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Eu apoio António Costa

por jpt, em 29.06.14

 

Desde tardo-adolescente que quis ser "da cultura". Decerto que alguma influência das estantes domésticas, acumuladas em gerações, ainda que o meu engenheiro pai me tivesse, com subtileza, tentado alertar para as coisas sérias (e então másculas) das veras ciências. Exagerada subtileza, lamento-o eu, agora no depois. E assim naqueles inícios de 1980s deixei-me olhar um horizonte de "homem culto", inocente ainda, pois desconhecedor do vetusta que já era a ideia, e do sociológico que implicava. 

Certo que era mais um horizonte do que uma prática ("praxis", vim a aprender), a minha então mais ligada à boémia suburbana, matinal, vespertina e noctívaga. Mas fui(-me) alimentando (n)essa aspiração: passara do Karl May ao Karl Marx, lera Borges na adolescência e também Dostoievski, e Quino em criança, ouvira falar de Capa e sabia o que era um daguerreótipo,  vira os Nibelungos e os Eisenstein e sabia quem era o Duke. Tinha já, claro, o "meu" Eça e o "meu" Torga, como tinha o "meu" Dexter e o "meu" Coltrane. Mesmo sem ser melómano lia algumas revistas, comprava os lps que podia e que se deviam ter, de rock e não só, e já então sabia que não se devia gostar de Vivaldi. Lera Graves ("anunciado na Tv") e Yourcenar, e também Walter Scott, e o Pessoa editado na Ática para além do Sá-Carneiro, reconhecia Klee, Vieira da Silva e Turner e até outros, e visitei mesmo algumas exposições e museus. Tendo crescido envolto na "franco-belga" do Tintin semanal e aderido a Pratt anos mais tarde vim a ler MausMauss (e depois a Mauss), entretanto folheara a custo Verlaine em francês e li o agora obrigatório Rimbaud em bilingue, fui ao teatro e li Brecht, aprendi quem tinha sido Vitrúvio e ouvi referências à arquitectura feita no Porto, falhara (mas tentara, dizia-me) o Shakespeare em original, ouvira um pouco de "música étnica" ("country" e aquilo andino) e até ópera, e conseguira Camus e Sartre, e até fui de comboio ao Partenon. Assim, e ali no meio da universidade tudo (me) parecia correr bem, o desiderato alcançável, à mão de capinar.

Depois, nem muito tempo depois, ainda de cabelo azeviche, percebi que algo me falhara, e sem ponta de auto-ironia o digo, nem tampouco encenação. Faltou apropriar-me da densidade, talvez por défice de inteligência, talvez também de memória, decerto que de perseverança, de abordagem sistematizada. Foi uma tomada de consciência dolorosa, aquilo que me tinham ensinado em jovem, o que "o mais difícil da vida é aceitar a nossa mediania". Certo que tinha alguma verve, podia elaborar um bocado, "espantar o burguesote" aqui e ali, mas sem grandes arroubos. Isso era perceptível aos meus mais próximos mas também não mo atiravam à cara, entre mais-ou-menos iguais. Mas um dia arranjei um emprego na área da cultura, bom. O mais-velho Aventino Teixeira não o deixou passar, e num daqueles nossos longos convívios disse-me, elegantemente quando a sós, "tu não és um homem de cultura, pá. Serás lá das ciências sociais ou lá o que é isso ...". E bebemos mais um whisky.

Vem-me tudo isto à memória neste meu último domingo antes dos cinquenta anos. Ao sentir-me, de súbito, jovem de novo, bafejado pela sorte, deparando-me com aquela sempre dita inexistente "segunda oportunidade". Reparo que nesta minha "meia-idade" me é possível cumprir o objectivo de juventude, que fora incapaz de cumprir. Posso afinal, alcandorar-me, pois encontrei a sede da cultura, o seu local e assim a vizinhança com as pessoas cultas (densas) que lá habitam: A Cultura apoia António Costa. Bastar-me-á estar lá, ser ali. O resto, estou certo, virá por osmose, inspirando eu aquela atmosfera, e aspergido pelo "capital cultural", perdão, pelo brilho residente. Por isso esta minha opção, culta e cultivadora: eu apoio António Costa. E assim estou certo, finalmente serei ... real e densamente culto.

Para esta minha metamorfose, tardia, convém é deixar de ler coisas destas...

publicado às 17:09


10 comentários

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De AL a 30.06.2014 às 06:16

he he he lindo!
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De jpt a 01.07.2014 às 16:29

Obrigado, baronesa
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De Faro Portugal a 30.06.2014 às 12:11

Bom post.
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De jpt a 01.07.2014 às 16:30

Muito obrigado. Até breve
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De elísio summavielle a 01.07.2014 às 13:58

Bem "esgalhado" o texto. Gostei.
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De jpt a 01.07.2014 às 16:33

Muito obrigado, Elisio Summavielle. E, permitir-me-á, sublinho a elegância deste seu comentário, saudando um texto bem distante da sua área política. Um exemplo de democracia, neste pequeno recanto, e talvez por isso mais precioso. Mais  .... culto, verdadeiramente culto. Cumprimentos e saudações.
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De Elisio Summavielle a 01.07.2014 às 18:55

Meu caro, nos tempos que correm, cada vez nos aproximam mais, a lisura e o sentido limpo da Res-Publica. E já acima do que é, infelizmente, o comum da política, ou seja a "politiquice".
Saudações cordiais, por isso mesmo, pela Política (com P maiúsculo).
E.S.
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De jpt a 01.07.2014 às 20:37

Recíprocas saudações, e repetida gratidão. Até breve
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De mvf a 01.07.2014 às 16:28

Sempre foste um "costista" dos quatro costados. Desde aquele episódio da votação de braço no ar na FDL que sempre te soube nas fileiras do comentados da Cabratura do Círculo que acumula com o cargo em party-time de presidente da CM Lisboa...
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De jpt a 01.07.2014 às 16:41

ok, mvf, concedo: é possível que eu tenha uma exagerada "irritação de estimação" (parafraseando a velha máxima do Esteves Cardoso) para com António Costa. Mas não é só ele, é todo o mundo socialista que treme e se ergue. Para voltarmos ao mesmo e aos mesmos.


Há dois ou três dias o FB recomendou-me uma "amiga", Margarida Moreira. Como tenho uma verdadeira amiga desse nome surpreendi-me, pensei "ora esta, desamigou-me?" e cliquei. Afinal era aquela Margarida Moreira a pidesca da DREN, célebre epítome do socratismo: todo aquele perfil era António Costa, foto de capa, e ligações  - é interessante ver como há pessoas, amadoras da política, cujos perfis públicos são apenas "política" no sentido partidário, já agora. Serve como exemplo, abjecto (já agora é de lembrar os ofícios mal escritos que essa DREN emitia), do que significará o regresso "costiano" ao poder.


Já agora, a "cultura" a que aludo no texto mete nos primeiros nomes um tarimbeiro que uma vez me mandou - em comunicação oficial distribuída por todos os serviços do ministério para os quais trabalhávamos - comentar uma carta anónima, ali enviada em cópia para todos lermos, sobre uma professora portuguesa em Maputo (com quem falava, jantava, dormia, etc). Um pequenino exemplo do que é esta "cultura", ao mais alto nível do estado "socialista", que se reproduzem. Uma escumalha. Fascista, para usarmos termos que a linha "costista" (que se "camaradiza", como diz Soares) compreende.

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