre o aborto e seus veículos promocionais amainou gostarei de aqui colocar uns pontos, não sistematizados, que para tais arrumações me faltam saber e certezas

publicado às 09:52

...

por jpt, em 02.09.04

Notas de leitura (sobre o aborto). Sobre a questão do aborto li, e muito gostei, três textos de sentidos diferentes: no Rua da Judiaria, no Projecto e no Acidental. Posições, ideias e sentimentos diferentes. E todos discutíveis. Que melhor elogio? Sobre o assunto também tresli muita tralha.

publicado às 09:16


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