Insisto na citação que o
Nuno Guerreiro faz do texto do rabino Abraão Assor:
"Há certas ocasiões em que as razões que as levam a esta decisão são de carácter económico, porque o casal, ou a pessoa, considera que não tem os meios necessários para manter a criança que iria nascer, tomando em conta as exigentes necessidades que a nossa sociedade impõe aos seus membros."
É similar ao que
Eduardo Nogueira Pinto escreve, ainda que este opinando em sentido inverso (e, integrando alguma ironia caústica que, em meu entender, algo desvaloriza o texto, mas não o seu argumento):
"Quem nasce deve nascer com dignidade. Este tipo de argumento, que pressupõe sempre por parte de quem o invoca que a dignidade está ligada ao conforto físico e material, é, quanto a mim, o mais perigoso de todos. Se se considerar que apenas se deve tutelar a vida ou expectativa de vida daqueles que podem e vão nascer saudáveis, prósperos, com quarto, cama, tecto, mesada, limpos, bonitos, fortes, novos, a rir, com perspectivas de carreira, com perspectivas de ter o que comer, daqueles que não vão dar trabalho, ou mais trabalho, ou muito mais trabalho, daqueles que não vão pesar no orçamento, na lista do supermercado, que não correm riscos de ir parar à casa pia ou a uma qualquer sarjeta, ou ser vendidos, ou ser mortos à pancada, que não vão sofrer, ter dor, ou medo, daqueles que obrigatoriamente vão ter que ser felizes, então está bem - defenda-se a liberdade de quem os carrega na barriga em definir quem vai ser feliz e a liberdade de, prevendo a sua infelicidade, abortar. Se não, se se considerar que a dignidade é algo que se tem pelo simples facto de existir, esse argumento já não vale."
Em ambos os textos vemos explícito o que surge sistematicamente nos defensores do “direito à escolha”. A procriação é aqui vista como algo social (portanto que não diz respeito exclusivamente ao indivíduo-mãe e, quiçá, ao indivíduo-pai), e essa “socialização” da pater/maternidade implica um conjunto de expectativas (sociais): que haja um conjunto de recursos, melhor dizendo, de disponibilidades económico-afectivas para que o nascimento seja “legítimo”.
“Legítimo” é palavra forte? Então use-se “socialmente desejável”.
Estamos, parece-me óbvio, num domínio de pensamento balizado por um forte materialismo a montante e por um psicologismo (pouco teorizado?) a jusante.