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"…cheguei a um acordo perfeito com o mundo: em troca do seu barulho dou-lhe o meu silêncio…" (R. Nassar)
Três ou quatro vezes por ano encontro o António Cabrita, não mais do que isso. Bebe-se uma cerveja, apenas o pretexto que ele usa para me dar o seu último livro editado, que ao homem brotam-lhe palavras e sentidos. Há já uns meses convocou-me para uma sessão no Núcleo de Arte, ia ele falar sobre algo, e lá me entregou este seu "Bagagem Não Reclamada" (Alcance), então acabadinho de sair à rua. São para aí 200 sonetos, escritos ao longo de trinta anos.
Eu sou um fraco leitor de poesia. Talvez porque preguiço, engasgo-me, falta-me ali o boy meets girl, não ascendo. Mas não só por isso. Li algures, ou disseram-me, ou invento agora porque acho que me fica bem, que os poetas dizem que dizem o futuro, quais oráculos ("praticantes de medicina tradicional" como por cá convém chamar) e desagrada-me isso, descreio, acho-os se assim arrogantes, exijo isso do depois aberto, imperscrutável. Ainda assim vou lendo, para me comprazer na prova da minha verdade.
Dizem-me agora estar o Cabrita aleijado, atropelado, poeta sobrevivente, lamentando-se de braço ao peito, feito canhoto por enquanto. E arrepio-me, na memória deste seu soneto
Método de caligrafia para a mão esquerda
Não a poupes, gasta o mais possível
a tua morte. Sê um perdulário, se a idade
for um fogo que não pudeste extinguir
não te demova a dor. Palpa-a,
deixa que radie, e que esbraseie
como tudo o que envolve a pedra: o ar,
o pavio da pele, o sangue cujo frémito
arboresce a noite; deixa que no interior
da íris, se isole e canse, a recuperar
a simpatia que já foi sua, o apego
de uma cunha à mesa da noite.
Mantê-la debruçada no parapeito
da preguiça é o teu ofício, e nunca
te arrepiem as unhas roídas de sono.
Afinal oráculo ...? Insonio-me. E se assim é tudo me piora, será que o homem entrevê mesmo?, quando chego a isto, sei lá a quem ele horizonta, temo:
Agrafa a noite agrafa a manhã
à luz: delata as mitologias
que às golfadas
levantaram o arco da ilusão.
A morte rápida é castigo
muito leve para os ímpios,
morrerás exilado
errante, longe do solo natal
- o salário que um ímpio
merece escreveu Eurípides,
a quem imito, enquanto
me ardem ossos
e o ágrafo desejo me
rebita algum consolo