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"…cheguei a um acordo perfeito com o mundo: em troca do seu barulho dou-lhe o meu silêncio…" (R. Nassar)
António Cabrita, que percebe de literatura, toma a defesa do "Cidade dos Espelhos, de João Paulo Borges Coelho, face a uma crítica negativa que o livro teve.
Eu não percebo de literatura, não é o meu "métier", sou só um leitor preguiçoso. E como tal não meto teclado em seara alheia. Só posso dizer que ao ler este livro do vizinho ficou-me acima de tudo isto, um paradoxo que passo a citar aos nacos, sem que com isso me possam acusar de truncar. Apenas para torcer o nariz a quem diga que "não há história":
"...este futuro que não deu em nada." (50)
"Caia deixa-se rodear de mimos. Os mimos que a ternura tece são bem mais sólidos ... Cedo ou tarde acabam por romper-se, é certo, mas para que tal aconteça é necessário muito mais do que um mero raio de sol.
A velha não sabe ainda se lhe toque, Caia não sabe se suportará ser tocado. Acaba por ser mais forte do que ela: estica as mãos, complexas folhas rendilhadas de nervuras, e tenta tocar os cabelos (porquê, sempre primeiro os cabelos?) ...
De olhos fechados, Caia deixa-se percorrer como se fosse um pequeno animal. Quando não pode mais, inventa uma súbita preocupação e corre à janela a espreitar a rua lá em baixo ...
A velha já mal consegue ver ,já mal consegue ver ou cheirar. Tudo acabará dependendo destas mãos tortas, as únicas que tem. Mãos que ainda vão segregando a teia com que prende e traz as coisas até si. (37)
Avança até as mãos trémulas, horríveis para o comprovar. Caia recua. (...)
A velha fica um tempo a olhá-lo e a sorrir. Afinal de contas é o seu neto, o seu único neto. Depois, passa outro tempo ainda em volta dele, nos trabalhos de tecer uma teia que o prenda (...) Fica a olhar o neto e a tentar chorar para celebrar o facto de estar tão viva ainda. Mas pelo menos há dez anos que lhe secaram as lágrimas, de uma vez que teve uma forte e continuada razão para chorar. Agora o mais que consegue é esta sequência de feios soluços enquanto a chuva miudinha traça arabescos verticais no vidro da janela. (38)
"No quarto, também nada conseguem achar. Há, é certo, um volume esguio imerso em despropositada serenidade, enredado em milhares de fios. Nada mais, apenas os fios da ternura de uma avó." (39)
O futuro, afinal, deu isto ... É, para mim, o desconforto que sinto diante do livro, a desvalorização (en passant?) desta magnitude.
Quanto ao resto, as críticas, as impressões. É uma história de amor. Tem história, e é essa. Bonita. De ler, e de se ver.
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Aqui fica a capa do "Cidade dos Espelhos", de João Paulo Borges Coelho, feita pelo Luís Moreira (que não vejo para aí há vinte anos). E a ligação ao texto "Cidade Sitiada", que o António Cabrita fez para apresentar o livro, há poucos dias aqui em Maputo.
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Passei a última noite eleitoral na minha antiga casa, o "flat" da Magumbwe, agora do JVA, entre-amigos e seus conhecidos. Durante horas bebericando excessivas quantidades de vinho tinto, que a alegria do ansiado Até Que Enfim! se sobrepôs aos receios face aos efeitos dos taninos. Lá para o fim das garrafas na tv surge o vencedor, nosso novo Primeiro (a ver se nos surpreende, se as coisas melhoram ...) e discursa, feliz. É um momento em que estamos todos felizes, note-se, com excepção dos suevos. De repente o homem, e os apaniguados, arrancam na cantoria do hino. "Porra", penso eu (silenciosamente, há senhoras na sala), "foda-se" respondo-me eu, "gente de merda" triplico eu.
Não muito longe, assim como que ao virar da esquina, num sofá da 24 de Julho, o António Cabrita, que acredito que então estivesse bem menos festivo do que eu, também resmungou:
Que se lixem os taninos e seus efeitos, tenho que ir beber uma garrafita com ele. Um tinto português. Mas sem hinos ...
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Amanhã, sexta-feira, às 18 horas, na Livraria Minerva, o António Cabrita faz o lançamento público do seu último livro de poesia "Não se Emenda, a Chuva". Como bónus apresentará dois dos seus livros de ficção que a Minerva importou, o "Cegueira de Rios" e o "Tormentas de Mandrake e de Tintin no Congo".
A este propósito o Cabrita faz no seu Raposas a Sul uma breve memória das suas aventuras e desventuras de autor - onde não se esquece de referir as aldrabices já sofridas por renomados editores e o roubo que (n)os correios de Moçambique fizeram aos seus exemplares de "Não se emenda, a chuva" - o Cabrita aqui a confirmar-nos o estereótipo do poeta como ingénuo desligado do real, pois só um "poeta" (desses) é que ainda confia nos Correios de Moçambique.
Enfim, ao fim do dia, amanhã, na Minerva. Espero que as chamussas sejam agradáveis.
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O Patraquim veio lançar mais um livro "Enganações de Boca" (Alcance Editores, crónicas publicadas em "Angolé", "África Lusófona" e "Savana", organizadas pelo Luís Cezerillo). Saio das aulas nocturnas, o regime pós-laboral, e chego-me ao Camões atrasado para o lançamento do livro. Ali, para mim casa já tão antiga, lembro-me de encomendar o "Lindenburg Blues" só para distribuir mas mais ainda lembro-me de ser novo, cabelo preto, e lembro-me muito do Ricardo Rangel, que me fez amigo e eu agradeci, aquela ironia ríspida da ternura, naquela mesma porta, desencantado no sorriso tão aberto, encantador, aflorando mas invectivando o "mesmismo", isto de sermos sempre os mesmos nos sítios e nos dias. E não vale a pena continuar porque quando me lembro do Rangel e do "mesmismo" dele fico sempre cheio das penas de não sermos os mesmos mas apenas menos, das minhas penas pelos que já foram, partidos, para longe ou para sempre ou, alguns, para o eles-mesmos, isto da meia-idade entristecida, encerrados pois nós já sem aquele qualquer coisa, enzima ou merda parecida, que me alegrou nos anos idos e talvez aos outros. E sinto as chagas disso.
O António Cabrita apresentou, antes de eu chegar, não sei que ímpias truculências terá o seu carinho universalista botado. Algumas caras conhecidas desde aqueles que para mim já são "tempos". Meia dúzia de amigos, daqueles que me fazem afivelar o sorriso e, até, a animação, gasta e falsa como a das putas cansadas. A Alcance Editores, muito ágil no panorama aqui, não deu chamussas mas bebi whiskies, e invejaram-mos. Que maior sucesso pode ter um homem, isto de lhe invejarem o que tem no copo? Pois dei-me a esse triunfo, porque não?
Coisas de um mero livro, que ainda não li, cruzei páginas e gostei, e é bom, sinal de uma juventude passada, gostarmos das coisas antes de as saborearmos, vasculharmos, isto do suspender, protelar ou até vetar o resmungo.
[António Cabrita, (meu mano) Ídasse, Luís Carlos Patraquim, o grande Naíta Ussene, sempre bem acompanhado]
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O António Cabrita publica o réquiem do Sporting. E ainda por cima dedica-me a peça. Nem sei que diga, de tão alquebrado que ando.
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Bem me parecia que o António Cabrita andava com ganas disso. E eis que se torna verdade. Algures no Maputo acima retratado está ele. Agora a blogar no seu novíssimo Raposas a Sul.
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Possuído pelo demo, ou outra qualquer instância, o António Cabrita não hesita no botar em papel. Ou assim me parece. Eu a chapinhar, à beira da piscina, roendo o enésimo entrecosto, e ele a aparecer com mais algo, daquilo que lhe vem da mente. E agora é um "Para que servem os Elevadores? e outras indagações literárias" (algumas dedicadas à literatura moçambicana, para des-gosto de alguns "jornalistas culturais" nacionalistas mui ciosos do seu terreno), agrupamento que me consta estar prestes a publicar na Alcance Editores. São quinze textos encimados por um que se quer prólogo, dito "A sós com os meus botões". E que abaixo transcrevo, aperitivo (texto longo como se long drink) para quando o livro sair ... Então aqui fica o monólogo do AC.
A SÓS COM OS MEUS BOTÕES
«Examino detidamente o meu projecto; é irrealizável!», Brecht.
Um mau filme, uma má comédia, uma má exposição de quadros, despertam sempre a atenção da imprensa, um livro quase nunca.
Meu deus, por que não me fizeste ortopedista?
Quem, ao abotoar-se, se engana na primeira casa, não chega com os botões à orla da roupa: quem o previne é Goethe, e a asserção serve para a vida e a literatura. Automatiza-se uma atenção periférica neste gesto mínimo e quase impessoal. Mas quem não a praticar inverte a ordem dos botões e dará de imediato a impressão de um desleixado desempenho – e então de nada lhe servirá praguejar contra a distracção, na realidade não estava treinado para abotoar à primeira, en passant, os botões.
Se uma coisa tão simples exige uma habilitação, imagine-se a literatura.
Por isso, para continuarmos com o poeta alemão, também nós cremos que se os amadores da literatura soubessem de antemão que atravessavam um arame de equilibrista sem rede por baixo muitos deles retirariam os fracos argumentos com que se fazem ao caminho. O que lhes falta é compreender a dimensão do perigo, que ser funâmbulo dá muito trabalho e rende pouco.
Ademais, reparemos no que ensina sobre esta arte um dos fundadores da cibernética, W. Ross Ashby: pode o funâmbulo manter-se o equilíbrio se faz sem parar movimentos irregulares com o seu varão. Se alguém quiser aperfeiçoar o estilo do equilibrista impedindo estas flutuações desordenadas e exigindo que o varão se mantenha fixo, o funâmbulo perderia de imediato o equilíbrio e cairia.
Sem desequilíbrio não há equilíbrio: isto não se ensina, tem que se experimentar. O que leva tempo e não admite a camuflagem, o aparato da auto-promoção, é preciso estar absolutamente a sós com os nossos botões.
Primeiro exercício: abotoar os botões da camisa enquanto se atravessa o arame.
Abro o livro de Gustav Jung, Commentaire sur le Mystère de la Fleur d’Or, convencido de que vou finalmente levá-lo de vencida noite fora e encontro-o sublinhado, anotado, até mais de meio. Não me recordo de uma frase do livro, do menor indício de o ter manuseado nem das gravuras, inúmeras, que ilustram o texto, rigorosamente de nada, embora a letra seja a minha e o tipo de marcações idem. Illumina-se-me então a distinção que Jules Lagneau faz entre dois momentos diferentes no acto de conhecer: a verdade apercebida e a verdade reconhecida. Só esta última engendra a memória.
O que é espantoso na literatura é sua capacidade para manter as suas fronteiras flutuantes. Esta evasão permanente ao circunscrito premedita simétricos esforços conceptuais para a delimitar, com o cortejo de equívocos concomitantes. Mesmo em gente que tantos contributos deu para o entendimento da expressão literária.
Por exemplo, que, 80 anos depois do livro de Mikhail Bakthin sobre Dostoievski ter iluminado os novos parâmetros polifónicos do romance – para o exegeta, o traço dialógico é parte palpável e constitutiva da linguagem, sendo todo o signo inescapavelmente duplo, na medida em que exprime simultaneamente dois sujeitos e duas visões do mundo –, este continue a ser maioritariamente regido pela pauta narrativa do século XIX, é patético. Oitenta por cento dos romances actuais são metástases da novela oitocentista e milhões de leitores, muitos deles formados em cursos de literatura, estão-lhe apegados como a galinha de Kirshner ao seu círculo de giz (1). Neste aspecto, é lastimável que o legado de Bakthin não tenha sido divulgado mais cedo e saído do foro universitário, o que nos teria poupado a leitura ingénua, estereotipada, que o mercado impõe aos regimes narrativos – e mesmo quando não há mercado, como em Moçambique, tal não nos alivia da canga, pois que oferecem as livrarias de Maputo para além de best-sellers internacionais?
Por outro lado, pesa que Bakthin não tenha encontrado Pessoa e não se tenham conhecido, apesar de contemporâneos. O enriquecedor arsenal teórico de Bakthin teria certamente sido nutrido pelo dispositivo dos heterónimos e, sobretudo, o russo perceberia então que grande parte da poesia que interessa no século XX não tem o «carácter monológico» que ele lhe atribui.
É indubitável: a homogeneização a que tende o mercado faz realçar os paradoxos duma cultura devotada ao narcisismo.
Neste estado de coisas, di-lo Michel Freitag, um sociólogo, sucedeu ao indivíduo inner-direct (com periscópio interior) o indivíduo other directed (o que navega com radar). O que gera um novo tipo de tensão e segrega, a prazo, uma incomodidade latente. Repare-se: basta uma breve perturbação posicional no radarpara essa desconectação momentânea exumar uma impensada e temerosa interioridade, que é o que se produz quando um contexto se transforma em conteúdo e um frisson nos leva à dúvida: estarei na onda?
Quanto mais narciso mais simétrica ou secretamente paranóico, assustadiço. Passar de um medo não assumido à fobia ou ao niilismo é apenas uma questão de grau, mormente se tivermos em conta que o mercado habitou os seus consumidores a diluir quaisquer manifestações inesperadas em relação àquilo que a sua agenda delibera fornecer.
Paralelamente, o mercado empurra-nos para a situação que Keats mencionava numa carta para o seu irmão, e a que ele chamava a “capacidade negativa”: «I mean Negative Capability, that is when a man is capable of being an uncertainties, mysteries, doubts, without any irritable reaching after fact and reason».
Hoje, a maior parte das pessoas/dos leitores manifesta uma enorme capacidade para, em nome de um controle travestido em indolência ou indecisão, pôr de lado aquilo que simplesmente não quer ver, ouvir, ou pensar.
Experimentar territórios não conhecidos é que nunca. Apesar dos mapas rebentarem pelas costuras, da sensação claustrofóbica, da veemência com que - desde o Fédon, de Sócrates – os mais avisados advertem quanto à ambiguidade das transparências, do plano óptico à comunicação verbal, que enxameia sombras onde elas se querem escondidas, a maior parte das pessoas – saturadas de “informação” -, deixou de conseguir distinguir o trigo do joio, e à partida, não quer ver, ouvir ou pensar.
Escolher tornou-se um fardo, algo francamente inapetecível.
Proliferam os que escrevem na mira de afogar o peixe. Começam a rarear os que levam o sangue à guelra do peixe.
Se alguém debita: “Adalberto viu Rita pela primeira vez na esplanada” e continua nessa toada, sei de imediato que estou diante de um burocrata do aparo com hábitos de voyeurismo. Porque nada está implicado naquela frase, nem o narrador, nem as personagens entre si; nada se desencadeia. Eis-nos em arabescos sobre a congelada pista dum mundo reificado.
Se, ao invés, o relato se inicia desta forma: ”Os seios dela olharam argutamente para ele”, o escritor cola-nos diante de uma relação, de algo que se pôs em movimento e envolve ambas as personagens, sem a intermediação distanciada do narrador. E a frase imprime, além disso, uma aceleração narrativa: a primeira hipótese exige mais dez linhas antes de se chegar ao ponto (o telos), nesta hipótese parte-se do ponto.
Não querer entender isto equivale à pretensão de ignorar três séculos de conquistas processuais no que à expressão escrita diz respeito. É muita arrogância para tão pouco sumo.
Mas que fazer se o leitor comum se satisfaz com o pequeno suborno da preguiça em detrimento do jogo lúdico que lhe exige activar a inteligência no acto da leitura? E que dizer se à primeira descrição se associa um registo «realista», tão prenhe da ilusão da objectividade (um mito positivista) que é uso manter-se em épocas de conformismo?
Contudo, ao inverso do que parece a frase acaba por nada comunicar e a sua famigerada mensagem é tão vaga como a abstenção do narrador, que aí não mete prego ou estopa. Encontraram-se na esplanada, e so what? Que se passa em seguida, quais as motivações das personagens, que as vai unir ou separar, etc? Foi tudo adiado, a mensagem patina no vazio, ou antes, processa uma procastinação.
Pelo contrário, a segunda hipótese labora um acto de economia narrativa: as motivações das personagens imbricam-se na forma da frase, tornam necessária essa expressão e não outra, e inclusive, de forma implícita, a frase até nos fala da temporalidade da acção, pois se fosse Inverno os escultóricos peitos da rapariga estariam tapados por sobretudos e cachecóis e não teriam o efeito devastador que aí se adivinham, provocando mudanças na vida das personagens. Adoptando uma sinédoque, tomando a parte (os seios) pelo todo (a Gisela, para lhe dar um nome), numa frase menos vulgar, comunicamos afinal muitíssimo mais, em intensidade, e de chofre.
Como se vê, que me desculpem os desatentos, não estávamos a falar de seios – ainda que seja exaltante a sugestão de Alexandre O'Neill de que pela manhã nos deveriam servir seios em vez de pãezinhos quentes – mas de procedimentos narrativos.
Já uma dúzia de vezes me apontaram hibiscos e uma dúzia de vezes os esqueci. E só me volta a palavra, se os vejo a atapetar um muro, e exclamo, oh, hibiscos, não me posso esquecer!
Entretanto, há cinco anos que pergunto a todos os meus conhecidos como se chama o pássaro – que ouvi em todas as casas que até agora ocupei, três, o que dá a medida da sua penetração em Maputo - cujo canto nocturno lembra um bater de canas e o arbusto alto como uma árvore, presente em tantas vivendas, que se polvilha de elegantes flores amarelas tão aparentadas a tubas, e invariavelmente recebo de volta o mais invariável silêncio. Ninguém sabe. Do arbusto já alguém me mencionou que era de origem japonesa. Quanto ao nome é que tem sido debalde a minha insistência.
Terá isto importância, o facto de centenas de pessoas da classe média alta não saberem nomear as coisas, a flora, os seres vivos que estabelecem a relação do sujeito com o meio ambiente em que vive? Parece-me grave quando é sintomático de um modo deficitário de relacionamento com o espaço que nos rodeia e torna abstracta a dimensão do existente. Como é que nos sensibilizamos com algo de que não sabemos o nome?
Imaginemos que não tínhamos a palavra «paixão» e não sabíamos nem definir o seu tipo de entusiasmo nem precisar o seu endereço. Confundiríamos então a paixão com todo o tipo de entusiasmo e o fã do futebol daria a mesma importância ao élan que sentia momentaneamente pelo jogo à inclinação sentida por uma rapariga destinada a ser o amor de sua vida, trocando assim as prioridades e as posições relativas de cada uma dessas afecções. A intensidade de um breve jogo (o 5 a 0 do Bercelona-Real Madrid ) podia sobrepor-se à intensidade de longa duração de um sentimento pois não dispúnhamos da palavra-conceito que fizesse a destrinça. Do mesmo modo, uma deficiente relação com a linguagem não nos permitirá compreender que moral e ética são coisas diferentes, ainda que pareçam idênticas, e inteirarmo-nos das subtilezas em que o universo dos homens e da linguagem nos enreda.
Outro exemplo das subtilezas em que a linguagem baralha o pensamento preguiçoso, a diferença entre código e axioma. À primeira vista parecem sinónimos, mas o axioma é aquilo que se faz e aquilo que se desfaz: um dia leva-se as mulheres a saírem de casa para se emanciparem, uns dias depois desencorajam-se as mulheres de trabalhar. O axioma pode ser modificado. É o que fez a força do capitalismo. O que fez a desgraça do socialismo é que, pelo contrário, se regia pelos códigos, o que é uma conduta entronizada em lei e que depois se pensa ser natural quando é convencionada. O código resvala facilmente para o dogma. Esta distinção, importantíssima para perceber a capacidade de regeneração dum sistema e a falência de outro foi lançada aos olhos dos marxistas por Deleuze e Guattari, mas estes continuaram insensíveis à pequena nuance que faz toda a diferença e caíram. Enchiam a boca com infra-estruturas e supra-estruturas mas não eram sensíveis à linguagem e aos novos problemas que esta a todo o momento faz entrever.
Mas não se esgota aqui a importância de alargar o léxico e de aprender palavras novas. O que se passa é que nós aprendemos as palavras em cardume. Os cardumes também se verificam no mundo das Palavras.
Os linguistas chamam a isso uma família semântica, mas é um nome tão feio que é melhor ficar pela palavra cardume; um cardume onde há um peixe principal (o significado-mãe), que é vermelho, e onde os outros peixes (os seus filhotes) têm gradações do vermelho ao amarelo (conforme a confiança que pomos no seu significado).
A palavra Amor, por exemplo, tem muitos filhotes: carinho, paixão, afecto, desejo, felicidade, desilusão, união, casamento, adultério, filiação, filho, pai, etc.
O valor que a gente dá à palavra Amor depende da nossa experiência e por isso a mesma palavra é tão diferente para cada um de nós.
Uma rapariga muito apaixonada por um rapaz que a engana e tem outra acha que o Amor tem o sabor do vinagre.
O menino que se sente acarinhado e acompanhado pela família e é correspondido pela sua primeira namorada acha que a palavra Amor é um espelho muito limpo, que reflecte as cores exactas de tudo, enquanto para a rapariga desiludida a mesma palavra é um espelho partido, com tosse e sujo de pó.
Vemos aqui como aquilo que sentimos, as nossas emoções, podem dar diferentes significados às palavras. E também percebemos como as Palavras-Mãe, como Amor, funcionam como telescópios sobre as suas Palavras-Filhotes. Ampliando ou diminuindo as coisas que sentimos sobre elas.
Mas o que vale para o Amor vale também para algumas palavras que aprendemos a considerar como coisas adquiridas e que hoje vale a pena questionar: o binómio Esquerda/Direita na política ou a palavra Tradição. Vale a pena batermos no oco destas palavras, a ver o que têm lá dentro.
«O Outono oxidava a cidade e os seus parques»: um verso de Angel Gonzalez. Tão simples, tão esplêndido e verdadeiro, tão isento dos brilhos que põem em contra-luz metade dos poemas actuais. A ciência esteve na escolha do verbo.
A morte do capitão Cook, no Hawai, em 14 de Fevereiro de 1779, dá-me que pensar. Para os hawaianos a divindade estava invariavelmente ligada à figura do estrangeiro e ao espaço exterior. O capitão Cook, cuja chegada à ilha coincidia com os ritos anuais do deus local Lono, foi tomado por um avatar deste. E assim foi tratado durante vários dias. Que desfrute! Mas como no Hawai uma divindade tal não se torna a não ser pelo sacrifício, Cook foi morto para consagrar o elo dos crentes com a divindade. Claro que Cook não estava informado de nada disto. E na realidade não havia modo de se safar da profecia – só denegando-se como Deus. O que seria o mesmo que ofendê-los, assinando a sua sentença de morte. Em qualquer das circunstância estava frito: era o único que no palco não sabia qual era o seu papel.
Mas isto faz-nos compreender também, conclui o antropólogo que me conta a história, como o outro é sempre neutralizado pela mediação da cultura, pelo que queremos ver nele.
Sensação incómoda que já sentia na pele, após cinco anos de África. Eles só querem encontrar em mim o que se lhes aplica. Nunca me encontro a nu, em relação, a nascer para o acto, mas enquadrado no esquema que montaram para me assimilar. Até ao momento em que decidirem sacrificar-me?
Regularmente peguntam-me porque não se assiste a uma maior desenvoltura na expressão literária moçambicana, entregue à teimosia quixotesca e individual de uma dezena de criadores. Um mercado onde o livro não circula estrangula à partida o diálogo necessário ao repto. Trezentos livros, em média, vendidos por edição e a ausência de crítica literária não auspiciam melhores dias. Mas quero adiantar duas razões para que o marasmo se auto-reproduza: 65% de analfabetização (escuso de comentar a iliteracia) e aquilo que Auden diagnosticava num artigo e que passo a citar: «A inteligência só funciona quando o animal não tem medo. Uma atmosfera de amor e confiança é essencial».
Auden foi um dos expoentes da poesia mundial no século XX, e um modelo de equilíbrio e equidade entre as vanguardas e a tradição. Um homem que sabia do que falava, dotado de uma gestão da inteligência que nunca perdia o contacto com o sensível e o vivido, e por isso mais capaz de farejar prontamente em qualquer tecido social o que poderia fragilizar a disseminação da inteligência. Auden respondeu eficazmente à pergunta que repetidamente me fazem.
O coração é o que em nós não suporta a fivela do mundo.
Nem o sol nem a noite se podem olhar fixamente. Sequer as costas se escrutinam fixamente sem risco de ruptura muscular. É preciso um ângulo de viés, um velamento, o reflexo. Que se drapeje a luz e a sombra se satisfaça numa fenda.
Urge por conseguinte achar na palavra o local da incisão, a caligrafia do lume, antes que o vento encontre a sombra que por ele espera em Samarcanda.
Uma vez, quando era editor, houve um amigo que me propôs um romance que se propunha retratar gota a gota o deslizamento de uma consciência para a loucura. O meu amigo era psiquiatra e queria descrever essa passagem de forma gradual, graficamente, dir-se-ia, tal como a mudança de olhar do protagonista sobre o mundo que o rodeava. No seu afã descritivo, era um romance aborrecidíssimo, que poderia ter um certo interesse clínico mas resultava mal como coisa literária. Para lhe explicar porque rejeitava o livro fi-lo ler um conto de Cortázar onde um funcionário público (a mesma situação profissional da personagem do livro do meu amigo), agoniado pela mesma vida absolutamente «boring» e alienada (um enquadramento equivalente), à terceira linha, ao espelho onde todos os dias se escanhoa para se pôr apresentável para o serviço, vomita o seu primeiro coelho. Daí para a frente o homem vomita várias gerações de coelhos.
O meu amigo apresentava paulatinamente, como um morrinha, o problema, num inventário de razões e de gestos que faziam da narrativa um torresmo, Cortázar coloca-nos velozmente diante do problema e atalha, sem uma explicação, num dilúvio que decapita todas as causalidades. Num navegávamos numa água inquinada, numa neblina sem fim à vista, com outro, o inesperado da situação metia-nos (ao leitor) dentro da barca sacudida por um mar revolto. Não há dúvidas sobre qual das duas narrativas, como leitores, preferiríamos.
Corolariamente, não são os “efeitos de realidade” o que mais nos prende numa narrativa mas o que perturba a realidade e, rapidamente, lhe introduz um novo ponto de vista. E nunca devíamos esquecer (maleita que não despega) que o nosso inconsciente não distingue entre os factos e o que imaginamos sobre eles; o que devia há muito estar interiorizado contra as falácias de qualquer entorpecimento naturalista.
Jules Laforgue: «Método, método, que queres de mim? Bem sabes que comi do fruto do inconsciente.»
Entretanto, para além das qualidades rítmicas e prosódicas, ou da originalidade da trama, adiantemos uma outra janela para a aferição do quid literário: tal como acontece na poesia, um bom romance, um bom conto, etc., é aquele em que por voltas que demos à frase se constata que não há uma palavra que aí consigamos substituir com vantagem; não há um sinónimo que aí caiba. O que Northrop Fry corrobora: «Em todas as estruturas verbais literárias, a orientação definitiva da significação é interna».
Peguemos em Setentrião de João Paulo Borges Coelho, por exemplo, e tente-se substituir uma palavra por sinónimo, uma expressão por outra: o parágrafo inteiro desfazer-se-ia, as palavras aí, mais do que servirem a função, estão engatadas. A língua parece galvanizada pela corrente de um inexaurível fluido que a resgata da opacidade. E não há nada a fazer, onde quer que se coloque o escopro não se acha uma brecha, uma desafinação, superfície oca: a pancada não pode senão ressaltar. Nestes livros, todas as palavras, como acontece com as notas musicais na Sinfonia Eroica, de Beethoven (di-lo Leonardo Bernstein), são as únicas e necessárias ao desenvolvimento daquela pauta. Uma palavra diferente e o romance seria outro.
Diga-se que o mesmo se verifica em Passos em Volta, de Herberto Hélder, em Nome de Guerra, de Almada Negreiros, em Todo o Nome do Mundo, de José Amaro Dionísio, em Maina Mendes ou Casas Pardas de Maria Velho da Costa, em Ualalapi, de Ungulani Ba Ka Khosa, em Na Tua Face, de Vergílio Ferreira, em Jerusalém, de Gonçalo M. Tavares, em Ambulância, de Manuel da Silva Ramos, em Um Copo de Cólera, de Raduan Nassar, entre muitos. Curiosamente, nenhum destes livros é estudado nas escolas, pelo menos em Portugal e Moçambique
Ao invés, a minha filha adolescente, que nas aulas tenta sobreviver ao aprendizado de figuras como a prolepse e a prosopopeia e que numa semana estuda a metonímia e noutra se amanha com a personificação, em vez de ser convidada a participar em vivas discussões acerca do que falam as obras (2), vê-se coagida pela pressão do mercado, que as escolas não sacodem, a ler livros de género, programados para o formato juvenil. Em vez de se confrontarem com Melville, Dickens, Mark Twain, Kafka, Paul Auster, os adolescentes são induzidos a ler livros em que infelizmente, por mais engenhosas que sejam as tramas, a linguagem se apresenta desmotivada - i.é, qualquer bom escritor pegaria naquelas “informações” e acharia uma forma mais rápida, eficaz e expressiva de as fazer passar, visto que, como no grosso dos best-sellers, nestas aventuras qualquer palavra se pode substituir por outra.
Não sei como pode ela apanhar o gosto pela literatura em livros onde, em nome da pedagogia, as palavras estão desvalorizadas e são moedas gastas, onde já não se vê a efígie.
Só vejo um meio de minimizar os estragos: é pegar em alguns contos de Jorge Luís Borges, ou de Conrad, e levá-la a fazer cópias, de modo a que ela sinta o exacto valor de uma palavra na frase; se ela estiver com idade para isso, induzi-la a copiar O Relatório sobre Cegos, do Sabato.
Eis um exercício de que não se sai indemne e pelo qual se percebe que a literatura é uma experiência vital e não um mero entretenimento para consumidores de informação; e há a hipótese dos seus efeitos sobrevoarem a alergia para se converterem num amor à literatura.
«A poesia é um dos destinos da palavra», regista Bachelard. Por isso é e será imorredoura enquanto houver linguagem. Minimizar a poesia, querer reduzi-la à irrelevância, expõe na palavra a sua sombra em carne viva. Porque só a poesia cura a palavra e lhe dá ventilação. Sem a poesia, a palavra é um quarto carcomido pelo bolor, onde não chega a luz. A palavra tende a fossilizar, a poesia age como o emoliente que restitui a mobilidade às suas articulações.
A décima segunda página é o ancoradouro ideal para ceder ao imperativo de citar Walter Benjamin, numa das suas mais famosas proposições: «Todo o grande acto estético e criador repousa sobre um fundo de barbárie». Esta frase tem pelo menos três significados: a) é preciso romper as conveniências gramaticais para se firmar o novo; b) por vezes a violência implanta as suas regras e o esquecimento no sítio das ruínas; c) a maneira mais eficiente de não dizer nada (a barbárie denega a reciprocidade) é a de comer, luxuosamente, pela calada.
Eis uma invejável habilidade que às vezes se encontra por estes lados, uma técnica voluptuosa de iludir dificuldades e trabalhos: comendo pela calada. Contudo, a literatura não admite subterfúgios, levezas, frescuras. A literatura é um acto de disciplina e exige um interminável trabalho de espaldar, uma correcção sem descanso e permanente leitura. Daí que seja contra as argúcias e mentiras da “ingenuidade” que este livro se apresenta.
É sabido, a ignorância nunca gosta de nada que a obrigue a olhar uma segunda vez para a página. A poetisa russa Marina Tsvietaieva explica o mecanismo: «Não amar uma obra (…) é não a reconhecer: não reconhecer nela o já conhecido. (…) A primeira causa é a falta de preparação para ela. A gente do campo, quando se encontra na cidade, demora muito a apreciar os nossos pratos. Tal como as crianças – recusam os novos sabores. Viram a cabeça espontaneamente. Não vejo nada (neste quadro) e por isso não quero olhá-lo – e para o ver é preciso olhá-lo, para descobrir algo nele – há que olhá-lo bastante tempo. Esperança equívoco do olho habituado a ver à primeira vista…».
Ora, na literatura, uma das mais labirinticas metrópoles do mundo, somos invariavelmente leigos, camponeses. Não há modo de escapar a esta condição, cada obra nova interpela-nos, desautoriza-nos, come-nos as papas na barriga, mostra como o nosso paladar não estava preparado. E o nosso primeiro dever consiste em afastar o fantasma renitente que no mais secreto de nós insiste em ordenar não proves esse prato. Afastemos a prudência e entreguemo-nos aos sabores inesperados – eis um desiquilíbrio momentâneo que a prazo nos capacitará para a arte do funâmbulo.
Viver não é preciso, navegar é preciso, ensina-nos a canção.
Confesso que nunca gostei de escrever sobre literatura, fi-lo sempre em sacrifício, porque tinha de ser ou a pedido de um amigo. Nem boto palavra do palanque académico, sou simplesmente um leitor voraz (ainda que pouco sistemático) e um escritor que ama as palavras e o seu ofício e, em Moçambique, não partilhar o pouco que sei seria sinal de uma soberba em que me não reconheço.
Ficam para um outro volume textos mais alentados sobre Mia Couto, Borges Coelho, Ba Ka Khosa (todos inéditos), e outros narradores, mas havia que abrir uma primeira janela antes que a casa ganhasse bolor. E esta primeira janela incide na praia da poesia.
Oitenta por cento do livro respeita a autores moçambicanos, o mais são as minhas prospecções no mar da poesia, mas que mantive no corpo do livro porque contêm informações que julgo úteis ao amador de poesia em Moçambique.
Foi assim este livro extraído a-conta-gotas (ao ritmo de artigos, de nótulas do meu diário, ou de prefácios) - espero bem que seja mais rápido a ler.
E haja paciência, afinal estamos em terra onde nem sempre é líquida a utilidade de saber para que servem os elevadores.
Às quartas e sextas, de manhã, dou consultas de ortopedia – é favor inscreverem-se.
jpt
Antonio Cabrita reincide no dignificar este pobre pouco-pouco com as suas ascensoes poeticas, que tanto me honram, prazenteiramente. Agora sai o primeiro capitulo das Memorias de um Peixe-Boi (do qual, das quais, retiro ja um "a minha vida capotou a baixas velocidades" que me surge com um je-ne-sais-quoi que me soa familiar).
[caption id="attachment_21821" align="aligncenter" width="221" caption="o perigo aproxima-se"]METAMORFOSEDe todo me convinha, ter sidoguarda das pimentas de el-reiDom Manuel de Portugale que uma alma nédia e fértila tal reminiscência me catapultasse.Porque como sói dizer-se a memóriaque não tem um ponto de miraperde-se na ideia que uma moscafaz de um pombo, oh lá láum porta-aviões japonês. Maseis-me de bruços, um pasteldiante do professor de tangoque em três braçadas vencequatro piscinas, e cismandonesta partilha de uma quadrículade água entre um esbirro basco(bronzeia-se em off, o ranhoso)e um tuga nos recantos ociososdo Hotel Andalucia, em Maputo,constato que a minha vida capotoua baixas velocidades. Porqueuma destas noites soergo-mesem pressa, repetia o meu avôHenrique, a quem ferrou a emboliaantes de qualquer desforço.Em que enfermidade comeceia aceitar o mundo, interrogo-mena braçada, e em enviesadoalarme ouço o clamor das crianças.É lastimavel o laço que a ternurame tramou, o mais ímpio suborno.Réstia de cicatriz, descosidado que tão profusamente me abraça,também eu, prometo, volvereinum cão sarnento em quemninguém se queira assoar. Eenquanto vacilo na estratégiao chouriço da Jade enfia-mea prótese na glote. Uma batalhaperdida, reflicto, não desfiguraa grandeza, e acendendo-se-meem candelabro o naturalde peixe-boi, passo a crawl.in Memórias de Um Peixe, I
O Antonio Cabrita aniversariou, ate a ele isso acontece, aquilo do caminhar para vetusto. E referiu-se ao evento deste modo. (Eu, que aos poetas invejo a ... poesia, resmungo com isso do legume encorticado, meu vero auto-retrato que encontro assim em (belas) letras alheias ...)
A NOITE DOS CINQUENTA E DOISA insónia, plúmbeo lagarto asiático, lateja sob a caixa craniana, fatiga-me até o vislumbre das costas da amada muito mais atractivas que as de Deus- ah, a leveza de estar morto, a espanejar com os pés o empoeirado toutiço do anjo guardião! Mas nada! Quem deu o tiro de partida para estacorreria louca de palavras que acotovelam o encortiçado poeta renitente? Faltam à insónia as vogais, é uma sarça que arrota a mofo, famélica como o baldeque acrobaticamente se atira ao poço e o seca na miragem de topar ostras ao fundo. Acordas amor, matas-me esta insónia que pedinchaa meio da alma? Um legume, o estado do corpo após o desentorpe- cimento que lhe deste, amor. E o azeite galo galvanizará a manhã.
Entretanto o poeta, dito leguminoso mas tambem narcisico, enderecou-me a seguinte auto-efigie, devidamente legendada, no intuito de a associar ao ditoso momento. E assim cumpro
[caption id="attachment_21805" align="aligncenter" width="221" caption="Antonio Cabrita "e agora em boi marinho""]Esta coisa do rescaldo no fim do ano é um exercício, costumeiro, de arrogância insuportável. Para o fazer arma-se o indivíduo da omnisciência necessária à divindade, daquela que se apropriou do tudo acontecido na última nesga de tempo, aquela à qual os pobres, e humanos, humanos chamam "ano". Na realidade sei lá o que se passou durante o ano, nem mesmo da minha vida - entre o distraído e o obtuso, e ainda para mais encerrado na acédia -, neste pior e maldito dos anos que agora termina, posso fazer o altaneiro resumo e elencar os piores e melhores momentos. Mas, ainda assim, trôpego vaidoso, deixo-me botar o que me fica de 2010:
Sobre os livros ... Na literatura que obra "a do ano"? "O Olho de Hertzog" de João Paulo Borges Coelho, pelo chorudo prémio (Leya) e pela atenção que (finalmente) convocou sobre a já extensa obra do seu autor - e que espero se possa traduzir em ... traduções. E em leituras, deste grande escritor moçambicano. Mas também pelo "projecto" que o livro encerra, o manifesto - LM do início de XX como umbigo do mundo. Fantástico de amor, etnográfico e ideal, pela cidade. Excelente (desperdício) como utopia do país, de desautarcia, pelo desencerramento contrário à década que agora vigora.
Na "oratura" (é um termo que abomino, referindo-se a literatura oral) uma obra de relevo [e aqui tão rara], "Fábulas de Cabo Delgado", recolha sistematizada por Gianfranco Gandolfo (uma das figuras do ano) e retrabalhadas por António Cabrita (idem). Sou muito pouco simpático a este tipo de fixação (e formatação) das narrativas populares mas o trabalho está muito bem conseguido - resultante da sonolência generalizada esta fixação da literatura popular em língua maconde não teve discussão, nem de especialistas nem de jornalistas nem de "proprietários" (diga-se que obras já bem anteriores do género, de Lourenço do Rosário e Luís Filipe Pereira, também não provocaram discussão crítica). Gandolfo esteve ainda (um grande ano para este trabalhador silencioso) na produção do livro e da exposição Matias Ntundo. Gravuras 1982-2010, um dos acontecimentos em livro e em exposição do ano (esta na Fortaleza de Maputo), central no domínio das artes plásticas. António Cabrita (figura crucial no meio cultural actual em Maputo) esteve ainda noutros eventos, dos quais destaco o excelente (apesar da pobre impressão) "Kok Nam. O Homem Por Detrás da Câmara", com sua entrevista e organização. Obra crucial. E que espero seja antecâmara de um verdadeiro álbum sobre a obra do Kok, a quem alguma apressada miopia continua a reduzir a um mestre de reportagem, coisa que efectivamente ele não é. Sendo muito mais.
E o "Com as Mãos", do Luís Abélard. O Luís foi-se embora, cruel e devastadoramente cedo, mas deixou este seu encantado olhar sobre quem com as mãos nos encanta o mundo. Aqui. Inultrapassável livro. Textos dos melhores conhecedores de arte em Moçambique. E fotografias de 24 dos artistas moçambicanos.
No cinema João Ribeiro apresentou um filme, que não vi por razões de saúde. Decerto chegará o momento. Importante entender que a sua possibilidade brotou da inflexão dos financiamentos da União Europeia ao cinema africano. Nos últimos anos os caminhos esconsos (ditos lóbis, até com direito a acordo ortográfico) têm vindo a direccionar estes recursos para o cinema afro-francófono. No penúltimo processo o afro-lusófono foi alvo de vários financiamentos (o que já não aconteceu, dizem-me, neste último concurso), algo possível por razões de pressão política. A ver se tal caminho de financiamento continuará a ser percorrido.
Na imprensa dois factos. A passagem da "Índico", a revista de bordo da LAM, para a direcção de Nelson Saúte. Tendo-se tornado uma excelente revista cultural moçambicana, algo tão necessário e ansiado. E o facto do "País" publicar uma edição de sábado dedicado (quase)exclusivamente à cultura. Com valor flutuante mas muito significante que o jornal tenha feito esta opção.
Personagem do ano? Jorge Dias. Nos últimos anos tem sido o Curador do Museu Nacional de Arte onde constituiu com a sua directora, a excelente Julieta Massingue (pessoa única no exercício institucional), uma belíssima dupla, de sucesso, agitando e fazendo do Museu o sítio menos convencional da actual e convencional cena artística moçambicana. Entenda-se, ao contrário do que é quasi-universal, nestes últimos anos foi a grande instituição que serviu para agitar consciências e práticas artísticas no país. Este ano acolhendo (e produzindo) a Bienal do Muvart (Movimento de Arte Contemporânea em Moçambique), um passo em frente depois do relativo fracasso de há dois anos atrás, e mostrando que há caminhos percorridos (e não só "a percorrer") - ainda que a Bienal tenha sido uma realização passível de críticas, isso só significa a sua relevância. Para além da sua actividade de crítico artístico (do qual este jpt amador tantas vezes discorda) Jorge Dias apresentou ainda Transparências - muito valorizada por um excelente filme de Filipe Branquinho -, uma curiosa articulação entre a instalação programática (o corpo central) e falsa retrospectiva (antigas obras completamente reformuladas), que foi momento alto do ano na cena das artes plásticas. Agora termina o seu trabalho no Museu e segue como director da Escola de Artes Visuais (integrando a grande remodelação dos quadros estatais ligados à cultura). Se isso levanta algumas interrogações sobre que enfoque assumirá o Museu Nacional de Arte por outro deixa antever excitantes passos no ensino das artes aqui. A ver vamos.
Acontecimento do ano? A construção civil em Maputo. Que virá a marcar a paisagem urbana da cidade e a auto-percepção da capital. A minha alma, se existisse, estaria em sangue.
jpt
"De Fogo em Fogo e outros poemas", um conjunto de poemas de Raffaele Carrieri apresentados num pequeno opúsculo, uma curta edição (150 exemplares) bilingue, integrando versões de António Cabrita do trabalho do poeta italiano. Não quero apoucar o interesse do poeta (que é, radical e realmente, o que interessa) mas é o objecto que me chega às mãos que me chama a atenção imediata. Em primeiro lugar porque a edição da traduções, de prosa ou de poesia, é raríssima em Moçambique (mesmo de obras escritas em línguas nacionais). Neste caso a publicação inseriu-se nas actividades da X Semana da Língua Italiana no Mundo e é uma produção da Escola Portuguesa de Moçambique, a contar com o apoio da embaixada italiana.
E nisso radica uma segunda dimensão do meu interesse. Pois uma publicação destas ecoa (e até simboliza) as crescentes actividades em Maputo dos sectores culturais das representações diplomáticas, em particular a espanhola e a italiana (para além da institucionalização ainda recente do Instituto Goethe). Ainda que modestas, e não particularmente exigentes, estas actividades que se vão somando ao já habitual cenário agitado pelo Franco-Moçambicano, o Camões e o CEB (entretanto "correctamente" rebaptizado), dão um tom mais aberto ao ambiente cultural na cidade que, por vezes, tende a enquistar.
Mas é a um terceiro nível, basto surpreendente, que este pequeno livro me entusiasma. Pois denota a capacidade, absolutamente original, da Escola Portuguesa, uma instituição estatal portuguesa, de se abrir à cultura estrangeira. Ou seja de entender a sua presença, como agente de formação e de divulgação da língua e da cultura portuguesa, de conceber a sua actividade (o seu pelouro), como um potenciação das capacidades de tradução e de abertura. Uma visão cosmopolita.
Isto, que em teoria parece absolutamente pacífico, é absolutamente original, tamanha a tendência castrense [lusocastrense, por assim dizer] que ocorre habitualmente nessas instâncias - e falo, frise-se, das instituições radicadas em Lisboa. Presumo (e nisso estou quase certo de estar certo nesta especulação) que uma obra destas não corresponde a um projecto global, que será mais produto de uma articulação incidental, uma vontade momentânea da embaixada italiana cruzando-se com a fervilhante actividade do bom do António Cabrita. Mas ainda que assim sendo o simples facto de encontrar responsáveis estatais portugueses a trabalharem no estrangeiro (e na CPLP ainda por cima) com abertura para usar o português língua para traduzir e não apenas para narrar a gesta do entre Fernão Lopes e Gonçalo M. Tavares é um acaso extraordinário. Uma sorte. Para continuar?
Do breve livro (36 poemas) deixo dois.
Invejo a LulaMuito invejo a lulaQue se eclipsa no se preto:Branco é o seu recobro, a salvoNo variável azul.e uma versão muito daqui ...
Deixai-me Sozinho com os RiosDeixai-me sozinho com os riosDeste cacimboQue calcina a planícieE o osso preto dos montes.Deixai-me sem fagulhasComo a mais esquiva lenha,Aos outros a visibilidadeA consciência e a luneta.jpt
Momento alto para o ma-schamba. O António Cabrita concede em publicar aqui um conto escrito durante as recentes manifestações, um obviamente inédito ao qual nomeou "Coração Quase Branco". A narrativa é totalmente ficcional, excepto o que foi tornado público aquando do suicídio do aqui personagem Dácio, e integrará o livro "A Maldição de Ondina e Outras Histórias" que muito em breve será editado.
[António Cabrita por Daniel Mordzinski (fotografia obtida aqui)]
CORAÇÃO QUASE BRANCO
Carta ao Dácio
Ainda não me saíram da pele os teus quatro tiros de caçadeira. É uma maneira de dizer que o seu eco ainda me perfura os tímpanos, devolvendo-me ao momento em que entrei no táxi e a rádio vomitou, Liquidou a tiro a mulher, o filho (que adoravas) e o gato, antes de virar o cano para si, deixando-me a boca descaída num esgar incontido, bruto. Ainda não me saíram da pele. Rói e persiste, tal como a perpétua tremura das tuas mãos ainda não se me descolou da retina. Tremura que passava logo que indicador e polegar, num golfo, encaixavam o cálice de vinho. Sou como o Sá Nogueira, repetias, tremo até o pincel poisar na tela e aí tomar a precisão de um x-acto. E bebias o teu exacto, desaprendido gole - uma hóstia anoréxica sobre a língua. Por que teimo na mania de que um cálice de vinho era em ti morada para duas horas se a memória pinta sempre a manta?
Nunca te punhas nas pontas dos pés, mas tinha fama a tua generosidade. Desde os políticos aos escritores, muitos te reconheceram a hospitalidade, a guarida desinteressada aos exilados em Londres, ou na Bretanha, onde a tua mulher herdara uma casa senhorial implantada sobre falésias tão encarquilhadas como as mãos de Renoir. Era omnipresente nas estantes do escritor surrealista com quem partilhei casa quase um ano e em cujas páginas de rosto, em dois terços dos livros, se selava a oferta. Guardo um deles comigo e transcrevo, «Para o Virgílio, meu velho irmão, a poesia grande destes antigos combatentes, com um abraço antigo e apertadíssimo do teu, Dácio», escrita num exemplar da Élégie a Pablo Neruda, de Aragon.
Tenho alguma dificuldade em compreender (imaginar, imagino) que tipo de liga te atava à jangada de pedra do PCP, já então encalhada em naufrágio, ao arrepio dos teus surrealistas que viram cedo no alinhamento partidário um erro, feição que comungavas com o Virgílio, mas compreendo o que vos podia atrair no final da elegia de Aragon: «Ah ce n’est pas le vin qui naît des pieds du peuple/ Mon ami mais c’est notre sang/ palpe la nuit palpe la pluie palpe tês pleurs (…) Nous sommes cette sorte atroce de vendange/ Nous sommes le chant égorgé/ Nous sommes cette fin du monde cette danse/ De septembre/ Ô pressoir ô tambour cruel ô pitié de mon ventre/ E pas un vers n’est autre chose que le cri». E arrependo-me de nunca te ter agradecido o desapegado acalento com que consentias que um adolescente te entrasse no último alfarrabista que tiveste, ao Bairro Alto, para pilhar a mercadoria. Adivinhavas que não tinha o conhecimento para te roubar nenhuma preciosidade bibliográfica e me movia apenas a ânsia de ler que desgraça os pobres. Isto muitos anos antes de sonhar que me iria sentar à tua mesa no café e que tu, no teu beberico de ascético canário japonês, me sorririas ao reconhecer o miúdo famélico que anos antes não largava a prateleira da poesia, onde se amontoavam, juravas, as braguilhas de tronos e dominações.
Dizem-me que um sentimento de impotência te invadiu quando bateste fundo na última fortuna delapidada. Que desbastaste várias avultadas heranças ao longo da vida, em negócios e amigos ruinosos. Desta vez não havia volta a dar, estavas reduzido ao pataco dumas crónicas avulsas nos jornais sobre alfarrábio – tema à beira da falência técnica, com menos amadores que os charutos de Groucho. Que a trombose da tua mulher bretã e o caco em que se transformara a sua beleza valquírica te perturbava. Que o dinheiro gasto em jogo da sorte não tivera retorno, apesar do desespero que investiras nas cautelas, última fezada de um ateu convicto, e o peso das dívidas te encarecia agora a insónia.
Contaram-me que deixaste ao Herberto um pequeno bilhete de despedida e um retrato teu junto à campa do Breton, que brunias como à campa de um santo, e que o poeta a rasgou, incomodado. Contaram-me sobre as instruções deixadas a um amigo alfarrabista para se vender a tua biblioteca e pagar a conta-gotas as dívidas. Nada disto me incitou a indagar os aprendizes de prestidigitação quando, quinze dias depois do teu crime voltei de férias, entrei na tasca e encontrei uma pedra sobre o assunto. Mármore trançado em vergonha e perplexidade. Talvez por a tasca ser bastante mais pequena que o café Gelo, onde tanta ignomínia foi deliciosamente imaginada. O teu amigo Virgílio já tinha falecido e com alguns mais velhos eu não tinha confiança para grandes inquirições em território supostamente em ferida.
Já não tenho a breve notícia que os jornais publicaram, a recato. Por obrigação metodológica. Perdia-a no meio de algum livro extraviado. Mas lembro o entusiasmo com que sobrevoavas o extremo decoro que sempre colocaste na manifestação de sentimentos para falar do teu filho, da admiração de o apanhares aos treze anos a ler o Moby Dick em inglês, depois de ter devorado Les Contemplations, no original. Como tudo irradiava daquela promessa juvenil, que antes de namorar já aprendera na Cartuxa de Parma que o amor é uma imitação que se exalta até se acreditar única. Até o vinho bebericavas mais rápido, três meses antes da tua resolução final, naquele último jantar em que partilhámos mesa e vi como o filho tardio, nascido aos teus cinquenta e poucos, te desdobrava a mente em novos mapas. Pois não é automático que uma casa repleta de livros gere um leitor apaixonado, fatal. O teu Benjamin era especial, sentia-lo, e já lhe gabavas a escrita, tu, um leitor itimorato e animador de revistas que, apesar de às vezes roçares a sageza e do teu entranhado convívio com poetas e escritores, nunca conseguiste fazer da gramática uma lúbrica.
O que mais me chocou é que nenhum deles, dos teus amigos de sempre, ousou duvidar. Receberam o teu crime como a abominação que aparentava, envergonhados por teres virado aos canos do sniper de Breton para o seio familiar. Algo tão grave como descobrir-se que Cristo afinal defecava. Eles, tão assanhadamente avinhados no combate à instituição da família. E nenhum deles ousou duvidar.
Olho os meus, do pico da minha penumbra. Deitado, as duas miúdas pequenas de permeio entre o olhar crispado que me descerra o corpo insone e a silhueta ronronante da minha mulher – a mais pequena resplandece como um gato fulvo, a outra com o cabelo liso e escorrido e da mesma cor do de teu filho Benjamin - e interrogo-me: e se eu tivesse uma arma aqui, debaixo da cama? Também eu como tu, no rodapé da miséria, desenganado, triste como as neves de Maio. E se eu tivesse uma arma?
Nunca quis ser pai, como tu, suponho. Ler, escrever, borgas, ir antepondo sabiamente ao impulso o crivo da ironia – a pitada q.b. que não coarcta a espontaneidade – parecia-me projecto suficiente. Tal como vasculhar no amor único, ciente de ter os bolsos repletos de triângulos e manias. Os filhos nasceram desses úteros antigos que eram autónomos das mulheres e se deslocavam dentro dos corpos incautos, inocentes, como carvões em brasa. A minha mulher jurava, Não quero ter filhos, quando nos juntámos, e bebia álcool e acompanhava-me aos bares manhosos e às bibliotecas cheias de mofo. Chuchas.
Estão aqui entre nós, as fedelhas. Aprendi a amá-las, como tu a Benjamin. E o meu projecto faliu, como o teu. E se eu tivesse uma arma?
Que predomínio impede o cão de mijar? Não há nuvem, anjo, cometa, ramela de Deus que impeça o canídeo de emitir num espasmo os líquidos que retinha, se tal lhe for necessário. Do mesmo modo que nenhuma árvore se inclina se um cão mija. Que te podia impedir, naquela noite, de dobrares a caçadeira ao meio para a aviares de chumbo? Pensa nisto: e se o vinho não tem acabado, naquela noite? As tuas mãos vacilaram ou suspenderam a tremura quando o teu filho Benjamin virou o rosto alvoroçado para ti e balbuciou algo que não deixaste acabar, a mão decepada pelo chumbo no caminho da face? O último lampejo da tua mulher foi de ternura ou de acusação? O teu gato era capado, ou tornou-se, naquele instante? Em que momento ficou o teu olhar inclemente?
Ninguém duvidou.
Imaginemos que neste momento alguém abre a porta do meu apartamento. Avança com passos de veludo. Que se insinua à porta do quarto e a mão lhe treme quando encontra o meu olhar insone. Que eu grito e ele, com o susto, dispara automaticamente, primeiro sobre as costas da minha mulher e depois sobre as crianças. Eu transido, de pé, olhando o cano que me apontam. É ele, eu conheço-o. Toda a vida tive um caso com ele, o meu inimigo. Meti-lhe um processo no tribunal. Está ganho. É o que me alimenta, na secreta penúria que me aflige: aguardo a sentença. E agora está ali, à minha frente, os olhos encovados, um floco de espuma ao canto da boca que me incita, veste as calças de pijama. A minha mulher está morta, as crianças recortam-se num anel de sangue, e ele não me quer ver nu. Veste-te, alteia a voz. Visto-me, gago por dentro e por fora, um peixe a ser escamado. Visto-me, porra. Leva-me até à sala, uma rodilha de lágrimas e ranho. Faz-me sentar à mesa, abre uma gaveta do aparador e tira um caderno que me estende. Saca uma lapiseira do bolso, que me estende. Eu estendo a mão, sonâmbula, trémula, para a lapiseira. Ele manda, escreve. Repete, escreve. Escrevo o quê, balbucio. Explica porque mataste a mulher e as crianças e porque te vais suicidar… Escreve. O olhar que me devolve não admite réplica, o cano da arma também não. A saliva cai-me na laringe como chumbo. Escrevo, gaguejo. Ele impacienta-se. Encosto o bico da caneta ao papel e descubro que não sou como o Sá Nogueira.
Imagino. Tu também tiveste o teu inimigo. Alguém que te era familiar. Casado com a irmã de tua mulher. Ruim tradutor, mau poeta, um homem de maus vinhos. Tudo o que odiavas e não te cansavas de martelar, à tua maneira doce, de formiga que nunca levanta a voz mas é firme como a batente de níquel, tu sabes, aquela mãozinha de leão das casas antigas. Na merda como tu, na ruína, e pior, sem a tua aristocrática ilusão de ter sido. E sabe-te nas lonas, que a língua trôpega e o olhar vago da tua mulher te agoniam, por ela, pelo que deduzes que ela te pede ao fundo da mais fosca expressão; que não sabes como achar dinheiro para dar ao teu filho a educação de casta que sempre imaginaste (Columbia, Oxford, 8 anos de piano e quatro línguas mobiladas por dento), e padeces do orgulho de quem sempre deu e nunca saberá pedir. Ele sabe-te encurralado. Ele está pior que tu mas coube-lhe outro vigor físico, mais trinta centímetros, um ódio mais fundo, pegajoso, que não é apenas caruncho dirigido à má literatura. O Mickey Spillaine, um porco de que ele gostará, explicaria o motivo: procura o dinheiro. A tua morte fará da irmã a herdeira da tua mulher e uma casa senhorial na Bretanha, depois de vendida, proporciona uma reforma a faisão e hidromel.
E agora está ali, à tua frente, os olhos encovados, um floco de espuma ao canto da boca que te incita, veste as calças de pijama. A tua mulher está morta, Benjamin e o gato estão recortados por um anel de sangue, e ele não te quer ver nu. Veste-te, alteia a voz. Vestes-te, gago por dentro e por fora, um peixe a ser escamado. Visto-me, porra – censuras-te. Leva-te até à sala, uma rodilha, lágrimas e ranho. Faz-te sentar à mesa, abre uma gaveta do aparador e tira um caderno que te estende. Saca uma lapiseira do bolso, que te estende. Esticas a mão, sonâmbula, trémula, para a lapiseira. Ele manda, escreve. Repete, escreve. Escrevo o quê, balbucias. Explica porque mataste a mulher e o teu filho e porque te vais suicidar… Escreve. O olhar que te devolve não admite réplica, o cano da arma também não. A saliva cai-te na laringe como chumbo. Escrevo, perguntas. Ele impacienta-se. Encostas o bico da caneta ao papel e descobres que nem sempre és como o Sá Nogueira.
Queres-te condenar por te sentires um cobarde. Ou antes, essa é uma categoria que não faz sentido ali. Apenas o teu estupor desce sobre ti como uma pedra que descobre o seu avesso. Sempre foste lento a reagir, por isso ficas colérico quando finalmente reages. E levaste a vida a querer afastar de ti a cólera. A tua mulher morta, o teu filho morto, Benjamin, o teu filho, tem um buraco onde pingava um olho verde, Benjamin… o gato, não compreendes a necessidade de matar o gato… E então escarneces, não achas que era melhor ser o gato a escrever a carta, e o teu riso fá-lo enlouquecer.
Segundo o alfarrabista Luís Gomes, o Luís Pacheco passava lá muito pela livraria e - em não tendo que estar a fazer a sua personagem, não tendo uma audiência - era um gentleman. Nessas conversas mostrava delicadeza. E que quando falava de ti, Dácio, o fazia com uma ternura e uma elevação que não se compadece com aquelas coisas que escrevia. Era um tipo doce. Portanto, eras o homem cuja memória descascava a rudeza do Pacheco. Mas nenhum dos teus amigos ousou duvidar das evidências.
Contaram-me que Cesariny emprestou os óculos escuros ao cego que atacava o piano no Bolero, e se sentou ao lado dele a escutar Satie, e a sussurrar (com as mãos mimava umas castanholas invisíveis), Os silêncios dele não são gagos. Uma hora atrás, ele e o Pacheco haviam trocado ofensas, numa acirrada disputa entre comadres, mas agora tudo se apaziguara, o Pacheco no canto mais escuro da sala amaciava as resistências de uma puta galega, o Pignatelli explicava ao António José Forte e à Aldina as vantagens em se rechear as beringelas com camarão, em vez de carne moída, o Virgílio fazia saúdes com um albino ocasional, que se sentara na mesa ao lado, e assegurava-lhe num tom tonitruante, para quem não quisesse ouvir, que os polacos tinham tatuado o segredo da melanina nos sovacos; o grosso da sala envolta nas brumas do tabaco cacarejava às propostas indecentes de uma trupe de marinheiros escoceses. Já apresentavam todos o ar devassado e lamacento que as quatro da manhã emprestam a quem já tem a sua conta. Só a tua elegância, Dácio, destoava: o teu fato impecável, à altura do guarda-fato de mogno donde saíra, e a gravata solene, cingida pelo colete abotoado. Todos eles transpirados como cães raivosos ao repique; tu retorquias em surdina, sóbrio, solícito, articulando as sílabas à medida que a ponta de um guardanapo aos quadrados enxaguava a única gota que teimava em nascer na tua testa. Prometias, graciosamente, a tradução do Jarry ao Benite, que ao teu lado planeava assaltar um banco (nem que seja de ostras, repetia) para investir no teatro.
Um alarido cresceu lá fora, e meia mole levantou-se, atraída por um riso contagiante, inusitado, aquela hora.
Na rua, diante da porta de entrada no bar, imobilizava-se uma carroça pejada de vasilhas de leite, que se destinavam ao hospital. O burro recusou-se a passar adiante. Urrava, esfregava o casco da pata dianteira na calha do eléctrico, e mirava de soslaio a porta do bar, o badalo teso até ao chão. Vês, minha querida, a vida é que machuca, um cilindro assim é um mirante, só dá alegria, comentava divertido o Pacheco à galega, após o que caiu no erro de querer explicar-lhe o que era um lançarote no Alentejo. Estes quadrúpedes, minha princesa de Vigo, têm mais miopia na piça que eu na vista, vês a vergonha destas lentes - e sopesava-lhe nas mãos os óculos garrafais -, estas bestas, insistia, têm a verga vesga e então precisam que alguém aponte, percebes, e aí excedeu-se no entusiasmo, emprestas-me um lenço; a surpreendida galega passou-lhe o seu lencinho de chita com uma esmaecida rosa amarela estampada, e o Pacheco, para gáudio de todos, usou-o para segurar na pica do burro e a erguer, enquanto o bicho deixou, até quase a pôr paralela ao ventre. Aí o asno endiabrou-se e zurrava, numa elipse imperfeita que chocalhava as vasilhas e as derramava, mas tendo sempre a porta do bar, atrás da qual o Pacheco se escondera, como alvo para dois coices. A galega é que achou intolerável a graça e cortou-lhe de imediato todas as vasas.
O animal não saiu dali sem a polícia, e a presença da bófia acabou por estragar o negócio das raparigas. E então aí, agiste, ó Dácio, como Salomão. Em homenagem ao burro, cujo marzapo o Virgílio jurava ser uma Espada de Aço Polaco, foram chamadas à mesa as meninas da casa, uma a uma, e a todas, no jeito delicado de quem, em várias línguas, as convocava para um baile no Palácio de Buckingham, deste uma nota de cem escudos e “os pêsames por uma noite perdida, à Pacheco”. Poupaste-as assim, numa graça que as dignificava, a mais um prego na miséria.
Não sei se este homem foi o mesmo que puxou a culatra atrás três vezes para matar filho, mulher e gato. Seria preciso ter sido absolutamente um farsante e não a sensibilidade que acudiu ao balbuciar de muitas necessidades assombradas pela vergonha, pelo receio à humilhação, sem nunca reclamar para si o fricassé imundo do heroísmo. Lembras-te, é do Celine, mas caiu aqui como gingas.
Também aqui, lá fora, há um alarido – uma rebelião. Sabes Dácio, a vida chutou-me para Moçambique, um país onde todos roubam para se distrair e fingirem que renunciaram àquilo durante muito tempo. Onde a mais ínfima alegria não perde o brilho do grotesco. O povo é que se zangou e hoje levantou-se não para ir para o trabalho mas para abater postes eléctricos e atravancar as estradas com contentores de lixo e pneus a arder. A notícia de que amanhã poderiam acordar sem pão sobre a mesa – de que serve havê-lo se não temos como pagá-lo? – encolerizou-os. A ira, esse sentimento de que fugiste toda a vida como o diabo da cruz, é que os faz avançar aos magotes, com cânticos e pedras na mão. São milhares, em cada saída da cidade, e os soldados estão à rasca, a polícia não sabe como conter o dique. Farejando o clima, nas prisões de Maputo levantaram-se os motins, três mil homens dispostos a tudo, que se conseguem a liberdade incendiarão a cidade.
Há dois dias que é isto, que a cidade está sitiada pela carne para canhão. Hoje não houve pão, leite. A minha mulher esteve na bicha duas horas e quando chegou à vez dela, tinha acabado o pão. Normalmente comemos pão de água, agora raspas. E a coisa promete subir de tom. Agora dormem, ela e as miúdas, na expectativa de que amanhã o pesadelo tenha passado. Mas ouço os tiros ao longe, os cânticos, as rajadas, como cresce o clamor dos cânticos, imparável. A maior parte dos manifestantes são miúdos, moluenes como aqui lhes chamam, miúdos de rua, esfaimados, que trocam nos disparos buraco por buraco. E cada poste de electricidade derrubado, cada disparo, aumenta a evidência dos dólares que não tenho, das necessidades que vão apertar, reduz a minha bazófia literária ao consolo burguês de comer bolachinhas de água e sal num cantão do inferno.
E agora Ricarte, se também eu, igualmente falido, causticado, doente, tivesse à mão uma caçadeira e um punhado de munições - eras caçador, tu?, nunca te ouvi falar de armas – e acabasse esta agonia com três tiros, alguém se lembraria de duvidar que eu pudesse ter sido capaz de um gesto tão hediondo? Alguém, ao menos, colocaria dúvidas? Será que as mereceria? Porque não há modo de suportar corajosamente e sem dor um espelho que se esboroa, a decadência mental que nos vela já o cadáver, a puta que os pariu. É um contra-senso, e vale o esforço de respirar para o cheiro a trampa?
Vi-o há quatro ou cinco dias, no chapa. No chapa, Dácio, não tenho jipe, ando no entalanço, como nos grandes matadouros. Vi-o.
Encostado à janela, ao meu lado, no banco de trás, um homem sem dedos redigia uma mensagem premindo as teclas com o coto direito. Sobre o coto esquerdo, alongando-se pelo pulso, amparava o telemóvel, em equilíbrio. Duas mãos ausentes, decepadas pela curvatura do monte Vénus. Teria accionado uma mina, julgando que em pleno mato descobrira uma carica? Não se topava cicatriz, seria provavelmente uma deformação congénita, de nascimento.
Na rapidez de um homem normal redigia uma mensagem. Numa precisão inopinada. Era difícil despregar os olhos daquele acto que contrariava as partidas do destino. Meteu o celular no bolso direito das calças, premindo o aparelho entre as duas asas rombas do alicate. Fiquei doido para saber como iria tirar a moeda de cinco do bolso para pagar o chapa. Pensei segui-lo, estava sem obrigações para as horas seguintes e o espectáculo valeria a pena. Seria casado? Acaricia a mulher com a mesma perícia com que o seu grande coto acerta nas teclas mínimas, uma a uma?
Enfiou o coto esquerdo entre as pernas, discretamente, o outro pende do lado da janela, anónimo. Habituou-se a sentar-se contra a janela para oferecer um mínimo de espectáculo, só quando tem de ser. É um homem de traços finos, lembra um etíope, e traja uma camisa magenta com colarinhos impecáveis e calças azuis claras de riscas pretas. Olha em frente, indiferente à minha insistência, de viés, habituado a estar na vitrina. O mínimo possível, quando tem de ser. Como no momento de atender aquela chamada urgente, que o obrigou a expor-se.
Imagino-o a lamber um selo. Baba o coto direito, prime-o contra a estampilha, submetendo-a ao movimento oscilatório de um mata-borrão, o selo agarra-se como uma tatuagem pela face; depois lambe-o na cola e pressiona-o contra o envelope. A maior aderência da cola fixa o selo. E se for canhoto? Para o seu caso, é irrelevante, os dois cotos têm de ser solidários, só juntos, complementando-se, é que funcionam como dois dedos oponíveis.
Nunca tinha dado conta, as mãos levam a vida a fugir uma da outra, a lutar para serem autónomas, desafectadamente. Assim que nasce, uma mão ensaia ritmos diferentes da sua irmã de sangue. Dois cotos não, unem-se para pegar no espeto da cozinha, dançam em fusão como dois possuídos, se agarram no chicote. Um maneta como domador de leões, fazendo uso da perícia que este manifesta, era a fortuna em pouco tempo. Em vez de meter a cabeça dentro do leão, imagino-o a começar a sua actuação no escuro, acende-se um holofote sobre o tronco dele e a cabeça do leão e ele tem as duas mãos presas dentro da boca da besta, impassível. Cresce o bruá na sala. Debate-se como um mimo para tirar as duas mãos lá de dentro e quando as tira vem sem elas, o leão comeu-as, mas com o chicote devidamente preso aos cotos. O chicote que ele saca da boca semi-fechada do leão. A partir daí, o espectáculo estava ganho, a simpatia subiria em flecha. Deve ter mesmo um cão, treinado para pequenas funções. Traz-lhe o jornal, vai buscar-lhe a vassoura, o comando da televisão, o pacote de bolachas ou de batatas fritas. Os dentes do cão serão o seu terceiro dedo oponível. Tudo imaginei, naquele instante. Não têm conta as vezes em que ouvi falar ou li sobre transplantes de mão, desde As Mãos de Orlac, que obcecava o cônsul em Debaixo do Vulcão. Esta era uma mão que se retira sorrateira antes que a manhã acorde os dedos.
Ocorre-me, aquele não pode pegar numa pedra para lançar à polícia. Mas neste país absurdo pode ainda ser preso como ideólogo.
Sabes Dácio, não vi como pagava o chapa, acabei por descer antes dele, por vergonha. Adivinhas o motivo, vergonha da auto-comiseração em que a presença das minhas mãos ao seu lado me mergulharam. Foi a comiseração que te perdeu? Ou apertaste o gatilho só para mostrares a ti mesmo que não eras cobarde, acreditando que aquele gesto se repercutiria na marcha do mundo – quem mata os outros não apaga também o mundo? Ou foi a literatice que te encostou ao gesto canalha?
A mim, tão cobarde e falido de esperança e de qualidades, engolindo em seco a áspera escama do escuro, só resta a pergunta: e se tivesse uma espingarda neste momento e caísse na tua tentação? Detestaria que depois falassem nos abismos da mente e nos infernos de cada um. Seria abominável, foi abominável o que fizeste, nada te desculpa o fracasso, a sua fractura exposta. Mas se eu o repetisse, teria ao menos o meu carácter manifestado alguma vez, em alguma situação, algum tipo de qualidade que levasse um ingénuo, anos depois, a duvidar da intencionalidade do meu acto, da lucidez do meu estado? Não creio, nunca fui tão generoso, e caminho a passos largos para o anonimato.
Levanto-me. Amo a minha mulher a as crianças. É esse sentimento que me leva a levantar. Felizmente ela comprou um maço, está poisado na mesa-de-cabeceira dela ao lado do Coração Tão Branco, do Marias, um rapaz que abusa das minúcias em tramas tão mínimas. Ao contrário da minha vida, um mar de tramas com pouca paciência para as minúcias. Vou à varanda. Fumo, balançando o corpo contra a amurada. Na embaixada da Rússia há duas luzes acesas no quarto andar. Às três da manhã, alguém lê uma biografia de Laika, a cadela. Os tiros não param, quantas crianças baquearam nesta rajada? Os motins na cadeia terão vingado? É caso para recear o pior. Até as buganvílias se apagam no escuro, no muro lá em baixo. Adoro buganvílias. Está uma noite óptima. Inclino-me.
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A Escola Portuguesa de Moçambique tem vindo, desde há alguns anos, a publicar uma colecção literária, em formato de caixas agregando pequenos livros. A coordenação editorial é do António Cabrita. Em 2008 uma dessas caixas integrou este volume "Hamlet e Ofélia", da autoria de Carlos Alberto Machado. Este está desde Agosto em Maputo a escrever um romance, como bolseiro do Centro Nacional de Cultura.
No próxima sexta-feira, dia 10 de Setembro (17 h.) o escritor e a sua obra - cujo "índice" pode ser encontrado no seu blog - será apresentado pelo próprio António Cabrita na Associação de Escritores Moçambicanos (Av. 24 de Julho, à Interfranca, para quem não conheça), servindo essa apresentação ainda como convite para uma discussão sobre a dramaturgia actual.
Fica feita a divulgação. Acompanhada com um abraço ao António Cabrita. O resto é a espuma dos anos.
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Tresmalhado, um texto sobre António Cabrita no Antologia do Esquecimento.
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