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As Viúvas

por jpt, em 26.05.11


[Tesanj, Bósnia-Herzegovina]

Na prisão do facínora Ratko Mladic reponho um escrito já velho. A propósito de quando trabalhei, em 1996, nas terras que Mladic atormentou.

As viúvas

Um ninho de águias, Tesanj. Cognome de lá, não meu chavão, talvez coisa de tempos de um turismo que naquele então nem pensar. Certo que já era paz, musculada ainda, de músculos sempre retesados por comboios de tropas internacionais em constante desfile. Não num showing the flag, nisso andávamos nós, que para elas o trabalho era mesmo o showing the force. Uma paz assim ainda de mata-bichar ouvindo da vala comum descoberta na véspera e a não querer ir ver “que não é o meu papel” e “abutre não vou pois não sou”, nisso distanciando-me dos meus colegas, os "internacionais" tantos deles exultando no exótico da guerra. E também assim tempo ainda coisa de minas, de quando em vez a rebentar levando alguns, até os de “nós”, ali meros passantes em "missão", e nisso sabê-las num esconsas para não-histórias aos netos. Mesmo sendo parceiro, de súbito percebo-o, em pleno cansaço de estrada, de quem, afinal?, não sabe ler mapas e por isso ouvir, súbito, um “We’re lost!!” em terra batida sem garantia de desminagem, “We?, caralho, We?, agora? militar de merda!!...” e isto sem o dizer pois para quê? nórdicos duns cabrões, ainda que a este a cagança loura lhe morra neste dia, agora mesmo, e num foda-se de cóboi à antiga, e repetindo quesefodas de homem de hoje, decidir, a partir de agora sendo eu chefe, que quem segue o caminho do Sol há-de lá chegar, que não haveremos de explodir aqui hoje - “driver, follow the fucking sun!”, que é tão fácil o "inglês quebrado" sempre unindo tanta origem junta -, chegar até a essas garrafas que quando vazias, e ainda para mais tantas, tão espelho são do nosso medo de afinal meninos. Tenros.

Mas paz, acima de tudo e talvez por esse tudo mesmo, desta gente montanhesa de braços abertos, em abraços de urso feitos de muita aguardente, e obrigatória, comida sempre a deles, e muita, e antes durante e depois cigarros alcatrão, muitos, todos, e nem pensar em retribuir. A darem o pouco dali daquela época, a exigirem dar o pouco de então, que o aceitemos. Coração grande como o tal abraço, gente respeitando-nos mais do que os nossos espelhos o fazem, e dizem-no, porque ali estávamos, naquele “ali” do qual sabiam eles bem mais do que o saberíamos nós, do risco que conheciam eles que corríamos nós. Gente então de “entidades” diziam-lhes e diziam, coisa de meia dúzia de kms montes acima e abaixo da “bósnia” à “sérvia”, e sem querer, uma curvita ou outra apenas, e logo na “croata”, e caminho à frente mais ou menos o mesmo “puzzlar”, labirintos de lugarejos naquilo. E eu, entre o nós, olhando-lhes as “fronteiras” sem as ver, gente quente como nunca sentira, naqueles abraços de urso matando-se por uma moita a mais, carreiro a menos, terra pouca, montanha apertada, montículos de pedras, árvores, riachos talvez, vegetação nada mais do que noutras línguas é capim. Caralho ... Matando-se muito por coisa pouca, diria alguém de fora. Disse-o, eu. E se das terras não víamos as diferenças entre as gentes também não, talvez, talvez do tempo curto por lá, nem um Verão inteiro foi. Nem da língua, essa com tantos nomes para a mesma. Nem dos comes, esses que já disse muitos, nem da tal sempre aguardente. Nem tão pouco da moeda marco, lesta de mão-em-mão, aquele marco se calhar muito causa daquilo tudo, fui-me repetindo.

Gente parecida, repito, lesto visitante. Uma jovem intérprete, claro, pois os seus mais velhos, os da minha idade já então sorria eu, de estrangeiro só sabem o alemão e nunca o russo - e a este mesmo muito nunca, e agora ainda menos, apesar da escola. Muçulmana,  mas nesse seu nisso num assim como as minhas sobrinhas, mesma idade e tudo, até se calhar os modos, ali fugida da cidade maior, já devastada lá da planície. Bonita dos dezassete anos, maquilhada em tons estranhos de escuros, cinzentos e roxos julgo que lembro, sensação que me era de guaches, e eu a estranhar aquele exótico sem poder adivinhar que aquela menina saída da guerra e agora ascendida a montanhesa me avisava as cores vigentes na lisboa do ano seguinte. No sol de fim de tarde chama-me um casaco vermelho na ponte de Tesanj - como não ir? -, ela num cigarro mal fumado de ainda indeciso, ambos em pequena conversa e eu a estragar (de propósito?) o flirt, ou talvez mero devaneio, num regressar ali mesmo inflectindo para o “aren’t you the same?”, e ela juro que estremece, depois olha por sobre a ponte, para além do rio, e sorri-me, de súbito num lento sorriso como se já da minha idade ou até mesmo bem mais, “Na cidade, na minha turma”, ainda menina de liceu a menina, “na minha turma éramos trinta e três. Trinta éramos filhos de casais mistos. E não sabíamos...”.

Não é agora que me vou perguntar se assim era ou do como, resta-me a imagem do absurdo. Fico só, na ponte de Tesanj com aquele casaco vermelho rutilante, pois ela, entretanto, foi algures, esvoaçou no abismo da memória. Mas logo regressa, e se não atira a cabeça para trás não importa pois eu invento-lho. Não a beijo, acho-me ridículo, e é despropositado, pois ainda não tenho idade para lhe beijar a testa. E onde mais o poderei, agora? Assim? Depois, seguimos devagar, sem palavras, cidade abaixo e eu deixo-a no café dos jovens, um dos três barzecos da cidade. Talvez se vá divertir, não o posso adivinhar, perder-se entre os seus, não repetir conversas estafadas, não seguir as curiosidades dos outros. Velhos ou estrangeiros. Ambos, eu?

E sigo, para um dos outros dois cafés-bares. Locais de encerrar dias, e bem cedo, na companhia do patrício da missão. Poucas falas alheias, ou mesmo nenhuma, dada a tal língua que não partilhamos. Acenos sim, até sorrisos. Mas mais pouco, talvez um “hi”, que é “ái”, aqui e acolá. Beber um pouco e ficarmos no comentar, no ver. Ver o também pouco de vilória que nos rodeia, da gente nela. E no suave gostar, terra de mulheres muito, mas mesmo muito bonitas, e ali em costume de saírem sozinhas, grupos de raparigas, muitas e belas. E de, entre os sorrisos, passarem a olhares aos quais não tens coragem de desviar os olhos. “Muçulmanas?” ainda me comentou o patrício, surpreso no início. “Haa ... nada... primas...”, hei-de ter replicado, recordando-nos europeus. Os dois em devaneios, como não?, mas acantonados no recém-casados que somos, e ali muito pouco-pouco, rindo-nos até de nós próprios, a parábola das nozes e dos dentes. Como não?, diante de tanta mulher livre, em terra de tão poucos homens. Mas de noite em noite conhecemos gente, e faz-se mesa, as cervejas são língua franca, sabemo-lo bem. Sorte nossa, entre três ou quatro tipos um deles, uma mão estropiada, fala um inglês, mau, até pior do que o nosso, mas vai traduzindo para todos, entre todos, a alegria de ali estarmos. E de bebermos. Lá para o meio, e isto por causa das tais raparigas que hoje, como nos outros dias, enchem o bar, hei-de perguntar afirmando, se isto de tanta mulher só não será por causa da emigração, terra de montanha os homens seguem ao estrangeiro, não? E ele que sim, para a Alemanha principalmente. E, e nisto até sorri, desvendando um âmago de coragem inesperada desesperada, mostra-nos a mão sem dedos e vai dizendo, “Mas também houve a guerra. Eu combati num pelotão de homens aqui de Tesanj, fui ferido e fui o único que sobrevivi”. Nós ficamo-nos, nem gagos, mas vá lá que hoje não é momento de lutos, uns goles logo e mais umas cervejas, entre histórias da terra, um passado que faz vontades de falar, vontades de ouvir. E de rir, claro.

Eu, entre a música e os copos, ainda sobrevoo a conversa e olho as raparigas, ali divertindo-se. É meu o sobressalto, talvez só meu. São-me agora viúvas. Viúvas solteiras.

Hei-de beber demais.

[14.3.06]

publicado às 21:24



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