Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]
"…cheguei a um acordo perfeito com o mundo: em troca do seu barulho dou-lhe o meu silêncio…" (R. Nassar)
(População insurrecta, Budapeste 1956; Fotografia de Erich Lessing)
A 4 de Novembro de 1956 as forças do Pacto de Varsóvia entraram em Budapeste, reprimindo a vontade democratizadora ali efervescente. Correu sangue, bastante. Resistiu e assim reforçou-se a ditadura ali instalada desde o final da II Guerra Mundial. E noutros. Cerca de um ano depois Albert Camus escreveu (completo aqui):
"There are already too many dead on the field, and we cannot be generous with any but our own blood. The blood of Hungary has re-emerged too precious to Europe and to freedom for us not to be jealous of it to the last drop.
But I am not one of those who think that there can be a compromise, even one made with resignation, even provisional, with a regime of terror which has as much right to call itself socialist as the executioners of the Inquisition had to call themselves Christians.
And on this anniversary of liberty, I hope with all my heart that the silent resistance of the people of Hungary will endure, will grow stronger, and, reinforced by all the voices which we can raise on their behalf, will induce unanimous international opinion to boycott their oppressors."
E viria a demorar mais de 30 anos para que algo mudasse naquele país. E em tantos outros dos seus vizinhos.
Neste 4 de Novembro de 2014, em Lisboa, vou a uma reunião de antropólogos. Serão mais de meia centena, pelo contexto e pelo conteúdo etário presumo que seja eu o único não doutorado. Ou seja, não há juniores na sala. O palestrante, um célebre americano, Arthur Kleinman, discorre, apresentando, suportado no sempre irritante power point, um anódino primeiro capítulo de um seu novo livro, qualquer coisa como uma história das ideias polvilhada de assuntos que o interessam. Oriundo da Ivy League alude, com algum pormenor prazeroso, como alguns dos seus antigos alunos e assistentes ascenderam a lugares de relevo nas sedes de Bretton Woods e no governo americano.
Para o final da sessão faz confluir essas suas dimensões, a de mestre formador de elites político-económicas e de intelectual analítico, e incita-nos a combater os efeitos da crise provocada pelo neoliberalismo. Explicita-nos, o mestre, o intelectual, que para tal tarefa não bastará convocar os recursos intelectuais e sociais da “social-democracia”. E que será necessário recorrer aos “comunistas”. As dezenas de meus colegas – decerto até porque entusiasmados com os trechos de citações que haviam lido no power point – aplaudem-no, alguns com notório gáudio.
Calo-me, enfastiado. Sei que de nada valerá perguntar ao velho retórico se para tão magna (e indefinida, já agora) tarefa ideológica e política, essa de combater o “neoliberalismo”, não será também de convocar outras derivas antiliberais, tais como o corporativismo – já que estamos na capital que foi de Salazar -, ou os comunitarismos de franca direita – como aquela nossa vizinha francesa, para exemplo actual. Ou até a doutrina social da Igreja - ter-se-á o mestre revolucionário esquecido dela? ou não a pensou relevante, neste país mariano?.
Calo-me enfastiado. Até entristecido. Na vazia cadeira a meu lado algum colega largara o jornal do dia. Na sua primeira página evoca-se o aniversário da invasão russa de Budapeste. E lembro-me que os meus Camus, e todos os meus livros navegam agora no Atlântico, num contentor torna-viagem partido de Maputo. E nisso constato que este é, mesmo assim, com estes aplausos, blasés que sejam, o meu país. Onde o atrevido mestre de Bretton Woods e da Casa Branca nos vem dizer, nesta capital europeia, que nos devemos unir aos comunistas. Com todo o desplante, até neste dia efeméride.
A sessão termina. Alguns, poucos, dos mais seniores vão jantar com o conferencista. Vêm-me convidar para isso. Minto uma desculpa, e escapo-me ao gringo. E, mais do que tudo, aos que o aplaudem. Regresso a casa, sozinho. E bebo metade do licor de ginja que ainda resta, o último frasco remanescente dos que a minha mãe deixou.