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"…cheguei a um acordo perfeito com o mundo: em troca do seu barulho dou-lhe o meu silêncio…" (R. Nassar)
Revi ontem na TV "The Enforcer" (1976), o terceiro filme da série dita "Dirty Harry". Um tipo só e sozinho a olhar na tv para um filme que já viu ene vezes distrai-se e põe-se a barafustar com os tipos que ali o rodeiam. Antes de tudo o filme parece ter envelhecido imenso. Ou por outras palavras, Clint (mesmo que não seja ele o realizador) nunca foi um realista - como o prova a célebre cena do boneco-bebé do último filme, que fez os parvos ulularem. Por exemplo, agora aquelas perseguições a pé, a quererem-se labirínticas ao som de um smooth free-jazz, não provocam qualquer frisson, apenas o carinho que a visão de uma antiquíssima paixão provocará. Já para nem falar dos tiroteios ou da rigidez do próprio Harry quando se movimenta ...
Depois um tipo fica a olhar a ideologia que ali anda. O lonerangerismo, a coisa western, que é uma constante do cinema americano e do individualismo constitutivo do país. Nisso o culto do Magnum 44, arma contra os patifes, contra os criminosos de delito comum (street wise) mas também - indirectamente - contra os possidentes, burocratas e políticos (white-collar). Uma deriva populista? A ver vamos.
Qual o verdadeiro conteúdo deste filme (de 1976, repito)?
a) Harry Callahan, o dirty inspector, perde o seu parceiro, este assassinado (os duetos policiais são estruturantes, tal como o são em alguma banda desenhada). Recebe, contra a sua vontade, uma mulher como parceira (protagonizada por Tyne Daly, que depois se celebrizou num folhetim policial). Destrata-a, misógino machista, vil. E logo (no espaço de uns breves dias) criam uma parceria crucial, celebrando o pundonor e competência da nova inspectora, heroicamente martirizada no final, sem que tenha perdido a sua vertente feminina (tão expressa nas vestes que usa) - ou seja, a extrema competência sem nunca precisar de mimetizar o estereótipo masculino. Quer-se mais, ainda para mais num "filme de género", como gender bias? Este, ainda para mais daquele tempo e no registo que assume, é o filme radicalmente mais feminista que já vi.
b) Os criminosos reclamam-se Força de Ataque Revolucionária do Povo, etc e tal. Na prática são uns revolucionários de pacotilha, em busca do vil metal, white trash se se quiser. Os burocratas e políticos que comandam a polícia logo acusam um grupo de reclamação dos direitos negros (o filme é dos anos 70s, birepito). Cujos membros Clint/Harry já contactara, com a particular falta de elegância que o caracteriza, e já com eles se associara (uma associação que continuará no filme seguinte da série), percebendo-os como firmes contestatários mas não criminosos (enfim ... alguns desvios de mobiliário, uma pequena posse de droga, coisas de homens do mundo), e inocentá-los-á. Dá para compreender? Não só a dimensão "racial" do texto explícito como também a ideológica?
40 anos depois? O Clint é "faxo", dizem-me os/as enfeitiçada/os com o falo Magnum 44, como se este realidade falocrática e violadora ... Que pobreza. Até erótica.