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"…cheguei a um acordo perfeito com o mundo: em troca do seu barulho dou-lhe o meu silêncio…" (R. Nassar)
Esta semana, num meio da tarde, foi assim que fui detido e algemado à porta de casa. Algo profundamente humilhante, o mais humilhante que me aconteceu na vida, uma situação para a qual não posso simular qualquer "panache". Pois não ocasionada numa reclamação pública, em defesa de causa ecológica, cívica, religiosa, uma indignação política, alguma militância, algo que me servisse retoricamente para doirar o ocorrido. Apenas uma minudência de trânsito: o amigo que me (nos) transportava reentrara no carro para melhor o estacionar, fizera uma breve marcha-atrás distraidamente sem cinto de segurança. Seguiu-se um longo vasculhar. Os dois amigos, moçambicanos, que nos acompanhavam espantavam-se num "estes são piores do que os nossos polícias", e sabemos como são complexas as actuais relações da PRM com os automobilistas. Ao fim de um quarto de hora, e face ao olhar desalentado do nosso condutor, reaproximei-me da zona para um mero relativo ombrear, quiçá a partilha de um cigarro. Seguiu-se um surpreendente festival de pesporrência verbal e corporal, uma atitude policial totalmente descalibrada face à situação, surpreendendo para não dizer que afligindo os vizinhos que ali passavam.
Fui identificado. Quando, finalmente, me foram devolvidos os documentos confirmei a esquadra a que pertencia aquela equipa e informei que iria apresentar queixa. E disse, indignado com tudo aquilo, em particular com aquela caricatura de furriel miliciano aos gritos com um pobre instruendo em paradas do antigamente, "que isto é do caraças!". De imediato fui detido, algemado e conduzido à esquadra. Onde fiquei algemado a um banco durante três horas. Ao fim de duas horas, a mão direita já dormente lá me realgemaram a esquerda. Estando aberta a porta do gabinete do graduado de serviço ouvi que o objectivo inicial era uma acusação de injúrias e de resistência à autoridade. Mas alguém, porventura o próprio graduado de serviço, disse que para uma acusação de resistência eu deveria ter sido detido noutro momento. E assim apenas restou a acusação de injúrias, a qual afirma que os "mandei para o caralho" e que repeti "isto é sempre a mesma merda".
Algum tempo depois assinei o auto, após me ter sido afiançado que isso não implicaria a minha anuência com o seu conteúdo. Fui então desalgemado. Também então as vozes iradas e tonitruantes apodando-me de "sô José" se desenrugaram e baixaram passando eu a "sô Teixeira". De seguida outros dois agentes, um dos quais graduado, levaram-me a Alcântara para o que apelidaram de "resenha", julgava eu que um resumo das ocorrências. Mas não é o caso, trata-se da identificação criminal, as célebres fotos cara e perfil, tão simbólicas, as totais impressões digitais e até a procura de tatuagens. Algo a que nos submetemos por "livre e espontânea vontade" como me perguntou o agente ali encarregado antes de proceder ao seu trabalho. Confesso que fiquei estupefacto, recusando espontaneamente pois ali coagido. Mas logo, e porque estes três agentes me tratavam com total urbanidade, quase a roçar a simpatia, acedi, num "faça lá o seu trabalho" muito desalentado. E assim fiquei com ficha criminal.
No dia seguinte fui a tribunal. Um juiz assoberbado de trabalho, dadas as férias judiciais, propôs o seu adiamento para daqui a algumas semanas. Nestes dias alguns amigos juristas avisam-me, muito dificilmente escaparei a uma qualquer pena. E ao cadastro subsequente.
Do que penso sobre as balizas da acção policial já aqui botei, dedicando-me então a situações liminares (repudiando os excessos críticos à polícia; repudiando os seus excessos). Não pactuo com os seus ocasionais desregramentos mas também não com as posições anti-institucionalistas, quantas vezes resquícios adolescentes. Como tal nada me move contra o necessário policiamento nem contra os seus agentes. Com alguns dos quais trabalhei ao longo da vida, estabeleci amizade e até partilhei casa. Cresci nos Olivais, exactamente nesta rua onde agora fui detido, esse "melting mot", o caldeirão sociológico do Estado Novo tardio, naqueles anos 70s e 80s prenhes de grupos adolescentes, pequena criminalidade (e não só) e tráfico e consumo de drogas ilegais, cruzei a boémia lisboeta do Cais do Sodré e Bairro Alto naqueles anos 80s. Passei duas décadas em Moçambique em constante contacto com os agentes, tantos deles em demanda de gratificações extra que lhe componham os paupérrimos salários, sem que alguma vez tenha corrompido um agente. E em nenhum lugar, em nenhuma idade, tive problemas com a polícia. Certo que tudo isso, todo este passado, não inibe que me possa eu descontrolar, "borregar". Mas com toda a certeza que me deveria dar (e dá) modos de saber sopesar o que enfrento.
Ficarei agora, aos 51 anos, depois de ser algemado diante de vizinhos que me conhecem desde miúdo, a cumprir alguma pena. Cadastrado. Decerto que por responsabilidade de dois agentes que se relacionam com pacatos cidadãos sob uma bitola desregulada. Mas também, e fundamentalmente, porque algo de errado me está a habitar, a fazer-me incompreender, fraquejar e errar. Talvez, talvez, o que alguns dos amigos de Maputo agora aqui de passagem, e têm sido vários, me dizem ao tomarem conhecimento do estapafúrdio acontecimento, isso do carinhoso "anda-te embora, já não és daqui". Mas ... sair daqui cadastrado? Para onde? A deixar-me assim num desalento (mais) imobilizador.
Caro Zé Teixeira, estou estupefato, mas não surpreendido. Tenho a sensação que “vivemos” num país onde a polícia existe para proteger os delinquentes e os corruptos dos cidadãos comuns, o verdadeiro perigo da sociedade, e não o contrário.