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"…cheguei a um acordo perfeito com o mundo: em troca do seu barulho dou-lhe o meu silêncio…" (R. Nassar)
Desde tardo-adolescente que quis ser "da cultura". Decerto que alguma influência das estantes domésticas, acumuladas em gerações, ainda que o meu engenheiro pai me tivesse, com subtileza, tentado alertar para as coisas sérias (e então másculas) das veras ciências. Exagerada subtileza, lamento-o eu, agora no depois. E assim naqueles inícios de 1980s deixei-me olhar um horizonte de "homem culto", inocente ainda, pois desconhecedor do vetusta que já era a ideia, e do sociológico que implicava.
Certo que era mais um horizonte do que uma prática ("praxis", vim a aprender), a minha então mais ligada à boémia suburbana, matinal, vespertina e noctívaga. Mas fui(-me) alimentando (n)essa aspiração: passara do Karl May ao Karl Marx, lera Borges na adolescência e também Dostoievski, e Quino em criança, ouvira falar de Capa e sabia o que era um daguerreótipo, vira os Nibelungos e os Eisenstein e sabia quem era o Duke. Tinha já, claro, o "meu" Eça e o "meu" Torga, como tinha o "meu" Dexter e o "meu" Coltrane. Mesmo sem ser melómano lia algumas revistas, comprava os lps que podia e que se deviam ter, de rock e não só, e já então sabia que não se devia gostar de Vivaldi. Lera Graves ("anunciado na Tv") e Yourcenar, e também Walter Scott, e o Pessoa editado na Ática para além do Sá-Carneiro, reconhecia Klee, Vieira da Silva e Turner e até outros, e visitei mesmo algumas exposições e museus. Tendo crescido envolto na "franco-belga" do Tintin semanal e aderido a Pratt anos mais tarde vim a ler Maus e Mauss (e depois a Mauss), entretanto folheara a custo Verlaine em francês e li o agora obrigatório Rimbaud em bilingue, fui ao teatro e li Brecht, aprendi quem tinha sido Vitrúvio e ouvi referências à arquitectura feita no Porto, falhara (mas tentara, dizia-me) o Shakespeare em original, ouvira um pouco de "música étnica" ("country" e aquilo andino) e até ópera, e conseguira Camus e Sartre, e até fui de comboio ao Partenon. Assim, e ali no meio da universidade tudo (me) parecia correr bem, o desiderato alcançável, à mão de capinar.
Depois, nem muito tempo depois, ainda de cabelo azeviche, percebi que algo me falhara, e sem ponta de auto-ironia o digo, nem tampouco encenação. Faltou apropriar-me da densidade, talvez por défice de inteligência, talvez também de memória, decerto que de perseverança, de abordagem sistematizada. Foi uma tomada de consciência dolorosa, aquilo que me tinham ensinado em jovem, o que "o mais difícil da vida é aceitar a nossa mediania". Certo que tinha alguma verve, podia elaborar um bocado, "espantar o burguesote" aqui e ali, mas sem grandes arroubos. Isso era perceptível aos meus mais próximos mas também não mo atiravam à cara, entre mais-ou-menos iguais. Mas um dia arranjei um emprego na área da cultura, bom. O mais-velho Aventino Teixeira não o deixou passar, e num daqueles nossos longos convívios disse-me, elegantemente quando a sós, "tu não és um homem de cultura, pá. Serás lá das ciências sociais ou lá o que é isso ...". E bebemos mais um whisky.
Vem-me tudo isto à memória neste meu último domingo antes dos cinquenta anos. Ao sentir-me, de súbito, jovem de novo, bafejado pela sorte, deparando-me com aquela sempre dita inexistente "segunda oportunidade". Reparo que nesta minha "meia-idade" me é possível cumprir o objectivo de juventude, que fora incapaz de cumprir. Posso afinal, alcandorar-me, pois encontrei a sede da cultura, o seu local e assim a vizinhança com as pessoas cultas (densas) que lá habitam: A Cultura apoia António Costa. Bastar-me-á estar lá, ser ali. O resto, estou certo, virá por osmose, inspirando eu aquela atmosfera, e aspergido pelo "capital cultural", perdão, pelo brilho residente. Por isso esta minha opção, culta e cultivadora: eu apoio António Costa. E assim estou certo, finalmente serei ... real e densamente culto.
Para esta minha metamorfose, tardia, convém é deixar de ler coisas destas...