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Algemado

por jpt, em 25.07.15

 

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Esta semana, num meio da tarde, foi assim que fui detido e algemado à porta de casa. Algo profundamente humilhante, o mais humilhante que me aconteceu na vida, uma situação para a qual não posso simular qualquer "panache". Pois não ocasionada numa  reclamação pública, em defesa de causa ecológica, cívica, religiosa, uma indignação política, alguma militância, algo que me servisse retoricamente para doirar o ocorrido. Apenas uma minudência de trânsito: o amigo que me (nos) transportava reentrara no carro para melhor o estacionar, fizera uma breve marcha-atrás distraidamente sem cinto de segurança. Seguiu-se um longo vasculhar. Os dois amigos, moçambicanos, que nos acompanhavam espantavam-se num "estes são piores do que os nossos polícias", e sabemos como são complexas as actuais relações da PRM com os automobilistas. Ao fim de um quarto de hora, e face ao olhar desalentado do nosso condutor, reaproximei-me da zona para um mero relativo ombrear, quiçá a partilha de um cigarro. Seguiu-se um surpreendente festival de pesporrência verbal e corporal, uma atitude policial totalmente descalibrada face à situação, surpreendendo para não dizer que afligindo os vizinhos que ali passavam.

Fui identificado. Quando, finalmente, me foram devolvidos os documentos confirmei a esquadra a que pertencia aquela equipa e informei que iria apresentar queixa. E disse, indignado com tudo aquilo, em particular com aquela caricatura de furriel miliciano aos gritos com um pobre instruendo em paradas do antigamente, "que isto é do caraças!". De imediato fui detido, algemado e conduzido à esquadra. Onde fiquei algemado a um banco durante três horas. Ao fim de duas horas, a mão direita já dormente lá me realgemaram a esquerda. Estando aberta a porta do gabinete do graduado de serviço ouvi que o objectivo inicial era uma acusação de injúrias e de resistência à autoridade. Mas alguém, porventura o próprio graduado de serviço, disse que para uma acusação de resistência eu deveria ter sido detido noutro momento. E assim apenas restou a acusação de injúrias,  a qual afirma que os "mandei para o caralho" e que repeti "isto é sempre a mesma merda".

Algum tempo depois assinei o auto, após me ter sido afiançado que isso não implicaria a minha anuência com o seu conteúdo. Fui então desalgemado. Também então as vozes iradas e tonitruantes apodando-me de "sô José" se desenrugaram e baixaram passando eu a "sô Teixeira". De seguida outros dois agentes, um dos quais graduado, levaram-me a Alcântara para o que apelidaram de "resenha", julgava eu que um resumo das ocorrências. Mas não é o caso, trata-se da identificação criminal, as célebres fotos cara e perfil, tão simbólicas, as totais impressões digitais e até a procura de tatuagens. Algo a que nos submetemos por "livre e espontânea vontade" como me perguntou o agente ali encarregado antes de proceder ao seu trabalho. Confesso que fiquei estupefacto, recusando espontaneamente pois ali coagido. Mas logo, e porque estes três agentes me tratavam com total urbanidade, quase a roçar a simpatia, acedi, num "faça lá o seu trabalho" muito desalentado. E assim fiquei com ficha criminal.

No dia seguinte fui a tribunal. Um juiz assoberbado de trabalho, dadas as férias judiciais, propôs o seu adiamento para daqui a algumas semanas. Nestes dias alguns amigos juristas avisam-me, muito dificilmente escaparei a uma qualquer pena. E ao cadastro subsequente.

Do que penso sobre as balizas da acção policial já aqui botei, dedicando-me então a situações liminares (repudiando os excessos críticos à polícia; repudiando os seus excessos). Não pactuo com os seus ocasionais desregramentos mas também não com as posições anti-institucionalistas, quantas vezes resquícios adolescentes. Como tal nada me move contra o necessário policiamento nem contra os seus agentes. Com alguns dos quais trabalhei ao longo da vida, estabeleci amizade e até partilhei casa. Cresci nos Olivais, exactamente nesta rua onde agora fui detido, esse "melting mot", o caldeirão sociológico do Estado Novo tardio, naqueles anos 70s e 80s prenhes de grupos adolescentes, pequena criminalidade (e não só) e tráfico e consumo de drogas ilegais, cruzei a boémia lisboeta do Cais do Sodré e Bairro Alto naqueles anos 80s. Passei duas décadas em Moçambique em constante contacto com os agentes, tantos deles em demanda de gratificações extra que lhe componham os paupérrimos salários, sem que alguma vez tenha corrompido um agente. E em nenhum lugar, em nenhuma idade, tive problemas com a polícia. Certo que tudo isso, todo este passado, não inibe que me possa eu descontrolar, "borregar". Mas com toda a certeza que me deveria dar (e dá) modos de saber sopesar o que enfrento.

Ficarei agora, aos 51 anos, depois de ser algemado diante de vizinhos que me conhecem desde miúdo, a cumprir alguma pena. Cadastrado. Decerto que por responsabilidade de dois agentes que se relacionam com pacatos cidadãos sob uma bitola desregulada. Mas também, e fundamentalmente, porque algo de errado me está a habitar, a fazer-me incompreender, fraquejar e errar. Talvez, talvez, o que alguns dos amigos de Maputo agora aqui de passagem, e têm sido vários, me dizem ao tomarem conhecimento do estapafúrdio acontecimento, isso do carinhoso "anda-te embora, já não és daqui". Mas ... sair daqui cadastrado? Para onde? A deixar-me assim num desalento (mais) imobilizador.

publicado às 10:03


58 comentários

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De anónimo a 25.07.2015 às 12:10

Incrível!
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De jpt a 26.07.2015 às 09:07

Também me pareceu. Mas tenho recebido várias mensagens narrando episódios relativamente recentes que vão transformando o meu espanto inicial num "crível". E é de lamentar que assim seja
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De José Ponte a 10.09.2015 às 22:49

Mas, o que é que esperava de quem, que se não foi criado num bordel, cresceu lá próximo?
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De umBhalane a 25.07.2015 às 13:09

1.º - A m/profunda solidariedade, e um grande abraço

Depois...há muito pouco tempo tive um filho violentamente agredido dentro da esquadra, com disparo de gás pimenta , algemas, gritos, berros, pontapés e vários.

Não pelos policiais da detenção, que nem sequer o algemaram, por desnecessário.

Cerca de 2 a 3 horas depois por marginal fardado que resolveu ser um rambo.

Apresentei queixa, com Advogado e tudo no meio.

Julgamento em que a atitude corporativista dos demais se sobrepôs, pelo testemunho prestado e orquestrado, a quaisquer ditames da verdade, da cidadania,...

Os Juízes chutaram para canto, após empate técnico.

Aqui o "Zé" pagou cerca de 1.000 aéreos para custas.

Advogado outros cerca de 1.000 euros.

Paga "Zé", e nada de mais ondas.

Maravilhoso Portugal de abril, regime sobre o qual conhece sobejamente a m/opinião.

Isto está bom para falir bancos, roubar os papalvos que tudo pagaram, PAGAM, e assim se vai continuar.

Este mundo é dos espertos, e em abril desabrocharam só espertos.

Emigremos.

Abraço.
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De jpt a 26.07.2015 às 09:09

Inaceitável o que narra e que muito lamento. Surpreende-me também o acto de "Pilatos" da justiça, da qual se esperaria outra coisa em acção quem comporta violência interna a uma esquadra.
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De Carlos Azevedo a 25.07.2015 às 14:04

JPT, vale tudo menos ficar num «desalento (mais) imobilizador». Lute sempre, assim é (também) a vida. Muita força! 
Abraço
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De jpt a 26.07.2015 às 09:11

Sim, com toda a razão o diz. Terá sido mais um resmungo, em tom de lamuria, mesmo jeremíada Abraço
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De Helder Barros a 25.07.2015 às 14:06

Abraço de solidariedade como cidadão de Portugal e faça queixa desta malta que trata muito bem os verdadeiros criminosos e é forte com a gente de bem... resquícios da polícia de Salazar, andam aí tantos...
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De jpt a 26.07.2015 às 09:13

Obrigado pelas palavras. A queixa, como várias pessoas me têm vindo a aconselhar, implicará assistência jurídica [tal como um hipotético recurso da sentença]. Nisso custos que não me são aconselháveis nestes dias. E pouco valerá, nestes casos a tradição (diz-se, julgo, a jurisprudência) é quase taxativa: a palavra de dois agentes de autoridade vale mais do que a de um arguido. Para além do desabafo a queixa de nada me servirá.
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De joão viegas a 26.07.2015 às 18:28

Não percebo porquê. Não exerço em Portugal (sou advogado), mas a realidade não ha de ser tão diferente assim. O crime de injuria vem definido no codigo penal. "Isto é do caraças" não é uma injuria. A questão é saber se o policia tem outra versão e, nesse caso, se a palavra do policia faz fé, e até que ponto, não ha de ser assim tão dificil de elucidar. Houve testemunhas, diz v. no texto. Não ha de ser dificil encontra-las. Quanto ao resto, nem o juiz esta acima da lei, nem a lei, e sobretudo a lei penal, deve permanecer como um mistério para o cidadão comum. Você tem formação superior, ou não ?

Baixar os braços porquê ? O que é que v. se arrisca a ter como pena ? Provavelmente uma pena suspensa, e devem existir regras que permitem pedir para que ela não seja inscrita no cadastro (bom, aqui estou a falar de cor, guiando-me pelo que conheço do sistema onde exerço, mas os seus amigos juristas com certeza poderão ajuda-lo).

Se v. baixa os braços neste caso, porque carga de agua é que a policia havia de desistir de abusar nos outros casos ?

Boas
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De António a 27.07.2015 às 14:19

Vê-se logo que sr. dr. não conhece o "modus operandi" da nossa justiça.
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De jpt a 27.07.2015 às 17:57

Não conheço mesmo, estou-me a estrear
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De anónimo a 27.07.2015 às 14:49

Caro, você não conhece o portugal de hoje, lei? qual lei? qual juiz? qual justiça~?
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De jpt a 27.07.2015 às 17:58

ixe, espero que esteja a exagerar
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De jpt a 25.07.2015 às 15:17

O amigo Pedro Mendes deixou este comentário que eu, inadvertidamente, apaguei. Aqui deixo cópia, aproveitando o seu registo via email:


Fiquei completamente "abazurdido"!!! <br />Palavra que não existe, mas que sempre para mim significou algo acima de qualquer outro adjectivo na língua Portuguesa.<div><font size="3">Mas sabes! É engraçado porque consigo ver o filme...</font><br /><font size="3">Eu conheço-te, não és de te calares com o que vai contra os teus </font>princípios, és um homem intenso, veemente, verdadeiro.<br />E a policia, esta nova policia, que tem ganho poderes ditatoriais, com atitudes de estado novo como temos visto nas televisões, acha que a veemência, a intensidade na defesa dos nossos direitos, é insulto. E pior... porque um bom insulto é libertador e tolerável nos homens, o que é pior é considerarem tudo insubordinação, com direito a algemas, juiz e condenação.<br />Essa policia é que começa a ser um perigo. A que acha que já não é da lei, mas sim a dos bons costumes em que cada um define o seu limite e depois tem a corporação para os defender em caso de erro.<br />E o que irrita mais neste processo. É a incapacidade depois de conseguir levar uma coisa destas para a frente, de processar, de repor a nossa dignidade. Porque a máquina do Estado está tão bem oleada que protege os indignos e deixa ao abandono os indignados, envolvendo estes últimos numa quantidade de processos, impressos, papeis, tempo e dinheiro que ninguém quer ter de experimentar. Portanto... fica tudo na mesma. 


Nós, com uma história para contar e a policia com mais um numero para a estatística, quiçá um louvor pelo números de detenções.


Inacreditável!!! Não tenho como te trazer de novo para Moçambique. Mas se pudesse... trazia-te.


Abraço, Zé Teixeira.


Pedro Mendes.

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De jpt a 26.07.2015 às 09:23

Antes de tudo: um abraço, companheiro, e obrigado pelas palavras.


Quanto ao resto, já mais frio, dias passados: são apenas dois jovens, moços até poderíamos dizer, algo sobreaquecidos. Trabalhando sob alguma pressão ("stress" diz-se) e submersos (também por decisão própria, claro) num caldo cultural que mascara atitudes másculas com posturas histriónicas [é já com um sorriso que te digo que o Dirty Harry nunca grita, mas estas novas gerações já nem conhecem a série]. Ou, de outra forma, não me sinto a viver numa ditadura nem revejo tiques ditatoriais no Estado português. Noto é muita crispação na sociedade (por exemplo, o quão antipáticos são os lisboetas ao primeiro contacto. Depois, se se tiver energia para um sorriso, uma piada, qualquer acto "cachimbo da paz" as pessoas abrem-se ...). Leva lá outro abraço, dirigido até aí à Matola
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De anónimo a 25.07.2015 às 16:55

Comecei a ler e pensei: "Deve estar a contar um sonho..."
Continuei e... "Que sonho mais comprido!..."
Afinal foi real! Realmente estou de acordo com o que é dito num outro comentário: Para os verdadeiros criminosos.. uns docinhos, para os outros umas algemas! Um abraço
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De jpt a 26.07.2015 às 09:25

E amputei a narrativa de vários episódios, alguns até risíveis, acima de tudo denotativos do caldo de desinterpretações policiais. Pois ficaria o texto muito longo ... Obrigado pelas palavras
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De João Melo a 25.07.2015 às 20:44

Caro José Teixeira, deixo-lhe aqui um abraço de total solidariedade.
Se precisar de alguma coisa em que eu possa ajudar conte com isso.
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De jpt a 26.07.2015 às 09:27

Obrigado. Vou cobrar essa ajuda: da próxima vez que eu me transportar até ao Porto irei convocá-la, à ajuda, para indicações sobre a invicta urbe, a ver se alimento a minha (paterna) vertente portuense (que nunca portista). Até breve
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De João Paulo Videira a 25.07.2015 às 23:50

Caríssimo Teixeira, um abraço de total solidariedade. Não se fique, nada de desânimos. A força policial tem de existir, mas é obrigatório o discernimento e o uso adequado da força que, no seu caso, foi desproporcionado até ao absurdo. Estamos juntos!
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De jpt a 26.07.2015 às 09:27

Abraço. E saudades da minha princesa, ainda há pouco falámos de ti.
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De anónimo a 26.07.2015 às 11:53

Forte abraço José, ...
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De jpt a 26.07.2015 às 20:00

obrigado
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De Vasco Coelho a 26.07.2015 às 14:18

Caro Zé Teixeira, estou estupefato, mas não surpreendido. Tenho a sensação que “vivemos” num país onde a polícia existe para proteger os delinquentes e os corruptos dos cidadãos comuns, o verdadeiro perigo da sociedade, e não o contrário.

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De jpt a 26.07.2015 às 20:00

nem tanto ao mar, nem tanto à terra ... Abraço

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