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Carlos de Oliveira

por jpt, em 24.11.14

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Nisto da mania de ler as "coisas actuais", de olhar para os escaparates - as novidades e as reedições canónicas - e etc. um tipo distrai-se, esquece-se das coisas necessárias, grandes escritores ou, mais do que isso, de grandes páginas ... Ora vou eu relendo isto, coisa dos anos 1950s, até distraído pois já conheço o enredo e, de súbito, esta pujança:

 

"Uma cabaça de vinagre despejada, os resíduos ácidos que escorrem com dificuldade pelo interior do bojo até pingarem do gargalo, espessos, vagarosos; a mão na espuma que lhe azedava os lábios; boiar numa onda incerta de enjoo e ter sede de repente como se tivesse de repente uma dor; o orvalho da noite poisava-lhe na nuca; podia erguer a cabeça tombada para fora da janela, virar a cara para o céu e beber daquela frescura suspensa pelo espaço; voltou-se com dificuldade e a moinha da água bateu-lhe ao de leve na fronte, nas pálpebras fechadas, foi-se acumulando gota a gota, deslizou em seguida pela face, encarreirou nas asas do nariz, veio depositar-se-lhe ao canto dos lábios; abriu a boca e sorveu a humidade lentamente; de súbito, qualquer lembrança remota parecida com aquilo, dias de chuva, a cabeça fora da janela, a boca aberta a aparar as goteiras do telhado, um perfil de criança recortada ao longe; a cinza da morrinha embaciava a distância, o tempo, mas havia por baixo de tudo, ao fundo das coisas, esse fulgor inapagável, o seu próprio perfil de criança, e muito mais, uma ternura dispersa pela casa paterna, por campos e pessoas, por bichos e por estrelas; o coração talhado numa grande pureza já perdida, a alma ainda livre da condenação do fogo, o corpo onde não acordara ainda o medo à morte, porque lhe era fácil então estender-se para fora da janela e beber alegremente das goteiras. Agora não. O vento impelia o marulho da treva, vinha salpicá-lo duma poeira húmida de ruínas; as costas doíam-lhe de encontro ao  peitoril; mudou de posição, fez um esforço para se endireitar, fincando as mãos no rebordo da janela, e ficou cambaleante, de olhos abertos para a noite, negra de lado a lado: o luar nunca existiu, as estrelas também não, mas onde diabo terei eu visto já luar e estrelas, se nada vejo agora?  O vento arrastava a  poeira, apagava os astros, sumia tudo e na escuridão as coisas fermentavam. Apodreciam. Sabia-lhe mal a boca, um soluço flatulento e choco agitava-o. Deu-lhe vontade chorar, chorar apenas, sem saber de quê. Esfregando os olhos, compreendeu confusamente que estava diante da janela aberta, entontecido e indisposto, que tinha a noite pela frente e que a noite lhe fazia bater os dentes devagar, cheio de frio." (67-69)

publicado às 09:49


4 comentários

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De Carlos Azevedo a 24.11.2014 às 12:51

Gostei muito do livro e da adaptação cinematográfica, levada a cabo por Fernando Lopes.
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De jpt a 24.11.2014 às 17:33

Nunca vi o filme. O livro é realmente muito bom, lera-o há décadas e estou a relê-lo devagar com muito gosto. Soberba escrita. Contida, como devia fazer escola
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De Carlos Azevedo a 25.11.2014 às 04:18

O filme é igualmente contido, sendo que essa contenção amplia, e muito, a sensação de claustrofobia e opressão (a vários níveis) que a história transmite. Se o apanhar, não o deixe escapar. É só uma sugestão, claro.
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De jpt a 26.11.2014 às 13:18

Fica registada, na próxima vez que me deparar com o filme (que é uma referência do cinema português da época) deixar-me-ei defronte dele. Obrigado

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