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"…cheguei a um acordo perfeito com o mundo: em troca do seu barulho dou-lhe o meu silêncio…" (R. Nassar)
Regressar a Tom Sawyer é uma verdadeira máquina do tempo. O que me leva a repetir-me, porque está isto na "biblioteca juvenil", por que é que nos juvenilizam os livros e assim os abandonamos? O que está neste Tom Sawyer que não seja adulto? Será a paixão quase mortal entre Tom e Becky? Ou a maldade, cruelmente castigada, de Injun Joe? A cobiça que a tanto risco e coragem conduz, e que será magnificamente recompensada? O que haverá mais radicalmente adulto do que a confrontação (final) entre os ideais de liberdade de Tom Sawyer, afinal urbano e integrável, e Huck Finn, o radical libertário. O verdadeiro libertário, diga-se, tão necessário nestes hojes de institucionalizações, de (falsos) Tom Sawyers:
"Não me digas nada, Tom. Já o tentei e não resultou. Não resulta, Tom. Não é para mim, não estou habituado a isso. A viúva é boa para mim e minha amiga, mas não consigo aguentar aqueles hábitos. Todas as manhãs me faz levantar à mesma hora, obriga-me a lavar e a pentear; não me deixa dormir no barracão de lenha; tenha de usar aquelas malditas roupas que me sufocam, Tom, porque parece que o ar não consegue passar através delas; e são tão bonitas que não me posso sentar, nem deitar, nem rebolar no chão quando as tenho vestidas. (...) Ali dentro não posso apanhar uma mosca nem mascar. Tenho de andar calçado durante todo o domingo. A viúva só come ao som de uma sineta, vai-se deitar ao som de uma sineta, levanta-se ao som de uma sineta. Naquela casa, é tudo tão horrivelmente regular que o corpo de uma pessoa não o consegue aguentar. (...) E a comida é demasiado fácil, não me interessa muita comida assim. (...) A viúva não me deixa fumar, não me deixa gritar, não me deixa bocejar, não me deixa espreguiçar, nem coçar ao pé de outras pessoas. (...) E ainda pior, está sempre a rezar. (...) Tive de fugir, Tom, tive mesmo de fugir! Não, Tom, não me interessa ser rico e não quero viver naquelas malditas casas onde parece que falta o ar. Gosto dos bosques e do rio e das barricas, e é aqui que vou ficar. O resto que vá para o diabo! Já tínhamos as espingardas e o esconderijo, e tínhamos combinado ser ladrões. (...) Tom aproveitou aquela oportunidade:
- Ouve lá, Huck, ser rico não me vai impedir de ser ladrão.
- Não! Estás mesmo a falar a sério, Tom?
- Tão sério como estar aqui à tua frente. Mas Huck, não te podemos aceitar na quadrilha se não fores respeitável.
A alegria de Huck pareceu desaparecer.
- Não me deixas entrar, Tom? Mas deixaste-me ser pirata, não deixaste?
- Sim, mas isso é diferente. Um ladrão é alguém que tem uma categoria mais alta do que um pirata. Isso é uma coisa que todas as pessoas sabem. Em muitos países, até têm elevadas posições de nobreza, entre duques e coisas assim." (294-295)
[Mark Twain, As Aventuras deTom Sawyer, Edições Nelson de Matos (Tradução de Maria João Freire de Andrade)]
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[J.M.Coetzee, No Coração Desta Terra, D. Quixote, 2005 (1977), tradução de Maria João Delgado]
Foi o bloguismo (recente) que me fez regressar a este livro, quando para ele encontrei espaço no meio da pilha, a segunda ficção publicada por Coetzee. Onde eu e qualquer leitor navegamos ao sabor da corrente da imaginação aparentemente psicótica da filha-Magda, narradora protagonista, encerrada numa herdade (farm) na savana desertificada (veld) sul-africana. Mundo rude, mundo colonial (explicitamente), de silêncios opressores afinal seu terreno de liberdade - de vida, de tortuosa imaginação. Do que ela realmente fez ou faz não sabemos, apenas optamos por uma versão dita ou indita. Do que ela e seu pai fazem ou não fazem não sabemos, apenas optamos por uma versão dita ou indita. Do que ela e seus criados/empregados fazem ou não fazem não sabemos, apenas optamos por uma versão dita ou indita. Um estado de aparente loucura que é afinal aquela normalidade. Sem culpabilidade ou culpabilizações. Enorme como o tal veld. Opressor como o tal veld.
Magda louca? "Como é que posso ser enganada quando raciocino com tanta clareza?" (217), consciente de que "A liberdade excessiva é a única coisa que me pode limitar..." (32)? Magda louca?, a pós-hegeliana: "A certeza do amo quanto à sua própria realidade reside na consciência do escravo. Mas a consciência do escravo é uma consciência dependente. Assim, o amo não está seguro da realidade da sua autonomia. A sua realidade repousa numa consciência inessencial e nos seus actos inessenciais. Estas palavras referem-se ao meu pai, à maneira brusca como lidava com os criados, à sua rispidez inútil." (223)? Magda louca, diante desses que "fazem a sua labuta de ombros curvados numa tentativa de se esquivarem aos excessos de mau humor." (17)? Mas louca?, ou tacteando a razão, ela que "Na falta de qualquer relação com os seres humanos, é inevitável que eu sobrevalorize a imaginação e espere que, através dela, as coisas mais triviais adquiram uma aura transcendente" (29). Pois apenas ela e o pai, visceralmente unidos pois únicos ali, um mundo assim sem mais "ninguém" que seja "alguém": "De seis em seis dias, quando os nossos ciclos coincidem - o dele de dois dias, o meu de três - e quando esvaziamos as nossas tripas no balde-latrina atrás das figueiras, partilhamos o mau cheiro das fezes frescas um do outro, ele o meu fedor, eu o fedor dele. Deslizando a tampa de madeira para o lado, escarrancho-me em cima do seu poio infernal, sanguíneo, brutal, do que as moscas gostam, pintalgado, de certeza, de carne mal digerida, mal mastigada antes de deglutida. Em contrapartida, o meu (e aqui imagino-o com as calças nos joelhos, torcendo o nariz o mais que pode enquanto as moscas volteiam furiosamente no espaço escuro debaixo dele) é escuro, verde-oliva, cor de bílis, compacto porque demasiado reprimido, velho, cansado. Gememos, e puxamos, limpamo-nos, cada um à sua maneira, com quadrados de papel higiénico comprado nas lojas - marca de distinção -, arranjamo-nos e voltamos cá para fora. Depois, cabe a Hendrik a incumbência de verificar o balde e, se não estiver vazio, esvaziá-lo num buraco que foi cavado longe de casa, lavá-lo e voltar a colocá-lo no lugar. Não sei exactamente onde é que o balde é entornado; mas, algures na fazenda, há um buraco onde, enroladas uma na outra, a cobra vermelha do pai e a preta da filha se abraçam, dormem e se dissolvem." (59) Esta sim, a verdadeira versão.
Um livro enorme. Sobre o mundo. Não só aquele mundo. Mas também esse, o tal colonial referido. Entre pai e filha vivido. Sofrido e amado. Dá para entender?, isso da pobreza alheia?
jpt
[João Bénard da Costa, Nós, os Vencidos do Catolicismo, Edições Tenacitas, 2003]
Edição em livro de um texto publicado no jornal Independente em 1997. Em registo de memórias pessoais fica o percurso de uma franja da burguesia lisboeta católica oposicionista ao Estado Novo, um núcleo que veio a ser conhecido como "católicos progressistas" (apesar do seu desgosto pelo termo), e do seu progressivo afastamento face à hierarquia católica, primeiro, e ao próprio catolicismo, depois. Um retrato de época muito interessante - e não só por aqui se encontrar traçada a juventude de inúmeras personagens que vieram a ser relevantes nas décadas seguintes na sociedade portuguesa. Também nisso denotando a influência que a igreja católica tinha à altura no país e na formação das suas elites.
Deixo três excertos. O primeiro, referente à juventude do autor, que poderá ser extrapolado (e que, porventura, ele-próprio terá extrapolado ao longo da vida) como visão do mundo bem para além do "cristianismo" a que se refere directamente, e que assim aborda a rábula do "lado correcto", do raciocínio bipolar ainda hoje tão recorrente em Portugal; o segundo, que resume o incómodo sofrido por Bénard da Costa (e seu grupo?), teórico-teológico; e um terceiro que não escolho por qualquer anacrónica comicidade mas porque deixará entrever da justeza e pertinência de tantas das posições da igreja católica apostólica romana face à sociedade contemporânea:
"... cedo, demasiado cedo na vida, aprendi que as ameaças ao cristianismo não vinham de um só lado, mas de dois. Só aparentemente opostos." (21)
"O Concílio - pensava eu nesse tempo - ao introduzir ... a noção essencial de Igreja como Povo de Deus (completando o tradicional conceito de Corpo Místico) vinha dizer a cada cristão que cada um de nós era Igreja ... contruída com pedras vivas, numa comunidade de pessoas em que Cristo era o factor unitário, o valor vital fundamental, a norma viva e o único princípio de autoridade. Esse factor, esse valor, essa norma, esse princípio, deixavam de residir na Hierarquia ou no Clero e passavam a estar em cada um de nós. Daí que eu alargasse muito o conceito, então em voga, de "fim do constantinismo". Em vez de ver nele, apenas, o fim da identificação da religião com o Estado ou o fim da identificação do cristianismo com uma civilização, eu via também na expressão o fim da identificação da fé individual com a fé na Igreja, o fim de uma visão dela como superestruturaa, que envolvesse, protegesse e sustentasse cada um dos seus membros. Secularmente, a Igreja abrigara-se sob a protecção do Estado para se defender. Secularmente, também, o cristão abrigara-se sob a protecção da Igreja com idêntico intuito. Chegara a altura de abandonar ambos os abrigos ..." (88-89)
"Foi o caso da pastoral sobre a Modéstia Cristã, que deu origem a um dos episódios que mais recordo desses tempos. No verão de 56, os bispos resolveram dissertar sobre a dita modéstia, julgando chegada a altura de se unirem aos cabo de mar para acabarem, nas praias, com homens de tronco nu e mulheres de fatos de banho de duas peças (ainda não se falava de biquinis). Evidentemente, o assunto era ingrato ... Se já ninguém tinha muita pachorra para enfiar uma camisola interior quando o cabo se aproximava, menos ainda se considerava que o assunto devesse merecer a atenção do venerando episcopado." (31)
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Chega-nos no Natal, oferta de como se compadres assim a fazerem-nos família. E os livros também são a sua origem. A Inês (que está farta de não ser explicitada no blog) logo o lê e ordena-me que avance, "gostei muito" algo que eu já percebera, que por ele fora trocado durante dois dias em Inhambane. E isto não sendo ela muito dada a enredos policiais - certo que o livro disso não é exemplo, deixando até dois assassinatos por desvendar, virei a descobrir. Enfim, tamanhas as recomendações que interrompo a pilha ali ao lado e avanço, afã também reforçado por leituras anteriores, livros e blogs do autor.
Para logo ser surpreendido com a insídia, tanta e tão infundamentada, até disfarçada, que me interroga sobre os limites que devemos colocar às liberdades literárias: "A que horas saiu da sala de jantar?" "Eu?" "Não. O administrador." "Por volta das três, um pouco antes. Um jogo de futebol, havia um jogo de futebol ontem à noite, e ele queria saber o resultado. Por princípio perguntaria a um empregado, a alguém que andasse ali, mas ele é muito cioso quando se trata de futebol. É sportinguista", explicou, pedindo: "Compreenda". (31). Hesito, resmungo a estes implícitos, mas continuo: agora num "é preciso conhecer o inimigo". Para depois, e logo, me deixar conquistar por completo. Sei que o autor é premiado e elogiado, daí que (já) lhe serão menos simpáticas comparações elogiosas mas mesmo assim não deixo de confessar: dei comigo a sentir-me como nos grandes Le Carré - ok, para meu gosto o "O Espião Perfeito" é uma obra-prima -, imersão minha até ao final. A seguir o protagonista, tão denso que até arrisca a ser dessas personagens-eucalipto, que tudo esbatem em volta. Mas não aqui, sorte dele pois narrado por alguém que se engana quando quer confessar "Sou um biógrafo sem sorte" (87), pois não o seria se o fosse. Sigo-o talvez por identificação, por bem saber (e querer) que "Um homem a caminho de velho tem de ter vida, mesmo se não é uma vida heróica, cheia de glórias e de benefícios para a carreira." (55), assim dele companheiro.
Sigo este nosso polícia guardião que sempre nos é desagradável pois "A burguesia gosta de segurança, da tranquilidade dos seus bairros - mas detesta falar do assunto ..." (88), sigo-o no seu método absolutamente científico, um Holmes das ciências de hoje, "... não escrevia ou raramente escrevia as suas notas. No seu gabinete, limitava-se a encostar-se na cadeira ... e a semicerrar os olhos na direcção da janela, como se olhasse realmente o fio de telhados desalinhados. O resto era imaginação, uma espécie de exercício a que se entregava para não ter de preencher impressos ou elaborar relatórios ..." (88). Sigo-o a desembrulhar tramas vindas do passado que é presente, mesmo que o queiramos esquecer, negar, um homem como tantos outros pois de um "Pobre país que se interessa pelo seu passado, e vive pendurado numa parede como um quadro velho e impopular que as visitas têm de ver. Angola, Moçambique, Guiné, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Timor, Macau, pobre memória, pobre país que vive suspenso da aprovação dos outros, com medo de ter falhado onde falhou. O império, o coração do império. ( ... ) tu próprio queres regressar à Guiné, onde a morte esteve próxima de ti, adormecendo no teu ombro, muito amiguinha, onde a vida estava suspensa de um fio, onde havia o cheiro que não esqueces. Fugiste da Guiné e olha o que te acontece: (...) cada inquérito persegue-te com o cheiro de África e os que dizem "ah, o cheiro de África", mas nunca estiveram diante dos teus cheiros de África - o da merda, o da pobreza, o do lixo, o das coisas apodrecendo ao ar livre nos subúrbios, o dos mortos acumulados no mato, esquecidos, rendidos. Merda para África ..." (119-120).
Deixa-nos uma história africana que portuguesa é. Uma dessas que "a burguesia [que] gosta de segurança (...) detesta falar do assunto". Deixa-nos o "homem a caminho de velho" assim foco (grão-exemplo?): "Em certas alturas só podemos imaginar, é o que nos resta. Esta é uma história de portugueses que nunca completaram a sua vida, que deixaram episódios por contar e que são portugueses de um império desaparecido. Nós somos os que vêm a seguir, para contar a história completa, mesmo que não seja a verdadeira." (228).
Não há livros obrigatórios, nem imperdíveis. Isso são hipérboles mentirosas. Mas há livros bons. E este é um livro muito bom. Mais do que o recomendo.
[Francisco José Viegas, O Mar em Casablanca, Porto Editora, 2009]
jpt [que em nome da família agradece ao PSB e à CA a oferta do livro][Vasco Pulido Valente, A República Velha (1910-1917) , Gradiva, 1997]
Porque o centenário da República já se festeja, e também porque as enormes Histórias de Portugal actuais (a de José Mattoso e a de João Medina) estão na longínqua Lisboa, fui reler o "República Velha", a ver se me situo na efeméride. Mas nem tanto. Ainda assim entre algumas coisas retiro duas ideias, sendo a primeira a referência à lenda de Nossa Senhora de Fátima, a qual aqui transcrevo para alegria dos mais crentes, principalmente para os que já se afadigam na expectativa da próximas visita de Sua Santidade a Portugal, decerto que inscrita - de forma muito particular - nas comemorações do centenário da instauração da República. É uma longa citação mas vale a pena:
"Perante a óbvia fraqueza do Partido Democrático e, ao mesmo tempo, a sua intolerável violência a Igreja tomava, sem vacilar, a cabeça da oposição política. Os republicanos moderados estavam desfeitos e, aparentemente resignados. O movimento monárquico oficial tinha recebido ordem de Londres para se abster enquanto a guerra durasse. A Igreja católica ocupou o vazio.
Cem anos antes, em 1822, a causa realista fora reanimada por um milagre. A Virgem aparecera a duas pastorinhas em Carnide, para lhes dizer que Portugal sobreviveria à impiedade maçónica. Sob o patrocínio de D. Carlota Joaquina, grandes peregrinações se fizeram aos locais sagrados, em que Deus garantira a dízima, os bens dos conventos e a perenidade das classes dominantes. Povo e nobreza associaram-se nessa devoção, destinada a exorcizar a "pestilenta cáfila dos pedreiros" e a promover o ódio às Cortes, onde eles "campeavam". Quanto a insurreição armada começou uns meses depois, trazia já consigo uma sobrenatural legitimidade.
Em 1915 e 1916 os pastorinhos Lúcia ... Jacinta e Francisco ..., viram oito vezes, em vários sítios da freguesia de Fátima, um anjo, que declarou ser o anjo de Portugal. Ao princípio, o anjo não era muito nítido e não dizia nada. Pouco a pouco, porém, foi-se definindo e explicando. De acordo com a ortodoxia, estas visitas preparavam os acontecimentos de mais consequências que se seguiram. (...) Entre Maio e Outubro de 1917 a Virgem apareceu quatro vezes (...) Alegadamente, a Virgem comunicou que a Segunda Guerra Mundial seria "horrível", uma ideia muito compreensível quando a primeira mostrava diariamente o seu horror, e preveniu também que a Rússia revolucionária se preparava para subverter o mundo, coisa que os jornais de Lisboa publicavam na primeira página, dia sim, dia não, desde Fevereiro. As profecias (...) resumiam as preocupações e a angústia do conservadorismo português da época. (...) reflectiam perfeitamente as opiniões e os sentimentos do padre médio, esmagado pelo triunfo terreno do mal, tremendo com a perspectiva de novas catástrofes e sonhando com a eventual conversão dos pecadores. Que Deus partilhasse as aflições dos inimigos da República era uma coisa insusceptível de espantar o clero português de 1917." (pp. 115-117)
E há uma segunda característica deste livro que fala comigo. Isto décadas depois de ter aprendido isso da "objectividade" e "subjectividade" no discurso das ciências sociais, suas fronteiras e namoros. É que o tom de Vasco Pulido Valente é - constantemente, e à excepção deste curto "... gente séria, católica e ordeira que o radicalismo de Afonso Costa horrorizava." (p. 25) decerto inconsciente avatar de um certo "bom povo português" - de um enorme desprezo pelos agentes da história. Populares ou graúdos, políticos e anónimos, monárquicos ou republicanos de qualquer tendência, turba ou cáfila, é tudo gente "patética", "miserável", incompetente. São páginas e páginas de uma enorme superioridade do narrador, de uma enorme moralização (des-valorização) sobre o que (quem) fala. Ora aprendemos nós a desconfiar dos "engajados", dos "exotizados" (então tontos antropólogos apaixonados pelos seus nativos - dantes - ou pelas suas minorias exploradas/discriminadas - hoje - é um festival constante) para cair na esparrela inversa? Ou seja, na mesma?
jpt
[Blood Work]
Agora que espero Invictus, de Clint Eastwood a angústia assalta-me. Coisa da idade, a descrença. Essa que me leva a duvidar (a desesperar?) de que ali cumprirei as minhas expectativas. Pois não poderiam elas ser mais altas. Como?, se se trata do modelo de realizador (o homem que sempre alumia), do melhor dos políticos (e dos homens?), do maior dos jogos?
Por isso vou acalmando a expectativa na companhia deste magnífico livro, que mão muito amiga me trouxe há algum tempo e que vivamente recomendo:
[Maria João Madeira (org.), Clint Eastwood: Um Homem com Passado, Lisboa, Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema, 2008]
Nele uma bela entrevista a Clint Eastwood (realizada por Nicolas Saada e Serge Toubiana), um conjunto de suas declarações sobre vários dos seus filmes (seleccionadas pela organizadora do livro), uma excelente "cinebiografia" do mestre também da autoria de M.J. Madeira ("O Contador de Histórias"), a sua cinematografia. E múltiplas fotografias. E ainda sete outros textos - os quais ainda não terminei - dedicados a Eastwood, e que chegam com a autoria de Manuel Cintra Ferreira, Fabien Gaffez, João Bonifácio, Vasco Câmara, Kent Jones, Luis Miguel Oliveira, Joana Ascensão (neste último caso um belíssimo texto em fotogramas) . Edição da Cinemateca, quem não tem o livro (nem as minhas maravilhosas amigas ofertadoras) faça o favor de ir lá comprar.
jpt
[Nina Berbérova, A Acompanhadora, Ambar, 2003, tradução de António Pescada]
Sónetchka é a jovem pianista acompanhante da bem sucedida cantora Maria Nikoláevna Trávina. Feia, sem brilho, sem particular talento, esta filha ilegítima de uma modesta professora de piano parte com a sua protectora (a cantora) para Moscovo no tempo da revolução comunista. E daí para Paris, o exílio russo dos anos 20. Sempre presente o constante ciúme, nem sequer racionalizado, da pianista pela Trávina, à qual deve o desafogo. Um ciúme cego, manso, que a levará a tramar a perdição da sua protectora, ainda que tal não ocorra - nem para tal tem talento. A Trávina partirá, no seu sucesso musical e amoroso. Deixando-a para trás, e sem a ter realmente entendido, ela que é personagem vazia até da sua própria auto-compreensão. Do livro fica-me um eco da pobreza mental real, do vazio existente. De que nem nos apercebemos - o dos outros, o nosso próprio.
jptO outro dia a bater teclas para aqui de repente lembrei-me dos relógios de cuco de "O Terceiro Homem" (Carol Reed, 1949). Um maravilhoso soco contra o "politicamente correcto" (avant la lettre) saído da boca e da mente de Orson Welles, pois a tirada não estava no argumento original do filme protagonizado por Joseph Cotten mas que Welles abrilhantou. As maravilhas do youtube trazem-nos a casa:
(The Third Man......The.Cuckoo Clock)
Para quem não se lembre (ou nunca o tenha visto) o filme provém de uma história escrita por Graham Greene, a qual ascendeu a livro: O Terceiro Homem (aqui a edição portuguesa, Europa-América, 1977, tradução de Ana Maria Sampaio). E tendo-me lembrado da história lá fui mais uma vez reler o livro.
Já o sabia mas é sempre bom recordar isso. Este é um bom exemplo a utilizar contra os literatos furiosos que dizem ser um livro sempre melhor do que o filme que origina. Neste caso - como em tantos outros, onde nem atentamos no livro original, ali escondido no genérico - um pequeno livro originou um grande filme (é certo que com a ressalva que o texto foi escrito em função do filme): nele não está a espantosa Viena negra pós-guerra do filme nem tampouco a personagem do vilão tem a densidade e a verve, a crueza, que no filme adquiriu e a este deu fama.
Ainda assim é Greene, a culpa e a redenção como hipótese. E a falsa moralidade, um pouco. O protagonista Rollo Martins é um modesto escritor de policiais (um pouco um alter ego de Greene, em registo de auto-derisão) que chega à Viena do pós-guerra, chamado por Lime o seu idolatrado amigo de juventude (Welles no filme). Para descobrir não só que este é um criminoso como apenas o quer usar, usando-se do apelo a uma afinal falsa amizade. Assim Rollo, e em nome de uma causa justa (Lime trafica medicamentos escassos), acaba por o matar. No fundo levado pela descoberta de não ser amado (amizado, seria melhor dito, mas não há em português). Onde está a culpa? A imoralidade? Com toda a certeza que em Rollo, inocente-sem-o-ser, aparente braço da justiça. E está tudo no princípio do livro, encapotado num "Nunca nos habituamos a ser menos importantes para as outras pessoas do que elas são para nós" (23). Depois é uma história sobre o despeito, o ciúme entre homens.
jpt
[Italo Svevo, Um Embuste Perfeito, Quasi, 2008, tradução de Vasco Gato]
Mario Samigli é um literato triestino de sessenta anos. Publicou na juventude um romance, esquecível e esquecido. Desde então dedica-se à escrita de fábulas anódinas, e a uma vida casta, vazia e rotineira, habitando na companhia de seu irmão mais velho, Giulio, única audiência das suas construções literárias. Tudo isso nada lhe pesa, convicto que está da sua futura celebridade, da grandeza da sua obra: espera, calmamente, o seu reconhecimento, e disso retira uma quase-muda sensação de superioridade face aos demais e uma satisfação generalizada face à vida. Um dia, em pleno final da I Guerra Mundial (aquando da tomada de Trieste aos alemães-austríacos), um seu conhecido, Gaia um caixeiro-viajante popularucho, e que também tivera os seus devaneios poéticos na juventude, lança-lhe um embuste: uma celebrada editora internacional anunciara-lhe o propósito de editar o romance de Semigli. Pouco depois o pobre escritor descobre que tudo não passa de um embuste, ridicularizando-o.
Mas Svevo é aqui pacato, trata com desvelo as suas personagens, poupa-lhes sofrimentos extremados e desilusões radicais. Semigli continuará o seu percurso literário, aceitando a condição doméstica da sua literatura, as pobres fábulas partilhadas como registo de amor com seu irmão.
No final, de imediato resmungo com a docilidade do livro, sem o abismo que prometia esta trama sobre a crença no sucesso, sua absorção, sobre a realidade da constante desilusão humana. Mas depois solidarizo-me, eu afinal Semigli. Pois não teria Svevo, se escrevesse hoje, feito do protagonista um mero bloguista?
jptNunca percebi o hábito corrente (e muito vísivel) de transportar livros grandes (muitas vezes intitulados best-sellers) para serem lidos nas férias. Sempre me pareceu que a ventania arenosa, as cíclicas idas a banhos, as caminhadas desentorpecedoras, as cervejas muitas, as besuntadelas de creme protector, o apelo das crianças e os dos vendedores ambulantes, o "esplanadismo", uma-que-outra beleza que passa, enfim um não sei quantas coisas que vão acontecendo nesses feriados, essa estafa de estar em férias, implicam que o pobre leitor vai perdendo o fio à meada literária (presumindo que esta existe), confundindo personagens, esquecendo tramas, trocando episódios, derivando pensamentos, tudo aquilo que presumo se vá acumulando nas centenas de páginas quando agregadas em monovolume. E já nem falo do peso do livro, a transportar no seio de toda a tralha inútil que acompanha o veraneante.
Em assim sendo para mim as férias são o momento de ler pequenos textos, o sempre temido livro de poesia, os mais que amados contos curtos, até a novela, as crónicas. Coisas de andar na mão, até no bolso, próprio ou no da mochila, de se ler aos bocados com vagares. E até, ao sol ou às estrelas, de ficar a ruminar algo que se acabou de acabar, fruir. Sem ficar para o dia seguinte ...
Vem tudo isto a propósito da recente ida a Inhambane, mais exactamente à praia de Barra. Onde encetei o saco por este Tolstoi (A Morte de Ivan Ilitch, Quasi, 2008, tradução de Adolfo Casais Monteiro).
Para quem não leu resumo que o entretanto falecido Ivan Ilitch é um homem de qualidade, juiz competente, cumpridor de obrigações profissionais e sociais. Certo é que o seu mimetismo mundano afirma o seu desejo de aceitação e, até, de ascensão social. E nesses passos, distraidamente, acaba por esvaziar a sua vida afectiva e espiritual, por não se cumprir como pessoa. Ainda assim caminha sereno pela vida, recompensando-se em pequenos prazeres e rotina laboral. Subitamente, aos ainda jovens 45 anos, cai doente ("um rim flutuante", dir-lhe-ão os médicos) e morre, após breves três meses de terrível agonia (muito realisticamente descrita).
Da trama retiro esse retrato da morte lenta, rara na literatura, principalmente a dos tempos de uma outra medicina. Mas também encontro o velho Tolstoi moralista: pois se Ilitch começa por recusar a morte, a sua pertinência ou justiça, logo os pavores da agonia o fazem entender que desperdiçou a vida devido ao seu apego pelas convenções, a um conservadorismo materialista e hipócrita, no fundo a um desleixo espiritual (simbolizado no episódio da representação de Sarah Bernhardt, a que a família assiste deixando-o só no leito da morte). Neste caminho é o Tolstoi da renúncia que se afirma, mas também o da valorização naturalista (e como tal desvalorizadora) dos camponeses: a única personagem piedosa (solidária, diríamos hoje) é o criado Guerassime, que diante do sofrimento e da morte ostenta uma naturalidade até irreflectida, e por isso verdadeiramente humana. Só nesse camponês - e, já no final, no filho criança Ilitch - o autor reconhece humanidade e amor, ainda não esmagados pelas convenções, pela civilização.
Sorrio no fim diante deste moralismo extremo, adversário da sociedade, elogiando a natureza campónia, assim explicitamente associada à infância. Mas depois não deixo de, incomodado até, me perguntar: "mas que raio faço eu, exactamente aos 45 anos, a ler tamanho drama nas praias de Inhambane"?
"Tragam-me um best-seller!", terei exclamado.
jpt
A propósito da efeméride (o escritor morreu a 21 de Janeiro de 1950) aproveito para lembrar este conjunto de ensaios de George Orwell, "Inside the Whale and Other Essays" (Penguin Books, 1962 [1957]), escritos nos anos 30-40 de XX. Tem textos deliciosos, entre outros "Inside the Whale" onde mergulha nas três primeiras décadas de XX da literatura anglófona, centrado no "Trópico de Câncer" de Miller - o qual não só qualifica de excelente mas, acima de tudo, como exemplar da atitude da época, um "Jonismo", um deixar-se refugiar para o interior da baleia (ainda que Jonas tivesse sido engolido por um peixe, lembra Orwell), submergindo-se na /submetendo-se à realidade. Uma baleia transparente no caso de Miller, explicita ainda, frisando que a "obscenidade" do autor não conta, nem positiva nem negativamente, para a avaliação do seu trabalho. E lembro um fantástico texto "Boys' Weeklies", uma belíssima análise da literatura juvenil, bem precursora de trabalhos similares.
Mas foram as recentes polémicas aqui que me lembraram o livro, em particular o pequeno "Shooting an Elephant", a narrativa de um episódio da estadia do autor como polícia na Birmânia britânica, e da sua radical recusa do mundo colonial, vivida em ambivalência pessoal. Um discurso muito distante dos panfletarismos de causas que tantas décadas depois (o texto é de 1936!) continuam a ser entoados, sem bons e maus, apenas mostrando as duplicidades de sentimentos e práticas em que os indivíduos históricos navegam, e os preconceitos tantas vezes absurdos que os constroem e dinamizam.
E de um outro texto do livro deixo um trecho completamente actual, demonstrando as gentes que nos continuam quotidianamente a entrar "em casa", com grande afã:
jpt"The distinction that really matters is not between violence and non-violence, but between having and not having the appetite for power. There are people who are convinced of the wickedness both of armies and of police forces, but who are nevertheless much more intolerant and inquisitorial in outlook than the normal person who believes that it is necessary to use violence in certain circumstances. They will not say to somebody else, "Do this, that and the other or you will go to prison", but they will, if they can, get inside his brain and dictate his thoughts for him in the minutest particulars. Creeds like pacifism and anarchism, which seem on the surface to imply a complete renunciation of power, rather encourage this habit of mind. For if you have embraced a creed which appears to be free from the ordinary dirtiness of politics - a creed from which you yourself cannot expect to draw any material advantage - surely that proves that you are in the right? And the more you are in the right, the more natural that everyone else should be bullied into thinking likewise." ("Lear, Tolstoy and the Fool", p. 118)
A comemoração dos cinquenta anos de Astérix e Obélix ["O Aniversário de Astérix e Obélix. Álbum de Ouro"] é mais uma triste vez a confirmação do seu estado de orfandade. Apesar da já provecta idade. Uderzo convoca os resistentes asterixianos que insistem em ler o que vai saindo, uma paixão serôdia que mal vai resistindo às constantes desilusões, já velhas de décadas. E, dizem os serviços de vendas (aka marketing e jornais), vai incrementando as vendas a números nunca alcançados pelos verdadeiros "àlbuns de ouro" (os escritos por Goscinny e, justiça seja feita, alguns dos primeiros que fez a solo), o que deixa adivinhar gentes que chegam a este "asterix" sem nunca terem lido o Astérix.
Desta vez o autor vai ao baú e dele retira várias personagens dos álbuns anteriores, chamadas para ilustrarem a festa de aniversário, uma piscadela de olho aos fiéis. Elas por ali passam, mais ou menos paisagem. De resto nada se passa, pormenores desgarrados, sem qualquer consistência (mesmo um velho texto de 1966 de Goscinny sobre as "férias gaulesas", uma glosa aos Guias Michelin, é algo menor e aqui surge metido à força). E um conjunto de pastiches, de quadros célebres e situações, apenas para encher vinhetas, sem mesmo humor. Tudo paupérrimo, ao nível dos últimos álbuns ou ainda pior.
É uma tristeza, Uderzo não tem respeito nem por Goscinny nem por ele próprio, nem pelos seus leitores. Pior do que tudo, não tem qualquer respeito pelos indefectíveis gauleses. É pior do que um romano, nem sequer teme a poção mágica.
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[Sérgio Santimano, Macalange, Niassa oriental, 2001]
Todos teremos imagens de vida. E nessas, talvez, fotografias de vida. Esta é uma das fotografias da minha vida. Ao revê-la exposta, agora na Bienal TDM 2009, logo a paixão disse "presente". É paixão, não tem qualquer argumentação que a ancore. "Bigger than life" dizia-se do cinema quando ele o era, "Deeper than life" direi eu desta "(Mulher de) Macalange" encontrada no seu quotidiano percurso ao celeiro pelo Sérgio Santimano.
A fotografia moçambicana produziu alguns símbolos - e nesse sentido produziu a nação, construíu a identidade por via simbólica. Para cada era haverá um ou outro ícone particular: "os lavabos" e o "ferro em brasa" de Ricardo Rangel, o "banho dos soldados" de Kok Nam (que abaixo deixo), são fotos que considero particularmente relevantes. E se Rangel foi um grande reporter-narrador de Moçambique já a Kok Nam vejo-o, fundamentalmente, como um pintor de ícones - algo que obrigará à recolha da sua obra em livro, o que tarda -, bem adequado à época do seu apogeu fotógrafo, a do voluntarismo pós-independência.
[Kok Nam, "Sem título, Rio Révue, Manica, 1981". Reproduzida em Bruno Z'Graggen, Grant Lee Neunburg (orgs.) Iluminando Vidas. Ricardo Rangel e a Fotografia Moçambicana, Christoph Merian Verlag, 2002]
[Ricardo Rangel, (rapaz marcado com ferro). Reproduzida em Ricardo Rangel Fotógrafo, Éditions de l'Oeil, 2004]
[Ricardo Rangel, "Casas de Banho. Onde só o negro podia ser criado e só o branco era um homem, Lourenço Marques, 1957". Reproduzida em Bruno Z'Graggen, Grant Lee Neunburg (orgs.) Iluminando Vidas. Ricardo Rangel e a Fotografia Moçambicana, Christoph Merian Verlag, 2002]
Mas para mim, indivíduo aqui imigrado, há 3 fotografias moçambicanas que me são cruciais, que me construíram a auto-imagem, meio auto-reconhecimento, meio auto-embelezamento: uma "Aldeia Comunal" de Kok Nam (que vi na sua exposição individual da Photofesta, e da qual nunca consegui recuperar), a crucial "Apetecido Quintal de Caniço" de Rangel - as quais reproduzo abaixo -, e esta "Macalange". Um trio que faz o "meu" Moçambique. Ou melhor, me faz em Moçambique.
[Ricardo Rangel, "Apetecido Quintal de Caniço". Reproduzida em Ricardo Rangel, Pão Nosso de Cada Noite, Marimbique, 2004]
A (Mulher de)"Macalange" de Sérgio Santimano pertence a uma exposição individual dedicada à província do Niassa, que tem sido apresentada de forma itinerante. E está reproduzida - é apenas assim que a possuo - no livro "Terra Incógnita", publicado na Suécia em 2006, contendo fotografias de Sérgio Santimano e textos de Albino Magaia, Luís Carlos Patraquim, Bosse Hammarstrom, Henning Mankell.
É fruto de um longo trabalho de pesquisa, repetidas viagens à província. Um projecto possibilitado pelo apoio da "cooperação" sueca, penso que inscrito num esforço de testemunhar o papel desenvolvimentista que esta teve (e penso ainda ter) na província - o que marcará o livro, que tem como ponto fraco algum excesso de imagens (algumas pobres páginas com oito fotos cada), talvez no intuito de mostrar trabalho. Do patrocinador, do fotógrafo.
Mas esse é ponto fraco. De resto o livro é bem apetecível. Pois se "Fotografar é assumir uma responsabilidade. As imagens que ficam para trás são rastos importantes para o futuro." (Mankell) o que Santimano deixa, responsavelmente, não é apenas um conjunto de postais sobre a beleza natural do Niassa (ainda que aqui e ali ela surja, avassaladora). É o mundo humano, feito do camponês, como o espantoso "homem emergindo do rio, que não é Narciso" (Patraquim?). Mas também, e nisso rompendo com o constante e atávico olhar exoticizador dos fotógrafos em bolandas, com um mergulho no trabalho industrial do Niassa, de trazer a sua densidade, beleza. Essa a "responsabilidade" do Sérgio Santimano, a de afastar sem hesitação a folclorização. Do Niassa, do mundo. E, só assim, de o representar.
Também por isso, talvez por isso, toda a minha paixão por esta (Mulher de)"Macalange".
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Em registo leve-leve um pouco dedicado ao olhar cinematográfico sobre o mundo colonial. Pois acabo de rever este delicioso Bhowani Junction (1956) - e vejam as imagens seguintes, porventura recordem-nas. O que me fez lembrar os entre-comentários aqui acontecidos, e alguma acidez com que um olhar crítico (ou seja, tentando analisar) sobre o acto cinematográfico foi recebido.
A obra foi filmada no Paquistão, adaptação do livro Bhowani Junction, de John Masters, oficial do exército colonial britânico. Livro que nunca li e como tal é-me impossível traçar o que no filme deriva da sua adaptação, feita por Sonya Levien e Ivan Moffat, dois argumentistas veteranos de Hollywood. Sendo dedicado ao final do Raj britânico, centra-se na história da mestiça anglo-indiana Victoria Jones (Ava Gardner), integrada nos serviços administrativos do exército, e dos conflitos identitários (afectivos) que a situação política lhe provoca. Ou seja, o cenário do filme é a ascensão da independência mas é um cenário motriz da complexidade da personagem, as suas deambulações não são mera ilustração, pretexto, dos eventos narrados ... Assim, e para além da presença (e que presença!) da semi-deusa Ava Gardner, o que o torna interessante é o exemplificar da complexidade que pode (podia) haver no acto cinematográfico sobre o contexto colonial.
Por um lado como o cenário é construído pelo olhar anglófilo. A narração do fim do regime colonial é ancorada nos episódios ligados ao conflito que originaria a formação dos estados da Índia e do Paquistão - e é muito interessante ver, ainda que com os cuidados necessários face ao comparativismo selvagem, que o olhar britânico sobre a descolonização na Índia tanto se centra no conflito hindu-islâmico (neste caso mesmo tantas décadas passadas), um implícito sobrevalorizar da "ordem" anterior (colonial) assim evocada, algo muito similar a tantos discursos portugueses sobre os conflitos pós-independências africanas. É notória a ligação ao discurso inaugural sobre as ocupações, então (e demoradamente) anunciadas como "guerras de pacificação". Ou seja, uma visão do colonialismo entendido como "pacificação" dos locais e dos nativos, imersos num hobbesiano mundo a ser ilustrado pela civilização. E, obviamente, do seu final como o da despacificação nativa, a erupção dos díspares (e irracionais) conflitos.
Mas ainda mais significante quanto à "marca do olhar" que encena a obra é o contraste apresentado entre os mundos psicológicos em confronto - nesse sentido a cena crucial (que está no trailer abaixo) é a do sit-in na estação de caminhos-de-ferro, onde é notório o contraste entre a fleuma "máscula" (segundo o arquétipo), racional, britânica simbolizada no protagonista coronel Savage (Stewart Granger), e no seu culto do individualismo meritocrático, mas também presente nos próprios indianos que com ele ombreiam - obviamente "disciplinados" corporal e psicologicamente, "assimilados" às posturas correctas - e a excitação histérica do lider independentista, não só "feminina" mas também obscurantista, enredado nos preconceitos de casta, desvirtualizadores do valor "indivíduo". Esta é uma oposição estruturante no cinema de então, basta atentar na quantidade de histéricos - quantas vezes dionísicos - "mexicanos" do mundo "western" vergados ao peso dos pilares apolíneos wasp's, aka cow-boys. Para os pouco crentes na presença desta dicotomia estruturante do universo cinéfilo atentem na quantidade de vozes em falsete das personagens masculinas não wasps ao tempo da Velha Hollywood.
É hoje uma trivialidade dizer que George Cukor foi um cineasta de mulheres, exponenciando as habilidades das suas actrizes. Também deste Bhowani Junction se poderá dizer isso, Ava Gardner ascende ou, pelo menos, mantém-se no panteão no qual reina desde essa era. Se cinquenta anos depois podemos vê-la já com uma distância que permite reconhecer um tipo de representação de época (contextos ...), algum do que aquilo que em português se define como "over-acting", dela provém ainda um encanto avassalador - seja no avatar exótico de caqui british colonial, seja no do igualmente excêntrico sari hindu - que presumo à época ter sido absolutamente arrebatador.
Mas não se trata de um passeio da actriz, uma passerelle de sedução. A personagem tem uma evolução provocada pelo processo descolonizador. A desordem política implica a desordem afectiva de Victoria Jones (Ava Gardner), a explosão da sua sensualidade e a complicação da sua afectividade, um processo até tardio (ela já é um pouco velha, como lhe dirá a episódica sogra sikh). Sensualidade e afectividade que são vistas como processos identitários, nunca reduzidos ao melodramático. E é este o interesse do final, que vai para além dos maniqueísmos, caricaturas ou paternalismos que navegam outras obras.
Victoria é uma figura de charneira, um interstício colonial. Sem pureza rácica e pedigree social, filha de um ferroviário - salientando a imagem do proletariado colonial como produtor da mestiçagem. Objecto social de assédio por parte da elite colonial - a tentativa de violação sofrida, climax do filme, às mãos de um oficial britânico não é escudada num qualquer desvario psicológico deste último. O coronel Savage explicita mesmo que era prática essa violência sobre as "raparigas euroasiáticas". Nesse sentido a convulsão política de então despoleta um feixe afectivo e sensual em torno de Victoria e nela mesmo.
O desordenar político, e os conflitos que daí ocorrem, retiram-na da relação certa, do casamento "endogâmico" - com outro mestiço, pois este excessivamente "anglófilo". E projectam-na numa tentativa de reinstalação identitária, num casamento sikh, uma ruptura identitária, uma desordem crassa, do qual foge durante a própria cerimónia matrimonial (a parte menos conseguida do filme). E rompe de novo com a ordem prescrita ao envolver-se com o seu comandante, Savage (Stewart Granger) - "que artigos do regulamento acabámos de violar?", perguntará ela - que lhe trará a sedimentação da identidade britânica - ainda que ele próprio quase um "pied-noir", bisneto de militar do exército da Índia, tem o estatuto social e a pureza rácica que acalmarão as angústias, as desordens de Victoria. Factores que não serão suficientes, pois ela rompe a relação no fim, no happy ending. Fica a busca, no local.
[Para quê este texto? Pois, quando se vê os flamingos, a "África" do "bwana", em particular das décadas recentes, o espectador pode torcer o nariz. Porque já houve filmes, certo que de época, certo que com olhares muito marcados, mas que exploraram muito mais a complexidade das relações coloniais. Não como documentos, sim como cinema (vá lá, abusivamente, até como literatura). Ou seja, bem para além dos Oscares e da "bela fotografia" um espectador pode patear. Ou encolher os ombros, enquanto cospe o milho duro das pipocas.]
(Página com ligações para a galeria dos intervenientes.)
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[Naguib Mahfouz, Akhenaton, o Rei Herege, O Quinto Século, 2007]
O meu primeiro livro de Mahfouz e logo sobre esta intrigante e apaixonante personagem histórica, Akhenaton o faraó monoteísta. Uma completa desilusão. A estratégia narrativa é simplista (uma colecção de entrevistas aos participantes na odisseia de Akhenaton, para daí traçar o seu perfil psicológico). E um enorme rosário de anacronismos: o protagonista, o jovem Miriamon, é o arquétipo do "intelectual", desinteressadamente apaixonado em busca da verdade, essa que paira acima dos homens ou melhor, deles é modal. Os participantes, quase todos enredados numa abordagem psicologista ao anterior faraó (como é possível?), assim explicitamente afirmando que da psicologia individual teria brotado a nova religião. Alguns deles, pró-Amon e pró-Aton, com uma perspicácia sociológica sobre a ligação entre a religião estatal e o controle político da população - o culto politeísta, sob o reino de Amon, visto como forma de controlar a população e de aquisição e controle de bens pela "classe" sacerdotal.. E mais do que tudo, Akhenaton como origem do dualismo, raiz da filosofia ocidental: fala Akhenaton "Tu dás mais importância ao corpo, como se ele fosse tudo, enquanto a verdadeira força está no espírito, pois ele é eterno. Quanto ao corpo, ele é uma estrutura fraca, suja e imoral, que se desmorona com uma simples picada de insecto" (p. 106), um registo que não me parece derivar de um qualquer "afrocentrismo" mas sim das prisões do autor no conceber a espiritualidade, a religião e, em particular, o edifício monoteísta.
Enfim, se é para aludir aos dias de hoje em regime de manifesto, é uma grosseira caricatura. Se é uma tentativa de reconstrução, analítica, é pobre. Muito pobre. Como ficção inexiste.
Edição [muito feia] de O Quinto Selo, com tradução de Adel A. Jabbar Mohammed Daroga.
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