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"…cheguei a um acordo perfeito com o mundo: em troca do seu barulho dou-lhe o meu silêncio…" (R. Nassar)
["Rio Zambeze (AL)"]
Quem somos, senão o que imperfeitamente
sabemos de um passado de vultos
mal recortados na neblina opaca,
imprecisos rostos mentidos nas páginas
antigas de tomos cujas palavras
não são, de certo, as proferidas,
ou reproduzem sequer actos e gestos
cometidos. Ergue-se a lâmina:
metal e terra conhecem o sangue
em fronteiras e destinos pouco
a pouco corrigidos na memória
indecifrável das areias.
A lápide, que nomeia, não descreve
e a história que o historia,
eco vário e distorcido, é já
diversa e a si própria se entretece
na mortalha de conjecturados perfis.
Amanhã seremos outros. Por ora
nada somos senão o imperfeito
limbo da legenda que seremos.
Rui Knopfli - Quem somos
Preciso ser um outro
para ser eu mesmo
Sou grão de rocha
Sou o vento que a desgasta
Sou pólen sem insecto
Sou areia sustentando
o sexo das árvores
Existo onde me desconheço
aguardando pelo meu passado
ansiando a esperança do futuro
No mundo que combato morro
no mundo por que luto nasço
Mia Couto - Identidade
AL
Morreu a 21 de Agosto de 1986
[ilustracao de Jeannette Woitzik]
Amigo
Mal nos conhecemos
Inaugurámos a palavra «amigo».
«Amigo» é um sorriso
De boca em boca,
Um olhar bem limpo,
Uma casa, mesmo modesta, que se oferece,
Um coração pronto a pulsar
Na nossa mão!
«Amigo» (recordam-se, vocês aí,
Escrupulosos detritos?)
«Amigo» é o contrário de inimigo!
«Amigo» é o erro corrigido,
Não o erro perseguido, explorado,
É a verdade partilhada, praticada.
«Amigo» é a solidão derrotada!
«Amigo» é uma grande tarefa,
Um trabalho sem fim,
Um espaço útil, um tempo fértil,
«Amigo» vai ser, é já uma grande festa!
Alexandre O'Neill, in 'No Reino da Dinamarca'
AL
Lusitanos – os únicos que preservam ainda inscritos no seu código genético todos os movimentos guerreiros – nas gestas como nas touradas. Os cavalos, claro, que lusitanos outros do garbo parecem ter-se já esquecido.
["Coudelaria Oliveira e Sousa"]
["Coudelaria Oliveira e Sousa"]
["Coudelaria Oliveira e Sousa"]
A Guerra
E tropeçavam todos nalgum vulto,
quantos iam, febris, para morrer:
era o passado, o seu passado — um vulto
de esfinge ou de mulher.
Caíam como heróis os que não o eram,
pesados de infortúnio e solidão.
(Arma secreta em cada coração:
a tortura de tudo o que perderam.)
Inimigos não tinham a não ser
aquela nostalgia que era deles.
Mas lutavam!, sonâmbulos, imbeles,
só na esp'rança de ver, de ver e ter
de novo aquele vulto
— imponderável e oculto —
de esfinge, ou de mulher.
David Mourão-Ferreira
AL
[Ilustração de Jeannette Woitzik]
Quando meu coração parar desfeito,
Em sombra na profunda sepultura;
E o meu corpo espectral e já perfeito,
Divagar entre o Olimpo e a terra dura;
Quando sentir, enfim, todo o meu peito
A converter-se em luminosa altura;
Eu, aquele fantasma, o claro eleito,
O enviado da vida à morte escura;
Ah, quando, em mim, eu for minha esperança!
Meu próprio ser, divino e redimido;
E minha sombra apenas for lembrança,
Bem longe, em outro mundo transcendente,
À luz dum sol jamais anoitecido,
Serei contigo, amor, eternamente.
Teixeira de Pascoaes
AL
De que são feitos os dias?
- De pequenos desejos,
vagarosas saudades,
silenciosas lembranças.
Entre mágoas sombrias,
momentâneos lampejos:
vagas felicidades,
inatuais esperanças.
De loucuras, de crimes,
de pecados, de glórias
- do medo que encadeia
todas essas mudanças.
Dentro deles vivemos,
dentro deles choramos,
em duros desenlaces
e em sinistras alianças...
Cecília Meireles
AL
Jurando de não Mais em Outra Ver-me
Como quando do mar tempestuoso
O marinheiro todo trabalhado,
De um naufrágio cruel saindo a nado,
Só de ouvir falar nele está medroso;
Firme jura que o vê-lo bonançoso
Do seu lar o não tire sossegado;
Mas esquecido já do horror passado,
Dele a fiar se torna cobiçoso;
Assi, Senhora, eu que da tormenta
De vossa vista fujo, por salvar-me,
Jurando de não mais em outra ver-me;
Com a alma que de vós nunca se ausenta,
Me torno, por cobiça de ganhar-me,
Onde estive tão perto de perder-me.
Luís Vaz de Camões, in "Sonetos"
AL
Camões, grande Camões, quão semelhante
Acho teu fado ao meu quando os cotejo!
Igual causa nos fez perdendo o Tejo
Arrostar co sacrílego gigante.
Com tu, junto ao Ganges sussurrante
Da penúria cruel no horror me vejo;
Como tu, gostos vãos, que em vão desejo,
Também carpindo estou, saudoso amante.
Ludíbrio, como tu, da sorte dura,
Meu fim demando ao Céu, pela certeza
De que só terei paz na sepultura.
Modelo meu tu és ... Mas, ó tristeza! ...
Se te imito nos transes da ventura,
Não te imito nos dons da natureza.
(Bocage)
Cecília Meireles, A Velhice Pede Desculpas in Poemas (1958)
AL
([Tomar], Nova Realidade,s.d. [1966], 1.ª edição, 86 págs.)
Ó minha mãe minha mãe
Ó minha mãe minha amada
Quem tem uma mãe tem tudo
Quem não tem mãe não tem nada
Quem não tem mãe não tem nada
Quem a perde é pobrezinho
Ó minha mãe minha mãe
Onde estás que estou sózinho
Estou sózinho no mar largo
Sem medo à noite cerrada
Ó minha mãe minha mãe
Ó minha mãe minha amada
("A uma mãe não canonizada por nenhuma data oficial nem institucionalizada por nenhuma data oficiosa", p. 75)
Para ouvir.
jpt
[Praia da Carrusca]
Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes.
E eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.
Mas isso era no tempo dos segredos,
era no tempo em que o teu corpo era um aquário,
era no tempo em que os meus olhos
eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco, mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.
Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor,
já se não passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.
Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.
Adeus.
Eugénio de Andrade
AL
[Fotografia de Michael V Manalo]
O Amor Antigo
O amor antigo vive de si mesmo,
não de cultivo alheio ou de presença.
Nada exige nem pede. Nada espera,
mas do destino vão nega a sentença.
O amor antigo tem raízes fundas,
feitas de sofrimento e de beleza.
Por aquelas mergulha no infinito,
e por estas suplanta a natureza.
Se em toda a parte o tempo desmorona
aquilo que foi grande e deslumbrante,
o antigo amor, porém, nunca fenece
e a cada dia surge mais amante.
Mais ardente, mas pobre de esperança.
Mais triste? Não. Ele venceu a dor,
e resplandece no seu canto obscuro,
tanto mais velho quanto mais amor.
Carlos Drummond de Andrade
AL (para DM)
De um amor morto fica
Um pesado tempo quotidiano
Onde os gestos se esbarram
Ao longo do ano
De um amor morto não fica
Nenhuma memória
O passado se rende
O presente o devora
E os navios do tempo
Agudos e lentos
O levam embora
Pois um amor morto não deixa
Em nós seu retrato
De infinita demora
É apenas um facto
Que a eternidade ignora
Sophia de Mello Breyner Andresen, in "Geografia"
AL
[Praia da Carrusca]
Aqui Está minha Vida
Aqui está minha vida - esta areia tão clara
com desenhos de andar dedicados ao vento.
Aqui está minha voz - esta concha vazia,
sombra de som curtindo o seu próprio lamento.
Aqui está minha dor - este coral quebrado,
sobrevivendo ao seu patético momento.
Aqui está minha herança - este mar solitário,
que de um lado era amor e, do outro, esquecimento.
AL
A confusão a fraude os erros cometidosA transparência perdida — o gritoQue não conseguiu atravessar o opacoO limiar e o linear perdidosDeverá tudo passar a ser passadoComo projecto falhado e abandonadoComo papel que se atira ao cestoComo abismo fracasso não esperançaOu poderemos enfrentar e superarRecomeçar a partir da página em brancoComo escrita de poema obstinado?Sophia de Mello Breyner Andresen, in "O Nome das Coisas"AL