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["Rio Zambeze (AL)"] 

Quem somos, senão o que imperfeitamente 
sabemos de um passado de vultos 
mal recortados na neblina opaca, 
imprecisos rostos mentidos nas páginas 
antigas de tomos cujas palavras 

não são, de certo, as proferidas, 
ou reproduzem sequer actos e gestos 
cometidos. Ergue-se a lâmina: 
metal e terra conhecem o sangue 
em fronteiras e destinos pouco 

a pouco corrigidos na memória 
indecifrável das areias. 
A lápide, que nomeia, não descreve 
e a história que o historia, 
eco vário e distorcido, é já 

diversa e a si própria se entretece 
na mortalha de conjecturados perfis. 
Amanhã seremos outros. Por ora 
nada somos senão o imperfeito 
limbo da legenda que seremos. 


Rui Knopfli - Quem somos 
Preciso ser um outro 
para ser eu mesmo 

Sou grão de rocha 
Sou o vento que a desgasta 

Sou pólen sem insecto 

Sou areia sustentando 
o sexo das árvores 

Existo onde me desconheço 
aguardando pelo meu passado 
ansiando a esperança do futuro 

No mundo que combato morro 
no mundo por que luto nasço 

Mia Couto - Identidade


 

AL

publicado às 23:17

Post atrasado

por jpt, em 23.08.11

Morreu a 21 de Agosto de 1986

 

[ilustracao de Jeannette Woitzik]

 

Amigo

 

Mal nos conhecemos 
Inaugurámos a palavra «amigo». 

«Amigo» é um sorriso 
De boca em boca, 
Um olhar bem limpo, 
Uma casa, mesmo modesta, que se oferece, 
Um coração pronto a pulsar 
Na nossa mão! 

«Amigo» (recordam-se, vocês aí, 
Escrupulosos detritos?) 
«Amigo» é o contrário de inimigo! 

«Amigo» é o erro corrigido, 
Não o erro perseguido, explorado, 
É a verdade partilhada, praticada. 

«Amigo» é a solidão derrotada! 

«Amigo» é uma grande tarefa, 
Um trabalho sem fim, 
Um espaço útil, um tempo fértil, 
«Amigo» vai ser, é já uma grande festa! 

Alexandre O'Neill, in 'No Reino da Dinamarca'

 

AL

publicado às 01:44

Viagens na minha terra III

por jpt, em 11.08.11

Lusitanos – os únicos que preservam ainda inscritos no seu código genético todos os movimentos guerreiros – nas gestas como nas touradas. Os cavalos, claro, que lusitanos outros do garbo parecem ter-se já esquecido.

 

["Coudelaria Oliveira e Sousa"]

 

["Coudelaria Oliveira e Sousa"]

 

["Coudelaria Oliveira e Sousa"]

 

A Guerra

 

E tropeçavam todos nalgum vulto, 
quantos iam, febris, para morrer: 
era o passado, o seu passado — um vulto 
de esfinge ou de mulher. 

Caíam como heróis os que não o eram, 
pesados de infortúnio e solidão. 
(Arma secreta em cada coração: 
a tortura de tudo o que perderam.) 

Inimigos não tinham a não ser 
aquela nostalgia que era deles. 
Mas lutavam!, sonâmbulos, imbeles, 
só na esp'rança de ver, de ver e ter 
de novo aquele vulto 
— imponderável e oculto — 
de esfinge, ou de mulher. 

David Mourão-Ferreira

 

AL

publicado às 20:01

Felicidade

por jpt, em 08.08.11
Pela flor pelo vento pelo fogo Pela estrela da noite tão límpida e serena Pelo nácar do tempo pelo cipreste agudo Pelo amor sem ironia - por tudo Que atentamente esperamos Reconheci tua presença incerta Tua presença fantástica e liberta 
Sophia de Mello Breyner AndresenAL (para DM)

publicado às 00:28

Depois da vida

por jpt, em 26.07.11

[Ilustração de Jeannette Woitzik]

 

Quando meu coração parar desfeito,
Em sombra na profunda sepultura;
E o meu corpo espectral e já perfeito,
Divagar entre o Olimpo e a terra dura;

Quando sentir, enfim, todo o meu peito
A converter-se em luminosa altura;
Eu, aquele fantasma, o claro eleito,
O enviado da vida à morte escura;

Ah, quando, em mim, eu for minha esperança!
Meu próprio ser, divino e redimido;
E minha sombra apenas for lembrança,

Bem longe, em outro mundo transcendente,
À luz dum sol jamais anoitecido,
Serei contigo, amor, eternamente.


Teixeira de Pascoaes

 

 

AL

publicado às 01:58

Post misto e confuso sobre saudade

por jpt, em 21.06.11

 

De que são feitos os dias? 
- De pequenos desejos, 
vagarosas saudades, 
silenciosas lembranças. 

Entre mágoas sombrias, 
momentâneos lampejos: 
vagas felicidades, 
inatuais esperanças. 

De loucuras, de crimes, 
de pecados, de glórias 
- do medo que encadeia 
todas essas mudanças. 

Dentro deles vivemos, 
dentro deles choramos, 
em duros desenlaces 
e em sinistras alianças...

 

Cecília Meireles

 

AL

publicado às 09:23

Camões em discurso directo

por jpt, em 10.06.11

Fotografia de Miguel Valle de Figueiredo

Jurando de não Mais em Outra Ver-me

 

Como quando do mar tempestuoso 
O marinheiro todo trabalhado, 
De um naufrágio cruel saindo a nado, 
Só de ouvir falar nele está medroso; 

Firme jura que o vê-lo bonançoso 
Do seu lar o não tire sossegado; 
Mas esquecido já do horror passado, 
Dele a fiar se torna cobiçoso; 

Assi, Senhora, eu que da tormenta 
De vossa vista fujo, por salvar-me, 
Jurando de não mais em outra ver-me; 

Com a alma que de vós nunca se ausenta, 
Me torno, por cobiça de ganhar-me, 
Onde estive tão perto de perder-me. 

 

Luís Vaz de Camões, in "Sonetos"

 

AL

publicado às 23:49

Dia de Camões

por jpt, em 10.06.11

 

Camões, grande Camões, quão semelhante

Acho teu fado ao meu quando os cotejo!

Igual causa nos fez perdendo o Tejo

Arrostar co sacrílego gigante.

 

Com tu, junto ao Ganges sussurrante

Da penúria cruel no horror me vejo;

Como tu, gostos vãos, que em vão desejo,

Também carpindo estou, saudoso amante.

 

Ludíbrio, como tu, da sorte dura,

Meu fim demando ao Céu, pela certeza

De que só terei paz na sepultura.

 

Modelo meu tu és ... Mas, ó tristeza! ...

Se te imito nos transes da ventura,

Não te imito nos dons da natureza.

 

 

 (Bocage)

publicado às 17:30

Lamento do meu País

por jpt, em 13.05.11

 

Photo by Robert and Shana Parkeharrison
A Velhice Pede Desculpas
Tão velho estou como árvore no inverno, 
vulcão sufocado, pássaro sonolento. 
Tão velho estou, de pálpebras baixas, 
acostumado apenas ao som das músicas, 
à forma das letras. 

Fere-me a luz das lâmpadas, o grito frenético 
dos provisórios dias do mundo: 
Mas há um sol eterno, eterno e brando 
e uma voz que não me canso, muito longe, de ouvir. 

Desculpai-me esta face, que se fez resignada: 
já não é a minha, mas a do tempo, 
com seus muitos episódios. 

Desculpai-me não ser bem eu: 
mas um fantasma de tudo. 
Recebereis em mim muitos mil anos, é certo, 
com suas sombras, porém, suas intermináveis sombras. 

Desculpai-me viver ainda: 
que os destroços, mesmo os da maior glória, 
são na verdade só destroços, destroços. 

Cecília Meireles, A Velhice Pede Desculpas in Poemas (1958)

 

AL 

publicado às 01:29

Entrada nunca atrasada

por jpt, em 04.05.11

([Tomar], Nova Realidade,s.d. [1966], 1.ª edição, 86 págs.)

 

Ó minha mãe minha mãe 
Ó minha mãe minha amada 
Quem tem uma mãe tem tudo 
Quem não tem mãe não tem nada 

Quem não tem mãe não tem nada 
Quem a perde é pobrezinho 
Ó minha mãe minha mãe 
Onde estás que estou sózinho 

Estou sózinho no mar largo 
Sem medo à noite cerrada 
Ó minha mãe minha mãe 
Ó minha mãe minha amada

 

 

("A uma mãe não canonizada por nenhuma data oficial nem institucionalizada por nenhuma data oficiosa", p. 75)

 

Para ouvir.

 

 

jpt

publicado às 22:28

O amor esse pecado

por jpt, em 03.05.11

[Praia da Carrusca]

 

Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes. 
E eu acreditava. 
Acreditava, 
porque ao teu lado 
todas as coisas eram possíveis. 

Mas isso era no tempo dos segredos, 
era no tempo em que o teu corpo era um aquário, 
era no tempo em que os meus olhos 
eram realmente peixes verdes. 
Hoje são apenas os meus olhos. 
É pouco, mas é verdade, 
uns olhos como todos os outros. 

Já gastámos as palavras. 
Quando agora digo: meu amor
já se não passa absolutamente nada. 
E no entanto, antes das palavras gastas, 
tenho a certeza 
que todas as coisas estremeciam 
só de murmurar o teu nome 
no silêncio do meu coração. 

Não temos já nada para dar. 
Dentro de ti 
não há nada que me peça água. 
O passado é inútil como um trapo. 
E já te disse: as palavras estão gastas. 

Adeus. 

 

Eugénio de Andrade

 

AL 

publicado às 00:45

O Amor Antigo

por jpt, em 28.04.11

[Fotografia de Michael V Manalo]

 

O Amor Antigo

 

O amor antigo vive de si mesmo, 
não de cultivo alheio ou de presença. 
Nada exige nem pede. Nada espera, 
mas do destino vão nega a sentença. 

O amor antigo tem raízes fundas, 
feitas de sofrimento e de beleza. 
Por aquelas mergulha no infinito, 
e por estas suplanta a natureza. 

Se em toda a parte o tempo desmorona 
aquilo que foi grande e deslumbrante, 
o antigo amor, porém, nunca fenece 
e a cada dia surge mais amante. 

Mais ardente, mas pobre de esperança. 
Mais triste? Não. Ele venceu a dor, 
e resplandece no seu canto obscuro, 
tanto mais velho quanto mais amor. 

 

Carlos Drummond de Andrade

 

AL (para DM)

publicado às 02:52

Vidas passadas

por jpt, em 22.04.11

De um amor morto fica
Um pesado tempo quotidiano
Onde os gestos se esbarram
Ao longo do ano
De um amor morto não fica
Nenhuma memória
O passado se rende
O presente o devora
E os navios do tempo
Agudos e lentos
O levam embora
Pois um amor morto não deixa
Em nós seu retrato
De infinita demora
É apenas um facto
Que a eternidade ignora

Sophia de Mello Breyner Andresen, in "Geografia"

 

AL

publicado às 03:40

Apresentação

por jpt, em 20.04.11

[Praia da Carrusca]

 

Aqui Está minha Vida

 

Aqui está minha vida - esta areia tão clara
com desenhos de andar dedicados ao vento.
Aqui está minha voz - esta concha vazia,
sombra de som curtindo o seu próprio lamento.
Aqui está minha dor - este coral quebrado,
sobrevivendo ao seu patético momento.
Aqui está minha herança - este mar solitário,
que de um lado era amor e, do outro, esquecimento.

 

AL

publicado às 00:04

Os erros

por jpt, em 02.04.11
A confusão a fraude os erros cometidosA transparência perdida — o gritoQue não conseguiu atravessar o opacoO limiar e o linear perdidosDeverá tudo passar a ser passadoComo projecto falhado e abandonadoComo papel que se atira ao cestoComo abismo fracasso não esperançaOu poderemos enfrentar e superarRecomeçar a partir da página em brancoComo escrita de poema obstinado?
Sophia de Mello Breyner Andresen, in "O Nome das Coisas"AL

publicado às 12:58


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